quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Lisboa, 1940.

 
 
Walter Schellenberg, bastante divertido,
a aguardar julgamento em Nuremberga

 
Há pouco, saiu entre nós a tradução de um livro do inenarrável Andrew Morton sobre as simpatias nazis dos duques de Windsor. O título não engana: 17 Cravos. A Realeza, os Nazis e o Maior Complô da História. Assim, sem tirar nem pôr. Antes dele, muito antes, fora publicado em 1986 o livro Operation Willi. The Nazi Plot to Kidnap the Duke of Windsor, de Michael Bloch, que, por razões misteriosas, nunca mereceu tradução portuguesa, que eu saiba. Em contrapartida, as memórias de Walter Schellenberg (1910-1952) foram editadas em Portugal há muitos anos, com a chancela da Ulisseia, e uma tradução algo periclitante de Juliane Haerdter.
Walter Schellenberg foi um dos protagonistas principais – talvez mesmo, o principal – da Operação Willi, o plano nazi para raptar os duques de Windsor em Portugal, onde viviam na linha do Estoril, na casa do banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva. A vida de Schellenberg mostra bem até que ponto os filmes de espionagem ficam a milhas da realidade: metido em mil e uma operações das arábias, foi amante de Coco Chanel, usando-a nas suas actividades mais que clandestinas. No final da guerra, ainda tentou negociar a paz com os Aliados, pensa-se que sob as ordens de Himmler, tendo-se deslocado a Estocolmo para esse efeito pacífico. Julgado em Nuremberga, foi condenado a uma pena leve, alegadamente por razões de saúde. Na prisão, escreveria as suas memórias, as tais que a Ulisseia publicou, com o título A Conspiração do Silêncio. É daí que se extraiu um trecho que refere a passagem de Schellenberg por Lisboa, com o objectivo – que, aliás, o próprio fez sabotar – de raptar o ex-rei Eduardo VIII, que acabou a caminho das Bermudas, em gozo de merecidas férias. Para uma primeira abordagem a este episódio, recomenda-se o livro de Irene Flunser Pimentel, Espiões em Portugal Durante a II Guerra Mundial (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 83ss).
 

Wallis Simpson e Eduardo VIII com Adolf Hitler, 1937

 
 
