Antonio Muñoz Molina (n. 1956)
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Não
é fácil escrever sobre Lisboa, como o comprova este livro. O Inverno em Lisboa, de Antonio Muñoz Molina (n. 1956), publicado entre nós
em 1988, com tradução de Carlos Martins Pereira, não é, definitivamente, um
grande livro. Para mais, torna-se difícil situar a acção; a dado passo, fala-se
em 1984, mas não estou certo de que seja esse o ano em que o Inverno de Molina
passou pela capital portuguesa. Dar-se-á, a título indicativo, a data da
primeira edição espanhola, 1987. Vamos agora a alguns trechos, onde se adivinha
o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré.
Tinha
imaginado uma cidade tão enevoada como San Sebastian ou Paris. Ficou
surpreendido com a transparência do ar, a exactidão do cor-de-rosa e do ocre
nas fachadas das casas, a uniforme cor avermelhada dos telhados, a estática luz
dourada que perdurava nas colinas da cidade com um esplendor de chuva recente.
Da janela do seu quarto, num hotel de corredores sombrios onde toda a gente
falava em voz baixa, via uma praça de janelas iguais e o perfil da estátua de
um rei a cavalo que enfaticamente apontava para o Sul. Comprovou que, quando lhe
falavam depressa, o português era tão indecifrável como o sueco. E também que
os outros o compreendiam facilmente a ele: disseram-lhe que o sítio onde queria
ir era muito perto de Lisboa. Numa estação grande e antiga, apanhou um comboio
que logo entrou por um túnel muito comprido: quando saiu dele começava a
anoitecer. Viu bairros de prédios altos onde começavam a acender-se luzes e que
depois não o apanhavam. Às vezes, passava junto da janela o clarão de luz de
outros comboios que iam para Lisboa. Exaltado pela solidão e pelo silêncio,
olhava para rostos desconhecidos e lugares estranhos como se contemplasse
aqueles pontinhos amarelos que aparecem na escuridão quando fechamos os olhos.
(…)
Uma
tarde, Biralbo deu por si fatigado e perdido num arrabalde de que não poderia
voltar a pé antes que se fizesse noite. Hangares de tijolo vermelho, abandonados,
alinhavam-se junto ao rio. Nas margens, sujas como esterqueiras, havia,
atiradas para as ervas, velhas maquinarias que pareciam ossadas de animais
extintos. Biralbo ouviu um ruído familiar e distante como de metal a
arrastar-se. Um eléctrico aproximava-se devagar, alto e amarelo, oscilando
entre os carris, entre os muros enegrecidos e os pedaços de sucata. Subiu para
ele: não entendeu o que lhe explicava o condutor, mas, para onde quer que
fosse, tanto lhe fazia. Lá longe, sobre a cidade, brilhava nebulosamente o sol
do Inverno, mas a paisagem que Biralbo atravessava tinha um cinzento de
entardecer chuvoso. Ao fim de uma viagem que lhe pareceu enorme, o eléctrico
parou numa praça aberta ao estuário do rio. Tinha fundas arcadas encimadas de
estátuas e frontões de mármore e uma escadaria que entrava pela água. Sobre um
pedestal com elefantes brancos e anjos que levantavam trombetas de bronze, um
rei cujo nome Biralbo nunca chegou a saber segurava as rédeas do seu cavalo,
levantando-se com a serenidade de um herói contra o vento do mar, que cheirava
a porto e a chuva.
Ainda
era dia, mas as luzes começavam a acender-se na alta e húmida penumbra das arcadas.
Biralbo passou por um arco com alegorias e escudos e a seguir perdeu-se por
ruas que não tinha a certeza de ter visto antes. Mas isso acontecia-lhe sempre
em Lisboa: não conseguia distinguir entre o desconhecido e a recordação. Eram
ruas mais estreitas e escuras, cheias de fundos armazéns e fortes cheiros
portuários. Caminhando por uma praça grande e gelada como um sarcófago de
mármore em que brilhavam sobre o pavimento os carris curvados dos eléctricos,
por uma rua em que não havia nem uma única porta, apenas um muro ocre com
janelas gradeadas. Entrou numa ruela como um túnel que cheirava a cave e a
sacos de café e andou mais depressa ao ouvir nas suas costas os passos de outro
homem.
Tornou
a dar voltas, possuído pelo medo de que o estivessem a seguir. Deu uma moeda a
um mendigo sentado num degrau que tinha junto de si uma perna ortopédica,
perfeitamente digna, cor de laranja, com uma peúga aos quadrados, com correias
e fivelas de metal e um sapato apenas, muito limpo, quase melancólico. Viu
tabernas sujas com marinheiros e portas de pensões ou indubitáveis prostíbulos.
Como se descesse por um poço, sentia que o ar se tornava mais espesso: via mais
bares e mais rostos, máscaras escuras, olhos rasgados, de pupilas frias, faces
pálidas e imóveis em pátios de lâmpadas vermelhas, pálpebras azuis, sorrisos de
lábios crispados que seguravam cigarros, que se curvavam para o chamar das
esquinas, dos umbrais dos clubes com portas acolchoadas e cortinas de veludo
púrpura, debaixo dos letreiros luminosos que se acendiam e apagavam embora
ainda não fosse noite, desejando a sua chegada, anunciando-a.
Nomes
de cidades ou de países, de portos, de regiões longínquas, de filmes, nomes que
brilhavam, desconhecidos e convidativos, como as luzes de uma cidade contemplada
de um avião à noite, agrupadas em florações de coral ou cristais de gelo.
Texas, leu ele, Hamburgo, palavras vermelhas e azuis, amarelas, violeta-pálido,
finos traços de néon, Ásia, Jacarta, Mogambo, Goa, cada um dos bares e das
mulheres oferecia-se-lhe sob uma invocação corrompida e sagrada, e ele
caminhava como se percorresse com o dedo indicador os mapas-mundo da sua
imaginação e da sua memória, com o antigo instinto de medo e perdição que
sempre tinha reconhecido nesses nomes.
Antonio Muñoz Molina
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