A pátria
de Camus
A pátria
cosmopolita como defesa contra multiculturalismos,
nacionalismos e islamismos
Entre 1954 e 1962, a guerra civil da Argélia foi marcada por três grandes
narrativas: a infâmia de Jean-Paul Sartre, a frieza de Raymond Aron, a decência
de Albert Camus. Comecemos pelo nauseante pântano de Sartre. Defensor do Gulag
e da pureza purgante de qualquer adaga revolucionária, Sartre legitimou o
terrorismo argelino. A partir do conforto burguês de Paris e em nome de chavões
como Revolução ou Humanidade, Sartre defendeu o assassínio dos compatriotas que
viviam do outro lado do Mediterrâneo. Como sempre, palavras abstractas
legitimaram o desprezo por seres humanos concretos. Em nome do
anti-Colonialismo, Sartre simplesmente não quis saber do destino de um milhão
de franceses. Os pied-noirs eram colonos reaccionários e, por isso,
desprezíveis, descartáveis, espezinháveis.
Para Sartre e, posteriormente, para toda a escola pós-colonial,
relativista e multiculturalista centrada em Edward Said, o convívio entre
franceses e muçulmanos era inaceitável, os europeus tinham de ser derrotados e
expulsos para o mar. Para Aron, a questão não se colocava ao nível da moral,
mas no campo da exequibilidade. Na perspectiva aroniana, uma Argélia com
presença francesa era inviável, porque os ventos da história exigiam as
independências dos povos colonizados; depois de perder a Indochina, a França
perderia a Argélia e, nesse sentido, a melhor solução era a retirada organizada
dos pied-noirs. Além disso, Aron argumentava com dois pontos extra.
Primeiro, a colonização não trazia qualquer tipo de lucro; com ou sem guerra, a
Argélia era um encargo financeiro descartável. Segundo, a coabitação cultural
entre franceses e argelinos era impossível, estávamos a falar de dois sistemas
de valores incompatíveis. Mas não seria possível aculturar os argelinos aos
valores franceses? A resposta de Aron era negativa, até porque a bomba
demográfica argelina era incontrolável. Em 1962, já depois do fim da guerra e
da fuga apressada e ruinosa de um milhão de retornados franceses, percebeu-se
que Raymond Aron teve sempre a razão analítica do seu lado. Contudo, há uma
diferença entre razão analítica e decência moral. Na frieza de Aron estava
escondida uma desistência perante a grande questão: como alcançar a coabitação
cosmopolita entre duas culturas, entre duas etnias, entre duas religiões? Se já
era uma questão relevante em 1960 no contexto do colonialismo, em 2016 esta é a
questão mais importante de uma Europa marcada pela turbulência das suas
comunidades muçulmanas.
Recusando a imoralidade de Sartre e uma certa amoralidade de Aron, Camus
não evitou a questão, até porque ele próprio era pied-noir. Odiado pela
esquerda sartreana e pelos islamitas argelinos e visto como um ingénuo por
Aron, Albert Camus defendia uma Argélia pluralista que permitisse o convívio
democrático entre franceses e argelinos; respeitando o mesmo chão comum
patriótico, franceses da França, franceses da Argélia, argelinos e mestiços
podiam viver juntos. Quando a guerra civil rebentou, o autor de “A Peste”
criticou os dois lados. Contra os nacionalistas argelinos, Camus argumentou que
a luta contra a submissão não se fazia com ataques terroristas que chacinavam
populações civis. Ao contrário de Sarte, Camus via a Humanidade em seres
humanos concretos, e não em palavras abstractas. Além do mais, não fazia
sentido lançar uma purga sobre a presença francesa; o sonho de um ano zero que
limpasse século e meio de colonização europeia era uma utopia que acabaria num
mar de cinza sem Fénix à vista. Contra os colonos franceses, Camus criticou o
absurdo que era o silenciamento de nove milhões de árabes e magrebinos. Um
milhão de colonos brancos não podia governar nove milhões de muçulmanos sem
consentimento institucional. Por esta razão, Camus defendeu reformas políticas
que canalizassem para o interior do sistema o descontentamento local. O
objectivo era a construção de um centro democrático entre a xenofobia branca e
o terrorismo árabe; a meta era uma pátria partilhada por democratas franceses e
democratas argelinos, uma Argélia autónoma mas integrada na soberania da
França, uma Argélia reformada em democracia contra a reacção dos colonos
radicais e contra a revolução da aliança entre Sartre e islamistas. Como muitas
vezes sucede na história, a solução mais decente não teve hipótese. O centro
político desejado por Camus transformou-se numa terra de ninguém entre as duas
trincheiras da batalha de Argel.
