Inicia-se uma nova rubrica, intitulada
«Memórias Perdidas», que, como nome indica, pretende evocar obras
memorialísticas relativamente desconhecidas, sem indagar das respectivas
qualidades literárias.
Começamos com Acontecimentos Que Vivi (Um Pouco da Minha Vida), saído em 1960, em
edição de autor, livro de António Manuel Pereira então desembargador da Relação
de Coimbra.
Como sucede muito nestas memórias
singelas, o livro é dedicado aos netos, mas também a João Franco – o que, só
por si, é sintomático do ideário político e da visão do mundo do autor, que se
assume, sobretudo na juventude, como um fervoroso monárquico. Assistiu, nessa
época, à morte de Hintze Ribeiro, à noite do regicídio, à aclamação de D.
Manuel, quando António Manuel Pereira ainda era aluno do Colégio de Campolide.
O 5 de Outubro é descrito ao pormenor, obviamente sob o olhar de um jovem
estudante de liceu (ou, melhor, porque não é irrelevante, do Colégio de
Campolide, administrado pelos jesuítas). Os tumultos de Coimbra, o Movimento
das Espadas, as promessas do 28 de Maio, os alvores do Estado Novo, nada escapa
à atenção curiosa de António Manuel Pereira, que adere de imediato à
«Situação», onde veio a exercer alguns cargos de relevo, como o de governador
civil de Leiria.
Nestas memórias, há detalhes
suculentos, como a descrição das movimentações castrenses nos tempos da
Ditadura Militar, das amizades de caserna e de inimizades suscitadas pela
proximidade ao poder. De caminho, fala-se da revolução bolchevique e dos
milagres de Fátima, dos tempos em que o autor esteve em Viseu e, mais tarde, do
assassinato de Sidónio (segundo António Manuel Pereira, o Presidente-Rei foi morto
devido ao facto de a polícia que fazia a guarda estar armada de espingardas e
não de pistolas, ou seja, sem liberdade de movimentos para deter
preventivamente o agressor logo que este erguesse a arma que vitimou Sidónio).
Já magistrado, Vicente de Freitas oferece-lhe o cargo de governador de São
Tomé, mas a oposição de alguns membros do Governo fez com que António Manuel
Pereira declinasse o cargo. Acabou por ser nomeado governador civil de Leiria,
num tempo em que o general Vicente de Freitas só tinha um lema, que amiúde
proclamava: «Ditadura, Ditadura e Ditadura». A visita de Óscar Carmona a
Fátima, com almoço no Mosteiro de Alcobaça, foi um dos assuntos que ocuparam a
acção de António Manuel Pereira no governo de Leiria, sendo Carmona (e Salazar)
várias vezes mencionados neste livro de cerca de 120 páginas. Em plena
Ditadura, a dado passo alguém diz: «O que
se tem feito à Carris é verdadeiramente Moscoviano». Um livro delicioso.
Não pelas suas qualidades literárias ou pela densidade dos seus pensamentos,
mas pela torrente de episódios e pequenas estórias que se vão contando pela
pena de António Manuel Pereira. Memórias perdidas de um estudante, militar,
juiz; hoje esquecido – mas aqui lembrado.
António
Araújo
António Manuel Pereira, Acontecimentos Que Vivi (Um Pouco da Minha
Vida), Porto, Edição do Autor, 1960.
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