A Lucy é uma bem-disposta. E isso vê-se a cada instante,
e a sua alegria amiga é tão boa e tão fantástica que só temos de agradecer-lhe por ter
decidido animar, vai para muitos anos, este país melancólico, estupidamente
taciturno, ó pátria capciosa. A Lucy Pepper nasceu em Inglaterra em 1970, mas vive em Lisboa
com a família, sendo ilustradora e escritora, e uma grande cronista. Saudavelmente obcecada pela
culinária portuguesa, já lhe dedicou outros livros. Agora, há poucos dias, lançou
Como Não Morrer de Fome em Portugal. Histórias de uma inglesa apaixonada pelo nosso país. O livro é a Lucy, um
tratado de boa disposição, inteligência e humor, a felicidade serena. Não fala só de comida,
ainda que a comida seja prato principal, o leite-motivo. Trata da vida, da dela e doutra gente,
e do bom que é estar vivo; sobretudo aqui, em Portugal. Do livro transcreveu-se
uma pequena parte constante logo da abertura, o relato da primeira vinda de Lucy Pepper
ao nosso país, com sete anos de idade.
A
primeira coisa que me lembro de «comer» em Portugal foi uma vitamina. Estávamos
no Verão de 1977 e viemos visitar uns amigos da família que trabalhavam na
embaixada britânica.
Foi
a primeira viagem ao estrangeiro, tanto para mim, como para a minha irmã. Eu
tinha sete anos, ela cinco, e, depois de atravessarmos Espanha desde o ferry de Bilbau até à fronteira
portuguesa, não ficámos com boa impressão de viajar para o estrangeiro. A meio
caminho, passámos a noite num hotel em Valhadolide – que era estranhamente
escuro e húmido –, onde a nossa cama se partiu. Depois atravessámos o
assustador deserto espanhol, em que quase ficámos sem gasolina. O nosso Renault 17 TS, um carro que, em qualquer
outro dia, ficaria bem nas mãos da dupla Starsky e Hutch, não impressionou
tanto o senhor daquela bomba de gasolina no meio de nenhures quanto, segundo o
meu pai, tinha impressionado os habitantes das várias aldeias por que passámos
até lá chegar. Ele não aceitou o nosso dinheiro estrangeiro para pagar a
gasolina. Naquela altura, só nos restavam escudos e libras, depois de um almoço
inesperadamente caro em que tínhamos gasto as nossas últimas pesetas. Não me
lembro do que foi esse almoço. Espero que tenha valido a pena. O «duelo» da
gasolina foi muito tenso, com o senhor da bomba a recusar ferozmente o nosso
dinheiro; e eu tinha a certeza quase absoluta de que íamos morrer ali, no
deserto. Olhei para o horizonte à procura de abutres, enquanto os meus pais
procuravam e caçavam pesetas eventualmente perdidas no carro. Em vão.
Finalmente, depois de uns intermináveis dez minutos de terror, o senhor da
bomba acedeu, aceitou uma nota de cinco libras e pudemos sair. Ainda havia a
«pequena» questão do que iríamos comer nesse dia, no que restava da viagem.
Felizmente para nós, e infelizmente para os abutres espanhóis, tínhamos trazido
uma garrafa de concentrado de laranja e umas caixinhas de cereais para levarmos
aos nossos amigos ingleses. Eu e a minha irmã jantámos flocos de milho e
concentrado de laranja diluído numa garrafa de água. Os meus pais não comeram
nada. Ainda hoje olho de lado para Espanha.
À
uma da manhã estávamos a chegar a Lisboa e, a dois quilómetros da cidade, na
A1, o carro decidiu parar. O meu pai é veterinário. Ele «repara» animais, não
repara carros. Ficou em pânico, em silêncio, não fazendo a mínima ideia do que
fazer, para além de montar o triângulo internacional uns metros atrás do carro,
abrir o capô e fingir ter o ar de quem sabe do que está à procura, para que a
sua mulher e as suas filhas não desistissem dele, de vez.
Incrivelmente,
foi só um dos cabos da bateria. Tinha-se soltado do sítio. Sendo a bateria o
único «órgão» interno de um carro que o meu pai entendia, recolocou o cabo e
instantaneamente tornou-se um herói. Ele diz-me que esse foi, simultaneamente,
o pior e o melhor dia da sua vida até esse ponto. Entrámos na cidade e, depois
de pedir direcções, o taxista mais simpático do mundo leu o endereço e levou-nos
todo o caminho até à porta da casa no Restelo, conduzindo à frente do nosso
carro. Não pediu um tostão por isso. Nem um escudo, nem uma libra e,
certamente, nem uma peseta.
A
casa era branca, cheia de buganvílias, e não havia deserto à vista. E os nossos
amigos tinham uma empregada em casa. Nunca tinha ido a um sítio onde houvesse
empregados domésticos e, por isso, fiquei espantada. Nesses quinze dias, sei
que comi lulas e que gostei, porque me lembro de a minha mãe me dizer que já
tinha comido lulas, sem saber que eram lulas, e que gostei das lulas. Não teria
comido as lulas se soubesse que eram lulas. Obviamente, não sabia o que eram
lulas, porque tinha sete anos e era inglesa.
Mas
não me lembro a que sabiam as lulas. Obviamente, a única coisa de que me lembro
é a vitamina que a empregada obrigou todas as crianças a tomar, quer as da casa
quer umas coitadas de umas inglesas visitantes, que não estavam à espera de
nada, que nunca sequer tinham visto uma vitamina além daquelas de laranja, que
só tinham vitamina C. As vitaminas da empregada eram daquela espécie horrenda
que sabe a fermento de pão e provoca arrotos com esse sabor todo o resto do dia.
Passeámos,
fomos ao Alentejo, ficámos numa pousada em Estremoz, que tinha umas camas
antigas de quatro postes, procurámos abutres no horizonte e voltámos para
Lisboa. Os meus pais viram um discurso de Mário Soares na televisão que durou
duas horas, e isso é tudo o que me lembro de Portugal em 1977. Se calhar, são
as viagens de terror que realmente impressionam as mentes das crianças de sete
anos, mais do que umas férias fabulosas.
Lucy
Pepper
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