Meio século depois, a batalha de Argel começa a ser transposta para este
lado do Mediterrâneo. A sucessão de ataques terroristas levados a cabo por
muçulmanos em solo europeu está a criar um clima de tensão quase insuperável
entre a maioria branca e a minoria muçulmana. Se revermos o filme “A Batalha de
Argel” (1966), de Gillo Pontecorvo, percebemos que aquele ciclo de violência já
foi accionado entre nós: o radicalismo islamita torna impossível o dia-a-dia,
pois a intenção dos terroristas é mesmo essa – levar as autoridades e os
cidadãos brancos até ao ponto sem retorno, isto é, o ponto em que qualquer
civil muçulmano passa a ser encarado como um potencial inimigo; este medo gera
a desconfiança mútua que corrói por completo os laços cívicos entre brancos e
castanhos; no final, resta às autoridades a imposição de um estado de
emergência que, com o tempo, evolui para uma longa guerra civil. Em 1962, essa
guerra civil determinou a derrota da pátria de Camus. Em 2016, não temos esse
luxo. Desta vez, Camus não pode perder. O que está em causa não é uma colónia ou
província distante, mas sim a própria natureza das democracias europeias, a
começar na francesa. A aliança entre democratas europeus e democratas
muçulmanos não pode ser uma miragem. Quem acredita na democracia, na liberdade
e no pluralismo cosmopolita tem o dever de fazer tudo para construir essa
aliança. Por outras palavras, tem o dever de lutar ao mesmo tempo contra
islamitas, nacionalistas de direita e multiculturalistas de esquerda, os
herdeiros do terceiro-mundismo de Sartre.
A aliança entre esquerda e islamismo radical
Na construção desta aliança, o problema começa logo na dignificação dos
reformistas ou liberais muçulmanos, que encontram pouco tempo de antena no
nosso espaço público. A direita do choque de civilizações não está disposta a
encontrar diferentes matizes nas comunidades muçulmanas; esta direita concebeu
um homem de palha, o Muçulmano, que é visto como um homem inconciliável com o
homem ocidental. Desta forma, Le Pen e a Fox News só estão interessados em
ouvir os islamitas radicais, pois esta narrativa nacionalista exige a fusão das
palavras muçulmano e fanático. Curiosamente, a esquerda do
politicamente correcto multiculturalista (que é hegemónica no espaço público)
actua da mesma maneira, transformando o radicalismo islamita e anti-ocidental
na única versão visível do islão. É uma das grandes fraudes intelectuais do
nosso tempo: em nome da retórica anti-ocidental à la Said, herdeira do
anti-colonialismo de Sartre, a esquerda está sempre disposta a defender um
movimento cultural e político que só pode ser visto como fascista ou
reaccionário - o islamismo radical. Seyran Ates (“Der Multikulti-Irrtum”),
feminista alemã de origem turca que luta há anos contra esta aliança entre o
multiculturalismo ocidental e o islamismo radical, resumiu bem a questão:
“As feministas de esquerda alemãs são paternalistas. Fazem manifestações
contra a Igreja Católica, mas insistem em tolerar os véus nas mulheres turcas,
porque afirmam que isso permite à mulher turca preservar a sua cultura. Mas o
véu não é mais do que uma expressão de opressão.”
Esta fraude intelectual e moral é a própria essência do ar do tempo, e
encontra o seu zénite nesta questão feminina. Perante o choque entre uma
rapariga muçulmana que quer viver como uma europeia normal e a sua família
tradicionalista que quer impor um casamento forçado, os ideólogos da esquerda
multiculturalista defendem a tradição representada pela família e não a
liberdade de escolha da rapariga. Como diz Nick Cohen, os reformadores e
reformadoras muçulmanas são profundamente desconfortáveis para a esquerda:
“Intelectuais de esquerda tratam estes muçulmanos como uma espécie de
Uncle Tom, só porque estão disponíveis para trabalhar com o governo para evitar
que jovens se juntem ao Estado Islâmico. E, se estes muçulmanos são criticados,
o politicamente correcto raramente critica os clérigos radicais que legitimam a
violência religiosa”.