(…) estávamos sem grandes notícias de Lisboa. Parece que o duque não manifestava grande pressa em ir à tal caçada. Quanto mais reflectia mais à conclusão chegava de que toda a história tivera por base algumas opiniões impulsivas, sem grande valor, portanto. «O melhor», pensei, «era partir imediatamente para Lisboa, onde poderia formar opinião mais segura».
Para estar pronto a partir mandara comprar e encomendara para Lisboa um carro americano e um outro mais rápido dos serviços secretos. Um alto funcionário português que contava entre os meus amigos tomara todas as disposições para que, uma vez ali, residisse em casa de uma eminente família de judeus holandeses. No entanto, visitei primeiro o amigo japonês que encontrara recentemente em Lisboa, quando da missão a Dacar. Recebeu-me com grandes manifestações de amizade. Pedi-lhe que me arranjasse informações precisas acerca da residência actual do duque de Windsor, número de entradas da casa, andares ocupados, criadagem e medidas de segurança respeitantes ao duque. Sem qualquer reacção a tais pedidos, o meu amigo acolheu-os com o habitual sorriso, polido e cativante. Limitou-se a profunda vénia dizendo: «Para obsequiar um amigo, não há tarefas demasiado pesadas.»
À noite dei um pequeno passeio pela cidade e depois subi a colina escarpada onde estava instalada a embaixada da Alemanha e de cujas janelas se desfrutava uma vista maravilhosa sobre o porto e a embocadura do Tejo. O embaixador, von Huene, fora informado da minha visita e recebeu-me cordialmente. Um tanto surpreendido com a autoridade de que eu vinha investido, afirmou-me repetidas vezes estar inteiramente à minha disposição. Pu-lo ao corrente da missão, acrescentando que, com toda a honestidade, chegara à conclusão de que não poderia ser levada a bom termo. Entretanto, tinha de tentar fazer o melhor porque, quando o Führer tomava uma decisão desse tipo, não havia discussão possível. Pedi-lhe que me ajudasse, arranjando-me o maior número possível de informações para que me fosse possível fazer uma ideia do mais aproximadamente exacta da verdadeira atitude do duque. O embaixador admitiu ter ouvido dizer que o duque não estava satisfeito com a situação que lhe fora criada, mas que os boatos exageravam muito.
Combinámos alguns pormenores sobre as comunicações com a Repartição Central de Berlim e discutimos depois problemas gerais de Portugal. A influência britânica era grande, mas, por outro lado, temia-se que os Estados Unidos decidissem servir-se do país como testa de ponte para uma invasão mediterrânica, da África especialmente. A agitação no país era ainda grande, embora Salazar tomasse medidas muito enérgicas e pertinentes para equilibrar a economia. E também não devia subestimar-se a influência soviética nas grandes cidades, especialmente em Lisboa. O potencial do exército português aumentara, mas não podia considerar-se um factor determinante, salvo talvez no que dizia respeito às defesas costeiras, objecto de cuidados atentos, A polícia portuguesa trabalhava com método e contava com extensa rede de informadores. Havia competição entre ingleses e alemães para adquirirem influência dominante junto dela.
Quando o embaixador von Huene se sentiu mais confiante disse-me que se sentira tranquilizado ao compreender que a minha missão não consistia em tornar mais tensas as relações entre Portugal e a Alemanha. Falámos depois do incidente de Venlo. Disse-me ter recebido sobre o assunto informações inteiramente dignas de crédito e muito interessantes. A Grã-Bretanha e a França acreditaram realmente na existência de uma séria conspiração dentro do exército alemão, o que influenciara a respectiva política de maneira muito mais decisiva do que queriam admitir. Principalmente a França, cujo governo chegara à ridícula conclusão de que a Alemanha estava de tal modo enfraquecida interiormente pela oposição ao regime nazi que não podia considerar-se um inimigo de temer.
No dia seguinte voltei a casa do meu amigo japonês. Graças à sua organização fizera trabalho excelente. Deu-me um desenho detalhado da casa, com o número de criados e de guardas fornecido pela polícia portuguesa. Esclareceu-me também acerca das forças de segurança britânicas e sobre detalhes da vida rotineira da casa.
À noite tive longa conversa com o meu outro amigo, o português, Sabia que estava em dificuldades financeiras e por isso ofereci-lhe imediatamente uma boa soma em troca de um quadro completo da situação entre os altos funcionários portugueses. Passada uma hora tinha comigo as informações pedidas. A influência britânica, baseada em tradição e experiência antigas, era incontestavelmente maior; mas, por outro lado, o terreno ganho recentemente pela Alemanha era surpreendente. Senhor de todas essas informações e gastando dinheiro à larga, desenvolvi então uma considerável actividade subterrânea.
 
 
Lisboa, 1938



 
 
