quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Memórias Perdidas - 1

 
 

 
 
         Inicia-se uma nova rubrica, intitulada «Memórias Perdidas», que, como nome indica, pretende evocar obras memorialísticas relativamente desconhecidas, sem indagar das respectivas qualidades literárias.
         Começamos com Acontecimentos Que Vivi (Um Pouco da Minha Vida), saído em 1960, em edição de autor, livro de António Manuel Pereira então desembargador da Relação de Coimbra.
         Como sucede muito nestas memórias singelas, o livro é dedicado aos netos, mas também a João Franco – o que, só por si, é sintomático do ideário político e da visão do mundo do autor, que se assume, sobretudo na juventude, como um fervoroso monárquico. Assistiu, nessa época, à morte de Hintze Ribeiro, à noite do regicídio, à aclamação de D. Manuel, quando António Manuel Pereira ainda era aluno do Colégio de Campolide. O 5 de Outubro é descrito ao pormenor, obviamente sob o olhar de um jovem estudante de liceu (ou, melhor, porque não é irrelevante, do Colégio de Campolide, administrado pelos jesuítas). Os tumultos de Coimbra, o Movimento das Espadas, as promessas do 28 de Maio, os alvores do Estado Novo, nada escapa à atenção curiosa de António Manuel Pereira, que adere de imediato à «Situação», onde veio a exercer alguns cargos de relevo, como o de governador civil de Leiria.
         Nestas memórias, há detalhes suculentos, como a descrição das movimentações castrenses nos tempos da Ditadura Militar, das amizades de caserna e de inimizades suscitadas pela proximidade ao poder. De caminho, fala-se da revolução bolchevique e dos milagres de Fátima, dos tempos em que o autor esteve em Viseu e, mais tarde, do assassinato de Sidónio (segundo António Manuel Pereira, o Presidente-Rei foi morto devido ao facto de a polícia que fazia a guarda estar armada de espingardas e não de pistolas, ou seja, sem liberdade de movimentos para deter preventivamente o agressor logo que este erguesse a arma que vitimou Sidónio). Já magistrado, Vicente de Freitas oferece-lhe o cargo de governador de São Tomé, mas a oposição de alguns membros do Governo fez com que António Manuel Pereira declinasse o cargo. Acabou por ser nomeado governador civil de Leiria, num tempo em que o general Vicente de Freitas só tinha um lema, que amiúde proclamava: «Ditadura, Ditadura e Ditadura». A visita de Óscar Carmona a Fátima, com almoço no Mosteiro de Alcobaça, foi um dos assuntos que ocuparam a acção de António Manuel Pereira no governo de Leiria, sendo Carmona (e Salazar) várias vezes mencionados neste livro de cerca de 120 páginas. Em plena Ditadura, a dado passo alguém diz: «O que se tem feito à Carris é verdadeiramente Moscoviano». Um livro delicioso. Não pelas suas qualidades literárias ou pela densidade dos seus pensamentos, mas pela torrente de episódios e pequenas estórias que se vão contando pela pena de António Manuel Pereira. Memórias perdidas de um estudante, militar, juiz; hoje esquecido – mas aqui lembrado.
 
António Araújo
 
 
         António Manuel Pereira, Acontecimentos Que Vivi (Um Pouco da Minha Vida), Porto, Edição do Autor, 1960.  
 
 
 
 

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