Repare-se na perversão que domina o nosso debate: os muçulmanos que
procuram harmonizar o islão com a democracia são ridiculizados pela esquerda;
são descritos através da caricatura (Uncle Tom) do sujeito que não tem
consciência de já foi mentalmente colonizado pelo eurocentrismo. Os marxistas
diziam que o proletariado não votava nos partidos comunistas porque estava
alienado em relação à sua consciência de classe. Estes pós-marxistas do
multiculturalismo repetem a fórmula, dizendo que o muçulmano liberal é um ser
alienado em relação à sua consciência cultural. Um traidor, no fundo; não menos
do que um vendido. Se estes muçulmanos liberais são ridicularizados, os
islamitas são respeitados e legitimados, pois são heróis da luta contra o
“imperialismo eurocêntrico”. A fraude até seria cómica se estivesse nas margens
do ar do tempo; como está bem no centro da narrativa vigente, é mesmo uma
tragédia: de manhã, a esquerda defende os direitos de gays e das mulheres; à
tarde, apoia pela acção ou pela inacção o movimento mais homofóbico e misógino,
o radicalismo islamita.
O efeito desta aliança entre esquerda e islamismo radical é o silenciamento
das muçulmanos e muçulmanas que tentam reformar e democratizar o islão. Nesta
atmosfera, nomes como Maajid Nawaz, Irshad Manji ou Seyran Ates não têm nem
metade do espaço que merecem. Estas e outras figuras arriscam literalmente a
vida para tentar reformar o islão, pelo menos o islão dos muçulmanos a viver no
Ocidente, mas são traídos pela esquerda em geral. Aliás, a forma como esta
esquerda pós-marxista está a trair os democratas muçulmanos faz lembrar o
desprezo que Sartre e afins devotavam aos dissidentes da URSS e de outros
regimes comunistas como Sakharov ou Milocz.
É importante perceber que esta forma de pensar, o multiculturalismo, não
tem apenas uma dimensão discursiva ou intelectual (também conhecida por
“politicamente correcto”). O multiculturalismo é em si mesmo uma política de
estado, é um dos braços do estado social de vários países e cidades europeias.
O caso de Birminghan, a segunda cidade do Reino Unido, é um bom exemplo. Em
1985, uma onda de motins rebentou na cidade. Na resposta, as autoridades
criaram nove conselhos comunitários para nove comunidades distintas, que
passaram a ter assento político na câmara municipal (exs.: African and
Caribbean People’s Movement, Council of Black-Led Churches ou Bangladeshi
Islamic Projects Consultive Committee). A perversão culturalista desta medida
criou dois problemas, um moral e um político. O problema moral está na efectiva
anulação do conceito de “indivíduo” e a elevação do conceito de “comunidade”; o
indivíduo deixa de ser independente, deixa de ter um livre arbítrio capaz de
transcender a sua origem. Por outras palavras, a esquerda pós-utopia marxista
encontrou o seu refúgio numa forma de pensar idêntica à do romantismo
reaccionário do século XIX e início do século XX. Nesta narrativa que detém a
hegemonia gramsciana, o muçulmano europeu é prisioneiro de uma única
identidade, a religiosa. Nunca se assume que um muçulmano tem capacidade ou
interesse para ser conservador, liberal, reaccionário, fascista,
revolucionário, socialista, ambientalista, feminista, etc. Assume-se que o
muçulmano só pode ser muçulmano. É por isso que o termo “muçulmano moderado” é
perverso, representando bem o racismo escondido do politicamente correcto: o
muçulmano é visto como alguém que só consegue pensar através da religião,
restando-lhe apenas uma variante: ser pouco fanático (os tais “moderados”) ou
ser muito fanático (os radicais).