Em dois dias estabeleci estreita rede de informações em volta da residência do duque. Conseguira substituir a guarda da polícia portuguesa por gente da minha confiança. Também arranjara informadores entre os criados, de tal modo que ao fim de cinco dias estava ao facto dos mínimos incidentes e de todas as palavras pronunciadas na casa do duque, Também o meu amigo japonês trabalhava à sua maneira, discreta e eficaz, e a sociedade portuguesa constituiu uma terceira fonte de informações, Ao fim de seis dias tinha um quadro completo da situação; o duque de Windsor já não tinha ideias de ir à tal caçada; andava muitíssimo aborrecido com a estreita vigilância de que era alvo por parte dos serviços secretos britânicos; a nomeação para governador das Bermudas não lhe agradava e preferia nitidamente poder ficar na Europa. Contudo, não tinha a mínima intenção de ir viver para um país neutro ou inimigo. Segundo o que pude obter, limitara-se a afirmar, certo dia, num círculo de amigos portugueses, que preferia ir viver em qualquer país da Europa que ir para as Bermudas.
Apesar disso, todos os meus informadores eram de opinião de que talvez fosse possível influenciar o duque, principalmente se se conseguisse aumentar a aversão, já então viva, contra a guarda secreta. Por isso consegui que um alto funcionário da polícia portuguesa prevenisse o duque da necessidade de reforçar a polícia por causa da vigilância exercida pelo serviço de informações inglês ou pelo inimigo. Como Portugal não sabia de qual deles se tratava, preferia tomar as suas precauções. Nessa mesma noite organizei um incidente no jardim da casa: pedras atiradas contra os vidros, e a seguir uma busca minuciosa à casa, o que criou, naturalmente, certo clima de agitação. Foi o momento de lançar entre a criadagem o boato de que o incidente fora suscitado pelos serviços secretos britânicos, que desejavam tornar a estadia do duque o menos agradável possível, para o forçarem a seguir para as Bermudas. Quatro dias depois entregaram à porta da casa um ramo de flores acompanhado de um bilhete: «Tome cuidado com as maquinações do serviço secreto britânico – Um amigo português que muito zela os vossos interesses!»
Tudo isto, é certo, não tinha grande importância mas contribuía para criar uma atmosfera de suspeita e mal-estar. Tinha de agir de uma maneira ou de outra, pois de Berlim reclamavam notícias a toda a hora, e esses incidentes, um tanto dramatizados, serviam de alimento aos relatórios que tinha de enviar.
Ao fim de uma semana o meu amigo japonês recomendou-me a maior prudência, pois estava convencido de que os serviços secretos britânicos estavam atentos. De facto, tivera a sensação de ser seguido por dois agentes britânicos e fizera o possível por os despistar. (Quando, em 1945, fui interrogado pelos serviços secretos britânicos percebi que na altura nada sabiam dos meus planos e ignoravam até a minha presença em Portugal).
As respostas de Berlim eram cada vez mais frias. E de repente, ao fim de uma quinzena, um telegrama de Ribbentrop: «O Führer ordena que o rapto seja organizado imediatamente.» Era um golpe inesperado e, tendo o duque intenções tão pouco conformes aos nossos objectivos, um rapto seria acaba loucura. Que fazer? Estava convencido de que fora Ribbentrop quem provocara a ordem. Via a situação de um ponto de vista falso e provavelmente – mais que provavelmente – falsificara os meus relatórios para melhor persuadir Hitler a sancionar esta última loucura.
O embaixador ficou tão aborrecido como eu, embora lhe desse a garantia imediata de que não tinha qualquer intenção de cumprir a ordem. À noite discuti a questão com o amigo japonês. Pareceu-me ler-lhe no olhar uma ponta de desprezo. Ficou muito tempo silencioso e depois disse-me: «Uma ordem é uma ordem e deve ser executada. E, afinal, não deve ser assim tão difícil. Terá todo o apoio e a ajuda de que necessitar e o elemento surpresa jogará a seu favor. O seu «Führer», prosseguiu, depois de outra pausa, «sabem com certeza porque quer ter o duque de Windsor na mão. Que quer realmente de mim? Saber como cumprir a ordem ou como desembaraçar-se dela?»
Surpreendido e ferido por o meu amigo ter julgado necessário chamar-me ao cumprimento do dever, tentei explicar-lhe que Hitler tomara a decisão baseado em informações falsas.
