Prossegue-se
a transcrição parcial, iniciada aqui, de um brevíssimo trecho d’A Campanha do Argus, de Alan Villiers, o retrato da partida dos
pescadores para os bancos da Terra Nova e da Gronelândia.
Uma
centena de rapazes, graduados da Escola de Pescadores, de Lisboa, foi recrutada
para a frota. Outros mais pequenos, da fragata-escola D. Fernando e de todas as escolas elementares de pesca, da costa
ocidental e da Madeira e Açores, vieram ocupar os lugares de aqueles. Oficiais
com o curso há pouco completado, a tinta dos diplomas ainda mal seca,
apresentavam-se diariamente nos seus navios, onde lhes distribuíam
imediatamente trabalho, às doze e quinze horas por dia, à maneira da pesca.
Como
já vinha perto o começo da última semana de Março, tal actividade ainda
aumentou. Entravam cada vez mais lugres e pequenos navios a motor: -
a graciosa frota de Viana do Castelo, que inclui os dois navios-motores de 70
dóris, São Rui e Santa Maria Madalena, construídos experimentalmente em 1939, como
uma resposta de Portugal à ameaça da pesca de arrasto, e ao mesmo tempo um
marcado êxito, pois reuniam o melhor do sistema antigo ao melhor do moderno; o
formoso lugre Hortense, que com o Santa Isabel eram talvez os mais bonitos
de todos; lugres de quatro mastros dos famosos estaleiros dos Mónicas, na
Gafanha, perto de Aveiro, em cujos cascos perfeitos se verificavam flagrantes
reminiscências das caravelas; e, com todos estes, um ou dois navios da velha
guarda, ainda robustos e aptos para se fazerem ao mar.
Sobressaindo
entre esses veteranos, via-se o único navio redondo, o encantador Gazela. Era um lugre com uma proa de
«clipper» e uma linha admirável desde a carranca esculpida do beque até ao
painel da popa. Em 1950, realizava-se a quinquagésima campanha transatlântica
de pesca. Ia aos bancos desde 1900 e à Gronelândia desde 1931; nos primeiros
dezassete anos de vida, antes de 1900, fora um vulgar barco de carga de longo
curso. Agora, comandava-o um rapaz de 24 anos, alegre e simpático, oriundo da
vila de capitães, de Ílhavo, um produto do novo Portugal marinheiro, com altas
classificações no liceu e na escola náutica, além de um cruzeiro no
navio-escola Sagres. Fizera apenas
quatro viagens aos bancos, mas descendia de uma velha família de lugres e
patachos, do Grande Banco. Tivera ocasião de fazer valer as suas aptidões um ou
dois anos antes, quando pudera substituir o capitão do seu navio, o Creoula, que adoecera gravemente.
Eu
já ouvira falar daqueles capitães de Ílhavo e da sua longa tradição de viagens
aos bancos. Ílhavo já mandava capitães e marinheiros para o Grande Banco, mesmo
antes da ilha da Terra Nova receber o seu nome actual. Comandar um patacho ou
um lugre, ou um desses navios-motores da pesca à linha, para uma viagem de seis
meses aos bancos e à Groenlândia, era coisa que qualquer dos seus homens do mar
podia fazer naturalmente.
Na
manhã de domingo, 26 de Março, a frota de Lisboa encontrava-se reunida. Uns
trinta barcos, dos quarenta e cinco navios de pesca à linha que tomavam parte
na campanha de 1950, viam-se no Tejo, todos alegremente embandeirados em arco e
com os convés repletos de pescadores. Estes tinham chegado nos comboios da
noite da Fuzeta e da Póvoa, Porto e Figueira da Foz, e, também em autocarros,
vindos de umas cinquenta aldeolas costeiras. As mulheres, sabendo próximo o dia
da partida, tinham consigo os filhos, e estes, sentindo a tensão nervosa ligada
a todas as partidas, mostravam-se desinquietos, embora lhes agradasse correr
pelo convés dos navios e brincar no aparelho.
Naquele
domingo, já com a frota no devido fundeadouro, junto de Belém, celebrou-se a
cerimónia especial da bênção no templo dos Jerónimos onde jazem os restos do
ilustre Gama e do poeta Camões, em túmulos de pedra marcados com os seus nomes,
em frente um do outro, no extremo ocidental do mosteiro. Neste monumental
recinto comprimiam-se os pescadores – os pescadores, os capitães, imediatos,
pilotos, mestres, os cozinheiros, as esposas e os filhos; com eles, dignitários
da Igreja e do Estado, ministros, almirantes, directores do Grémio dos
Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau e os organismos a eles ligados; o
comandante Henrique Tenreiro, o delegado do Governo junto do Grémio; o comandante
Tavares de Almeida, da armada portuguesa, que exerce as funções de capitão do
porto, no Estreito de Davis e nos bancos, para os barcos portugueses; o capitão
do Gil Eanes, o navio-hospital e de
assistência, com os seus oficiais e médicos; os rapazinhos da fragata D. Fernando e Glória (cujo majestoso
casco de velha teca avultava à testa da linha dos navios, no rio, como um
enorme cisne negro conduzindo um bando de graciosos gansos) e a Escola de
Pescadores; contingentes, em grande uniforme, da armada, exército e marinha
mercante; o capitão, oficiais e tripulação da fragata francesa L’Aventure, que vieram numa visita de
cortesia a Lisboa, antes de largar para os bancos a fim de apoiar os arrastões
franceses ali pescando, e, com todos estes, diversas agremiações e muitos civis
e estrangeiros. Lisboa quis que os seus pescadores soubessem que os votos da
cidade iam com eles, juntos com a bênção da Igreja.