O problema político é evidente: as comunidades passaram a lutar entre si
pelos recursos do orçamento municipal; o convívio cosmopolita entre pessoas de
diferentes etnias e religiões não só é negado do ponto de vista filosófico e
moral, como é estimulado politicamente. A identidade de cada indivíduo, seja
ele negro, castanho ou branco, deixa de ser republicana, constitucional e
patriota e passa a ser culturalista, tribal e pós ou anti-patriota. Não há
cidadãos, apenas muçulmanos do Bangladesh, muçulmanos do Paquistão, negros das
Antilhas, chineses, etc. Os direitos (quer os civis, quer os sociais) deixam de
depender de um conceito de cidadania universal e passam a depender de uma
fidelidade rácica e tribal, numa espécie de apartheid financiado pelo estado
social. Como defende Kenan Malik (“Multiculturalism and its Discontents”), é
neste ponto que começa a perversão da retórica anti-racismo que tutela o
politicamente correcto: a igualdade deixa de ser uma luta pela paridade legal
de todos os indivíduos independentemente da sua raça ou religião e passa a ser
a defesa de direitos culturais ligados a uma determinada raça ou religião; cada
comunidade passa a ter o seu conjunto específico de direitos e deveres
completamente distinto dos restantes. Em consequência, perde-se o centro vital,
o chão comum partilhado por todos, a pátria cívica. Os efeitos práticos desta
viragem da cidadania patriota e cosmopolita para uma pertença comunitária e
fechada foram desastrosas. Em 1985, os motins tiveram de facto origem na
pobreza: negros, muçulmanos e brancos juntaram-se para protestar contra os
problemas económicos e urbanísticos da cidade de Birmingham. Em 2005, motins
surgiram novamente, mas desta vez a luta ocorreu entre negros e muçulmanos.
Na teoria, o republicanismo francês é diferente deste multiculturalismo
britânico, alemão, holandês, belga, mas na prática a França encarou os
muçulmanos de forma multicultural, como uma comunidade homogénea e separada do
grosso da sociedade. Os jovens magrebinos de segunda geração ficam assim presos
numa terra de ninguém sem ligação à cultura francesa e sem ligação às tradições
dos seus pais. Como diz Olivier Roy, este espaço vazio é aproveitado todos os
dias pelo islamismo radical, que fornece uma identidade absoluta a jovens que
crescem sem qualquer identidade.
Em resumo, a conversa sobre o “fracasso das políticas de integração” é em
si mesmo um equívoco, porque nunca existiu uma política de integração na
Europa. O multiculturalismo procurou a desintegração; o muçulmano não integrado
na pérfida cultura eurocêntrica era o muçulmano que interessava projectar. Os
resultados estão à vista.
Cosmopolitismo versus Multiculturalismo
Portanto, é urgente separar as águas entre dois conceitos:
multiculturalismo não é cosmopolitismo; o multiculturalismo é uma hidra de
diversos nacionalismos, é o exacto oposto de uma cidade aberta, plural e
cosmopolita. Se um cosmopolita defende a diversidade e a miscigenação no mesmo
chão comum baseado na herança do Direito Natural (os direitos inalienáveis de
qualquer indivíduo independentemente da sua origem geográfica, étnica ou
religiosa), o multiculturalista defende a diversidade sem mistura, porque
recusa a ideia de chão comum, recusa a ideia de que possa existir uma lei
universal para cristãos e muçulmanos. Se o cosmopolitismo pugna pela igualdade
perante da lei de todas os indivíduos independentemente da sua origem, o
multiculturalismo luta pela desigualdade legal das comunidades. Tal como o
nacionalismo de Le Pen, Farage, Wildeers e Trump, o multiculturalismo assenta a
sua base filosófica no choque de civilizações, na ideia de que raças e
religiões não podem conviver no mesmo espaço político. A extrema-direita usa
deste pessimismo culturalista para defender a expulsão do “outro”, alegando que
o muçulmano é demasiado bárbaro para compreender conceitos como Estado de
Direito, Direito Natural ou Direitos Humanos. A esquerda multiculturalista usa
este pessimismo para defender a segregação através do estado social, impedindo
que o “outro” estabeleça contacto com as leis e costumes da maioria branca,
alegando que o Direito Natural e o Estado de Direito são manifestações
eurocêntricas. Para usar os termos clássicos de Ferdinand Tönnies, a
extrema-direita, a esquerda multiculturalista e o islamismo radical apostam na
romântica e potencialmente fascista Gemeinschaft (comunidade de laços de
sangue) contra a Gesellschaft (sociedade de acordos contratuais entre
pessoas de diferentes origens); apostam na barbárie do direito de sangue contra
a civilização do direito de solo. Contra estas três pulsões que ganharam raízes
na Europa, só nos resta um caminho: a defesa da aliança cosmopolita de Camus
entre democratas europeus e democratas muçulmanos.
Nos intervalos da enésima legitimação do terrorismo, os herdeiros de
Sartre criticarão esta aliança da mesma forma que Said criticou Camus, isto é,
considerarão que se trata de um vil produto da velha mente colonizadora que
insiste em viciar o muçulmano no ópio ocidental. É uma posição moralmente
inaceitável. Por sua vez, grande parte da direita, quer com base no liberalismo
aroniano, quer com base no radicalismo de Le Pen, dirá que esta aliança é uma
ingenuidade. Os liberais aronianos dirão que a mistura cosmopolita entre
europeus e muçulmanos até pode ser desejável mas é impossível na prática, os
radicais da Frente Nacional dirão que essa mistura é indesejável. A preposição
dos radicais é moralmente inaceitável; a desistência intrínseca da preposição
aroniana torna-se insustentável a partir do momento em que há milhões de
muçulmanos a viver nas cidades europeias.
É verdade que Aron pode voltar a ter razão (e ele costumava ter razão). É
verdade que o nosso futuro poderá ser marcado por uma longa guerra civil não
declarada. É verdade que o choque de civilização até poderá ser inevitável. Mas
também é verdade que, por enquanto, temos o dever moral de tentar evitar esse
choque, temos o dever de procurar o cosmopolitismo de Camus. Se Camus não
vencer desta vez, se o cosmopolitismo entre europeus e muçulmanos aculturados à
essência do Direito Natural não passar de uma quimera, se a frieza de Aron
vencer de novo a decência de Camus, então o sangue e o pó da história voltarão
às cidades europeias.
Pátria
Como Camus bem sabia, não há cosmopolitismo sem raízes, não há ética
cosmopolita sem pátria. Um bom cosmopolita é um bom anfitrião que domina as
artes da hospitalidade. Ser cosmopolita é tratar bem aqueles que visitam a
nossa casa. A jusante, só podemos ser bons cosmopolitas se mantivermos a
montante uma enorme estima pela nossa própria casa; só podemos amar a
Humanidade se amarmos o vizinho do 4.º esq, só podemos ver a Humanidade num
estrangeiro se amarmos a nossa rua, a nossa cidade, a nossa pátria. Ora,
durante as últimas décadas, o multiculturalismo representou na prática a
destruição organizada da nossa própria casa, a erradicação das narrativas
nacionais com centenas de anos, a diabolização das nossas religiões (judaísmo e
cristianismo) com milhares de anos. Como é que podemos agora reconstruir uma
noção de pátria que nos liberte do multiculturalismo e que, ao mesmo tempo,
evite o nacionalismo? Isso já é assunto para outra conversa. Por agora, convém
apenas frisar que a pátria é mesmo aquilo que andamos a pedir, mesmo quando não
temos essa noção. A esquerda celebra a liberalização dos costumes e da moral,
celebra até a morte da família, mas reclama contra a liberalização da economia,
globalização e desregulamentação da economia que, por exemplo, extinguiu a
fábrica como grande centro de comunhão social e os sindicatos como grandes
corpos intermédios. A direita celebra a liberalização da economia, mas critica
a liberalização dos costumes, sentindo-se perdida numa sociedade que despreza
os laços religiosas e familiares. Apesar das diferenças, esquerda e direita
estão a pedir a mesma coisa: a pátria, esse espaço onde sindicatos, empresas,
igrejas, famílias, associações e clubes se juntam numa lealdade de fundo ao
mesmo chão comum. Como diz Robert Putman desde 2000, andamos a jogar bowling
sozinhos. Se queremos evitar uma longa guerra civil com islamitas e se queremos
manter a essência das nossas democracia abertas, temos de reapreender a jogar
bowling juntos, temos de reaprender a articular a palavra Pátria, temos de
voltar à decência de Albert Camus.
Henrique Raposo
(publicado originalmente na revista
do semanário Expresso,
em Agosto deste ano)
O mundo aos quadradinhos visto por um pateta que, manifestamente, não faz a mais palida ideia do que esta a falar... Se alguém se lembrasse de escrever que os defensores dos movimentos de libertação nas ex-colonias portuguesas não passavam de apologistas do terrorismo, o mais provavel seria cair-lhe tudo em cima.
ResponderEliminarMas com o Raposo, por razões que desconheço, a coisa passa despercebida e as baboseiras mais indigentes são recebidas com interesse, até por pessoas cultas e dotadas de discernimento como o autor deste blog.
Um mistério para mim...
Boas