sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Lisboa, 1987.

 
 

Antonio Muñoz Molina (n. 1956)
 
 
 
          Não é fácil escrever sobre Lisboa, como o comprova este livro. O Inverno em Lisboa, de Antonio Muñoz Molina (n. 1956), publicado entre nós em 1988, com tradução de Carlos Martins Pereira, não é, definitivamente, um grande livro. Para mais, torna-se difícil situar a acção; a dado passo, fala-se em 1984, mas não estou certo de que seja esse o ano em que o Inverno de Molina passou pela capital portuguesa. Dar-se-á, a título indicativo, a data da primeira edição espanhola, 1987. Vamos agora a alguns trechos, onde se adivinha o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré.
 
 
 
Tinha imaginado uma cidade tão enevoada como San Sebastian ou Paris. Ficou surpreendido com a transparência do ar, a exactidão do cor-de-rosa e do ocre nas fachadas das casas, a uniforme cor avermelhada dos telhados, a estática luz dourada que perdurava nas colinas da cidade com um esplendor de chuva recente. Da janela do seu quarto, num hotel de corredores sombrios onde toda a gente falava em voz baixa, via uma praça de janelas iguais e o perfil da estátua de um rei a cavalo que enfaticamente apontava para o Sul. Comprovou que, quando lhe falavam depressa, o português era tão indecifrável como o sueco. E também que os outros o compreendiam facilmente a ele: disseram-lhe que o sítio onde queria ir era muito perto de Lisboa. Numa estação grande e antiga, apanhou um comboio que logo entrou por um túnel muito comprido: quando saiu dele começava a anoitecer. Viu bairros de prédios altos onde começavam a acender-se luzes e que depois não o apanhavam. Às vezes, passava junto da janela o clarão de luz de outros comboios que iam para Lisboa. Exaltado pela solidão e pelo silêncio, olhava para rostos desconhecidos e lugares estranhos como se contemplasse aqueles pontinhos amarelos que aparecem na escuridão quando fechamos os olhos.
(…)
Uma tarde, Biralbo deu por si fatigado e perdido num arrabalde de que não poderia voltar a pé antes que se fizesse noite. Hangares de tijolo vermelho, abandonados, alinhavam-se junto ao rio. Nas margens, sujas como esterqueiras, havia, atiradas para as ervas, velhas maquinarias que pareciam ossadas de animais extintos. Biralbo ouviu um ruído familiar e distante como de metal a arrastar-se. Um eléctrico aproximava-se devagar, alto e amarelo, oscilando entre os carris, entre os muros enegrecidos e os pedaços de sucata. Subiu para ele: não entendeu o que lhe explicava o condutor, mas, para onde quer que fosse, tanto lhe fazia. Lá longe, sobre a cidade, brilhava nebulosamente o sol do Inverno, mas a paisagem que Biralbo atravessava tinha um cinzento de entardecer chuvoso. Ao fim de uma viagem que lhe pareceu enorme, o eléctrico parou numa praça aberta ao estuário do rio. Tinha fundas arcadas encimadas de estátuas e frontões de mármore e uma escadaria que entrava pela água. Sobre um pedestal com elefantes brancos e anjos que levantavam trombetas de bronze, um rei cujo nome Biralbo nunca chegou a saber segurava as rédeas do seu cavalo, levantando-se com a serenidade de um herói contra o vento do mar, que cheirava a porto e a chuva.
Ainda era dia, mas as luzes começavam a acender-se na alta e húmida penumbra das arcadas. Biralbo passou por um arco com alegorias e escudos e a seguir perdeu-se por ruas que não tinha a certeza de ter visto antes. Mas isso acontecia-lhe sempre em Lisboa: não conseguia distinguir entre o desconhecido e a recordação. Eram ruas mais estreitas e escuras, cheias de fundos armazéns e fortes cheiros portuários. Caminhando por uma praça grande e gelada como um sarcófago de mármore em que brilhavam sobre o pavimento os carris curvados dos eléctricos, por uma rua em que não havia nem uma única porta, apenas um muro ocre com janelas gradeadas. Entrou numa ruela como um túnel que cheirava a cave e a sacos de café e andou mais depressa ao ouvir nas suas costas os passos de outro homem.
Tornou a dar voltas, possuído pelo medo de que o estivessem a seguir. Deu uma moeda a um mendigo sentado num degrau que tinha junto de si uma perna ortopédica, perfeitamente digna, cor de laranja, com uma peúga aos quadrados, com correias e fivelas de metal e um sapato apenas, muito limpo, quase melancólico. Viu tabernas sujas com marinheiros e portas de pensões ou indubitáveis prostíbulos. Como se descesse por um poço, sentia que o ar se tornava mais espesso: via mais bares e mais rostos, máscaras escuras, olhos rasgados, de pupilas frias, faces pálidas e imóveis em pátios de lâmpadas vermelhas, pálpebras azuis, sorrisos de lábios crispados que seguravam cigarros, que se curvavam para o chamar das esquinas, dos umbrais dos clubes com portas acolchoadas e cortinas de veludo púrpura, debaixo dos letreiros luminosos que se acendiam e apagavam embora ainda não fosse noite, desejando a sua chegada, anunciando-a.
Nomes de cidades ou de países, de portos, de regiões longínquas, de filmes, nomes que brilhavam, desconhecidos e convidativos, como as luzes de uma cidade contemplada de um avião à noite, agrupadas em florações de coral ou cristais de gelo. Texas, leu ele, Hamburgo, palavras vermelhas e azuis, amarelas, violeta-pálido, finos traços de néon, Ásia, Jacarta, Mogambo, Goa, cada um dos bares e das mulheres oferecia-se-lhe sob uma invocação corrompida e sagrada, e ele caminhava como se percorresse com o dedo indicador os mapas-mundo da sua imaginação e da sua memória, com o antigo instinto de medo e perdição que sempre tinha reconhecido nesses nomes.
 
Antonio Muñoz Molina  
 
 

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