Com um leve gesto, respondeu: «A maneira como há-de justificar.se perante o seu Führer não é, precisamente, da minha conta. Não percamos tempo; vejamos antes como poderá iludir a ordem. Você não pode ficar mal – quer dizer, temos de arranjar as coisas de maneira a que a sua acção se torne completamente impossível. Nesse ponto não posso ajudá-lo, pois não tenho qualquer influência sobre os responsáveis pela segurança do duque, mas a guarda deve ser reforçada de tal modo que qualquer recurso à força seja impossível. Acuse, se quiser, um funcionário da polícia portuguesa dizendo suspeitar que trabalha para os ingleses. Pode mesmo ir ao ponto de organizar uma pequena fuzilaria que, naturalmente, a nada conduzirá. E talvez, se tiver um bocadinho de sorte, o duque perca o domínio dos nervos e acuse os seus!»
Nada mais tínhamos a dizer. Deixei, vagarosamente, a casa do amigo japonês. Estava uma noite esplêndida, clara e estrelada, mas eu não conseguia encontrar a paz. Tinha de resolver uma situação das mais espinhosas, tanto mais que era impossível sondar a atitude dos dois guarda-costas que Heydrich me impusera ridiculamente.
Nessa noite jantei num restaurante com o meu amigo português. Estava estafado e com pouca vontade de falar do assunto, mas só para ver a reacção disse: «Amanhã tenho de fazer o duque de Windsor atravessar a fronteira à força. E o plano tem de ficar, totalmente, em ordem esta noite.»
O amigo saiu do seu habitual torpor quando me ouviu dizer: «Com quantas pessoas, que devem sair do país logo a seguir, posso contar? E quanto poderá custar tudo?»
O português pareceu-me aterrorizado: «Mas não posso ser responsável por um incidente desses. Pode haver morte de homem. E seria extremamente difícil, não só aqui, mas na fronteira…» Desenhava nervosamente figuras geométricas na toalha utlizando a faca. Depois de um longo silêncio, deu-me a resposta definitiva: «Não, não posso servi-lo se levar o duque pela força. A coisa sabe-se inevitavelmente e acho que o prestígio do seu país sofrerá. Além disso a ordem não fala na mulher. Tem razão, por detrás de tudo isto está, com certeza, Ribbentrop. Mas sejamos realistas: se acha que deve executar a ordem não lhe criarei dificuldades, mas não posso ajudá-lo!»
Respondi então que partilhava da mesma opinião. Ficou visivelmente aliviado e foi com entusiasmo, pode dizer-se, que examinou comigo a maneira de iludir a ordem. No outro dia de manhã tomou as disposições necessárias para que à guarda da casa fossem acrescentados mais vinte agentes. O caso provocou imediato aumento das forças de segurança inglesas. Dei parte dos dois factos a Berlim e pedi instruções complementares.
Durante dois dias de verdadeira ansiedade deixaram-me sem notícias. Por fim recebi uma resposta lacónica: «É responsável pelas medidas adaptadas à situação.» Mensagem, na verdade, pouco amena, mas provando que Berlim começava a encarar o assunto de modo um pouco mais sensato.
Entretanto o tempo passava e aproximava-se a data da partida do duque de Lisboa. Sir Walter Monckton, manifestamente funcionário dos serviços secretos britânicos, chegou de Londres para se assegurar de que o duque partiria na data marcada.
Para salvar as aparências comuniquei a Berlim, através de um relatório, as seguintes informações que me teriam sido fornecidas por um funcionário da polícia que trabalhava – sabíamos – para os ingleses: entre o duque e os serviços secretos britânicos levantara-se grande tensão nos últimos dias: o duque estava decidido a ficar na Europa mas havia forte pressão contrária. O serviço secreto britânico, com o objectivo de provar o perigo que o duque corria, por causa dos serviços secretos estrangeiros, tencionava colocar uma bomba ao retardador no navio, bomba que devia explodir horas antes da partida para as Bermudas, tomando-se naturalmente todas as medidas para que o duque não fosse vítima. Dados estes alarmes, a polícia portuguesa andava enervada, cheia de agitação e actividade. As medidas de segurança tinham sido reforçadas, o que me levava a insistir, uma vez mais, na impossibilidade do rapto.
No dia da partida do duque estava no salão da torre da embaixada alemã observando a cena com o meu binóculo. O barco parecia tão próximo que tinha a sensação que lhe poderia tocar. O duque e a duquesa subiram para bordo à hora marcada e vi também Monckton. Certa agitação em torno das bagagens de mão, pois a polícia portuguesa, no seu zelo, queria também revistá-las. Por fim, o navio levantou ferro e desceu o grande estuário do Tejo. Voltei lentamente a casa. Estava encerrado mais um capítulo.
 
Walter Schellenberg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário