A Amália e os Ranchos Folclóricos Luso-Americanos
(Lembrando
o 22.º aniversário da sua morte)
Durante uma das várias estadias da
Amália em casa do Dr. Veiga, em Waterbury, para convalescer de uma das três
operações feitas nos Estados Unidos, num domingo à tarde, depois do
portuguesíssimo e fartíssimo almoço do costume, realizou-se, no Clube Português
de Waterbury, um concurso dos Ranchos Folclóricos de Connecticut: o de
Hartford, filiado no Clube Português de Hartford; o de Bridgeport, filiado no
Clube Português Vasco da Gama; e os dois de Danbury: Rancho Folclórico do
Portuguese-American Club e Rancho Folclórico Filhos de Portugal.
Quanto aos cinco membros do júri, os
organizadores do concurso escolheram pessoas supostamente entendidas em voz,
dança, coreografia e cultura.
À distância do tempo – sei que deve
ter sido por meados da década de noventa do século XX – só lembro o nome de
dois desses membros do júri: o de Amália Rodrigues e o do abaixo-assinado.
Ciente da minha incompetência para jurado de um certame dessa natureza,
sobretudo por nunca ter gostado desse tipo de música e de dança - da música por
causa da desafinação e da gritaria; da dança por me obrigar a ver demasiadas
socas a escapar-se dos pés das moças e rolar estouvadamente pelo soalho; por me
obrigar, às vezes, a olhar para uma senhora entrada nos anos a contracenar com
um garoto imberbe, que poderia ser seu neto; numa palavra, por me obrigar a
violentar a minha formação estética, baseada essencialmente no axioma tomista
que define o belo como aquilo que, visto, agrada (pulchrum est quod visum
placet), - fiz saber aos responsáveis pela organização do concurso que deviam
escolher uma pessoa mais competente, mas a insistência foi tal, que eu não tive
outro remédio senão fazer o frete.
Para, de certo modo, procurar suprir
uma pequena parcela da minha inépcia, fiz questão de me sentar ao lado da
Amália, na esperança de me poder orientar por ela na avaliação, supondo,
naturalmente, que a diva era tão competente a avaliar a categoria de um rancho
folclórico do Portugal da diáspora como a cantar o fado. Erro meu. A Amália,
embora a convalescer de uma operação grave, mal o rancho começava a
encaminhar-se para o palco, em passo de marcha estrepitosa e desafinada, de um
modo geral, já ela estava a levantar-se da cadeira e a dançar e a cantarolar
com as cantadeiras.
Chegado o rancho ao palco, faz-se um breve silêncio, para permitir que
o director do rancho enuncie o nome da dança que vai ser executada, e,
ocasionalmente, também a sua proveniência. De repente, ouve-se o som do
acordeão ou dos acordeões, dos ferrinhos, do pandeiro e da pandeireta; ouve-se
a voz ou as vozes esganiçadas, em gritaria desafinada, da cantadeira ou
cantadeiras; ouve-se o ruido mal ritmado de sapatos e de socas no soalho
escorregadiço do palco, e vê-se a Amália a levantar-se maquinalmente da cadeira
e a cantarolar e a saracotear, toda entusiasmada.
Acaba o número e a Amália pega no formulário e no lápis e dá a nota. Eu
olho de soslaio e reparo que ela dá sempre a nota máxima: um A + (as notas iam
de F a A+). E eu, ciente da minha inépcia, mas atento aos mínimos pormenores,
por amor à justiça, esforço-me por imitar a Amália às avessas, o mais fielmente
possível, lamentando interiormente não ter as devidas credenciais para merecer
a honra de ser um jurado digno num concurso em que tanta e tão boa gente está
profundamente empenhada, num espírito de bairrismo de cortar à faca.
Ao primeiro número segue-se o
segundo; ao segundo segue-se o terceiro; ao terceiro segue-se o quarto; e a
Amália faz no segundo número o que fizera no primeiro; no terceiro faz o que
fizera no segundo; e no quarto faz o que fizera no terceiro, dizendo-me a
determinado momento, a exalar euforia, que repare bem como aquela boa gente,
embora com pouco talento, quase sem formação musical e artística, vibra de
orgulho e de portuguesismo, e que ela, Amália, oriunda do povo, amiga do povo,
gostaria mais de estar no palco a dançar e a cantar com os elementos do rancho
folclórico do que a fazer o papel de jurada.
Sai do palco o primeiro rancho, ao som
ruidoso da marcha com que a ele tinha subido briosamente; e ao primeiro rancho
segue-se o segundo e ao segundo segue-se o terceiro e ao terceiro segue-se o
quarto, e no fim dá-se aos ilustres jurados o tempo necessário para que possam
avaliar conscienciosamente a actuação dos quatro ranchos folclóricos,
classificando-os profissionalmente. A nota final é dada e é anunciada pública e
solenemente, do palco, pelo presidente do Clube Português de Waterbury e uma
estrondosa salva de palmas celebra a proeza do rancho vencedor, que é o Rancho
Folclórico do Clube Português de Hartford, por ter duas cantadeiras razoáveis,
por ter dois jovens exímios na interpretação do fandango do Ribatejo, por ter o
traje mais lindo e mais vistoso – o traje minhoto, creio que de Viana do
Castelo, novinho em folha - e por ser
constituído por gente jovem, alegre e elegante.
Mas quando eu julgava – de consciência tranquila, pelas razões aduzidas
acima – que todo o mundo estava feliz e contente, eis que vejo postar-se à
minha frente, com cara de poucos amigos, um antigo aluno meu na Universidade de
Connecticut, presidente do Rancho Folclórico Filhos de Portugal de Danbury, a
contestar a decisão do júri, proclamando, alto e bom som, que se tinha praticado
uma grande injustiça, ao atribuir o primeiro prémio ao Rancho Folclórico do
Clube Português de Hartford. Argumentava ele que bastaria só o facto de o
Rancho Folclórico Filhos de Portugal, constituído essencialmente por imigrantes
portugueses da Beira-Alta, especificamente de Gouveia e de Ceia, se apresentar
com um adestrado e valente cão Serra da Estrela, a comportar-se no palco como
se estivesse nos montes a guardar um rebanho de ovelhas dos ataques dos lobos
beirões, e se apresentar também com uma linda ovelha daquela região de
Portugal, a qual era ordenhada, por mão competente, durante a actuação do
rancho, permitindo que alguns elementos do rancho, no fim da actuação, pudessem
presentear a assistência e os membros do júri com saboroso queijo da serra,
feito do leite extraído das tetas da ovelha; bastaria apenas isso, continuava a
argumentar, em voz grossa, o meu antigo aluno, para já não falar do carácter
castiço da música e dos trajes, para que o seu Rancho Folclórico Filhos de
Portugal de Danbury fosse galardoado com o primeiro prémio e não com o segundo.
Que – rematava o meu antigo aluno muito irado, presumo que com mais coração que
razão – os membros do júri deviam ter vergonha na cara por haverem praticado
uma injustiça quase do tamanho da Serra da Estrela.
E enquanto eu arcava sozinho com as
queixas amargas do meu brioso e corajoso antigo aluno, rijo como o granito das
serranias da sua Beira-Alta, a Amália, momentaneamente esquecida das dores que
a apoquentavam, confraternizava, alegre e sorridente, com o seu povo: o bom e
genuíno povo português da diáspora, com quem ela, franca, orgulhosa e
magnanimamente, sempre se identificou.
António
Cirurgião
Mas não se dão conta de que tudo isso é reles, pacóvio, rasteiro? Isso nem sequer é música, é um so-li-do primário e grotesco , Amália é justamente ignorada fora dos PALOP, o fado é uma melopeia decadente, a música portuguesa é uma sabida nulidade absoluta na História da Música.
ResponderEliminar“S”eia
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