Mas aquele era, antes de mais nada, o dia do
pescador. Uma centena deles, envergando as vistosas camisas aos quadrados, as
calças listradas e as grandes botas de borracha, conservava-se de pé, em duas
filas compactas, que atravessavam a rua, esperando a chegada dos dignitários.
Olhavam a pompa, os ornamentos e os galões doirados e o incidental encanto
feminino, mas viam também já as águas distantes, eternamente agitadas,
torturadas pelos ventos, acossadas pelos gelos flutuantes, onde todos, muito em
breve, se juntariam para ganhar arduamente a vida nos seus minúsculos dóris.
Podiam avistar dali os mastros e as bandeiras dos seus navios, além no rio, em
frente da porta do templo, e já de leste soprava o vento, que os levaria para o
mar. A própria igreja lhes fazia lembrar os navios, porque fora construída como
o casco invertido de uma grande nau, tendo por motivos muitos sinais da sua
profissão de mareantes.
Dentro,
a igreja, repleta de gente, estava toda enfeitada de flores, que também
graciosamente enchiam o altar-mor, onde ardiam velas. A bênção era dada por Sua
Exª o arcebispo de Mitilene, D. Manuel Trindade Salgueiro, ele próprio filho de
um pescador de Ílhavo, morto no mar e cuja família era bem conhecida de muitos
capitães e pescadores ali presentes. Depois da missa, falou aos pescadores,
para os quais pediu em palavras simples a protecção de Deus. Não necessitava de
lembrar-lhes que poderia estar a falar a homens, que sabiam o verdadeiro
significado do dever, para com Deus, para com a nação, para com a família e
para com o seu navio. Seguiriam viagem sob os olhos do Senhor e a Ele os
confiava, bem como as suas famílias: a todos desejava uma viagem próspera e
segura, e um pronto regresso. Falou em tom sereno, mas as palavras ouviam-se
nitidamente por todo o vasto templo, onde se apinhavam alguns milhares de
pessoas. Terminado o sermão e a cerimónia, o prelado seguiu, em solene
procissão, até à porta principal, abrindo o majestoso cortejo um pescador com
uma cruz de flores. Na avenida para lá da porta, o bispo deu a bênção aos
navios. De manhã, chovera um pouco, mas agora o sol brilhava numa luminosidade
primaveril e as vetustas pedras acinzentadas dos Jerónimos pareciam tocadas
duma quente emoção, enquanto o vento de leste suspirava brandamente no aparelho
dos navios.
Dessa
forma, findou a cerimónia e dispersou-se a multidão. Dois pescadores foram
levar um lindo ramo de flores ao Presidente do Conselho, Dr. Salazar,
apresentando-lhe os cumprimentos dos seus camaradas de todos os lugres. E,
naquela tarde, o espectáculo, no cais de Belém, foi animado por um contínuo
vaivém de dóris, entre os navios brancos e embandeirados e o cais de Belém, e
por uma regata de barquitos dos clubes náuticos, de velas coloridas, singrando
por entre a frota e lutando com a corrente rápida do Tejo. Nos dóris,
distinguiam-se mulheres e crianças, algumas transportando para terra pequenos
volumes de mão. Pelos degraus de pedra, junto da estação dos vapores, de onde
os dóris partiam e chegavam, passava uma corrente constante de pescadores.
Muitos deles levavam, numa mão, um garrafão de bom tamanho e, na outra, um
búzio. O garrafão, percebi logo que, segundo o costume, representava um
presente da família e continha uma boa pinga para os dias de festa e para as
ocasiões especiais. Como também levava, às vezes, óleo fervido para untar as
roupas de oleado. Mas os búzios – para que seriam?
Alan
Villiers
Talvez conheça, são dois documentarios sobre a pesca do bacalhau na terra nova
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=-zpMPmhPdWI
https://www.youtube.com/watch?v=R4ivTjzhM5Q
Andava à procura disso (lembrava-me de ter visto um documentário a preto e branco sobre este assunto que me tinha impressionado muito).
EliminarObrigado pela partilha.
Obrigado, também andava à procura deles!
EliminarCordialmente
António Araújo