Em que posso ser útil?, por Pedro Vieira,
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021, é um documento/reportagem de
leitura obrigatória para quem pretenda entender a vida acidentada deste país de
empregados no comércio e nos serviços, com alta rotação e baixas qualificações,
em ambientes despersonalizados e virados para a faturação intensiva. Vamos
acompanhar conversas altamente impressivas com trabalhadores essenciais, na
generalidade dos casos com baixas remunerações, são eles que estão na linha da
frente do atendimento ao público, vamos ficar com uma ideia de como funciona o
seu quotidiano e os sonhos que acalentam. O autor recorda-nos que cerca de 45%
da população empregada em 2018 tinha apenas o ensino básico completo. “Quase
metade das pessoas empregadas tinham-se ficado pelo 9º ano de escolaridade. No
início do século, o cenário era bem mais desanimador (70% da população
empregada no ano 2000 tinha formação escolar ao nível do ensino básico), mas o
panorama ainda não é exatamente brilhante”. Cresce a mão-de-obra e menos qualificada,
nem sempre são só jovens, é visível a dificuldade em encontrar emprego. E Pedro
Vieira adiciona mais números para tornar o quadro mais percetível: “Quase sete
em cada dez trabalhadores exercem a sua atividade no setor, fator a que não
será alheio o crescimento sustentado do turismo no nosso país. Portugal tem
6,7% da população empregada nesta área, contra 4,9% da União Europeia a 28”. O
setor dos serviços representava 52% do emprego em 2000, na atualidade a
percentagem trepou para 69%. E igualmente enfatiza o empolamento da cultura
shopping: em 2008, os centros comerciais portugueses faturaram 10 mil milhões
de euros. Atingimos a saturação. Em décadas, o setor produtivo está de pernas
para o ar, chegou a hora de interrogar diferentes protagonistas, que ele assim
apresenta: “Os meus entrevistados têm idades relativamente próximas e
escolhi-os também em função disso: dos que estão no ativo, todos pertencem ao
segmento dos 25-44 anos, que representa mais de 40% da força de trabalho
empregada. A estes juntei o testemunho de dois reformados da Função Pública,
que passaram a vida profissional a fazer atendimento em vários balcões e
circunstâncias. São as palavras e as experiências e os desabafos do Ricardo, do
João e da Lurdes, do Marcelo, da Soraia e da Vanessa que emolduram este
retrato”.
Alguns deles parecem
globetrotters, é o caso de Ricardo, 34 anos, fez atendimento especializado num
call center ao serviço da Apple, trabalho em regime de part-time enquanto
frequentava o mestrado na Faculdade de Belas-Artes; passou depois para o Centro
Cultural de Belém, daqui seguiu para Roma ao abrigo de um programa europeu,
voltou a Lisboa e regressou ao Museu Berardo, voltou a um call center,
conta-nos a sua experiência por inteiro, trabalhou para a Living Brands Portugal,
esgotou-se, acabou por sair, trabalhou a recibos verdes numa instituição
pública, hoje trabalha em produção, igualmente em regime de prestação de
serviços. João e Lurdes atenderam o público num centro de saúde, João começou
num ateliê de arquitetura paisagista no início dos anos 1970, veio o 25 de
Abril e concorreu aos Serviços Médico-sociais, esteve na sede dos Serviços e
depois foi para o Serviço de Atendimento Permanente (SAP); Luísa entrou para a
Função Pública em 1972, está perfeitamente à vontade para dizer que a
capacidade de resposta é cada vez mais diminuta, distingue a natureza de
públicos, pessoas agressivas e pessoas humildes, já estão os dois reformados,
João recorda que nos últimos tempos que esteve ao serviço estava no
acompanhamento dos pedidos de tratamento de fisioterapia e terapia da fala,
havia a duração do tratamento, a burocracia da interrupção era por vezes uma
ignomínia. Temem que no futuro a degradação destes serviços seja ainda muito
maior.
Marcelo trabalha em
restauração, começou numa pastelaria aos 14 anos numa zona periférica de
Lisboa, seguiu-se uma pizzaria na Rua de Santa Marta em Lisboa, o pai
acenou-lhe com o Brasil, foi e achou aquilo tudo frustrante, voltou à pizzaria,
seguiu-se um wine bar no Chiado, apaixonou-se pela enologia; migrou para
um mítico restaurante, é um texto espantoso aquele que Pedro Vieira nos oferece
sobre as observações de Marcelo e a sua comunicação com os clientes.
Soraia trabalha na
bilheteira do cinema São Jorge, já fez pela vida em lojas de roupa e foi
promotora de internet móvel, a espaços, Soraia sente-se desgastada em períodos
de maior pressão em termos de programação, gente a protestar porque se enganou
no dia e hora do bilhete, gente que procura borlas, há espetadores intrusivos.
Mas acima de tudo, gosta do que faz, apesar das reclamações, das batalhas pelos
convites.
Vanessa é uma vendedora de
alta competição, trabalho no Colombo, pertence à classe dos
trabalhadores-estudantes, está na Licenciatura em Educação Física e Desporto,
faz comentários maravilhosos: “Na Nike estamos fardados de cima a baixo com
roupa que pode custar mais de 300€, e a abordagem é logo outra. As pessoas
perguntam: ‘Pode ajudar-me, por favor?’. Na Sport Zone isso era raro. Era mais
‘pssst, pssst!’. Isso faz toda a diferença. Tendo em conta a loja que é, a
Sport Zone recebe carradas de gente, carradas, e na Nike já não é assim”.
Vanessa dá pormenores de como as grandes empresas constroem a marca, abandonam
designações, ficam conhecedores das novas coleções, é uma formação que permite
aumentar a empatia junto do consumidor. Recebe um ordenado base ao qual são
adicionadas as comissões por cada venda.
Pedro Vieira analisa este
carrossel de trajetórias, disseca os comentários dos entrevistados. Acabou o
seu livro em 2019, tudo parecia relativamente estável na vida destas pessoas. O
próprio autor testemunha como a sua vida seguiu por uma via sinuosa, trabalhou
numa reputada livraria que desapareceu, deu origem a uma outra que se extinguiu
sem apelo nem agravo. Assistiu ao afundamento do mercado livreiro, ingressou na
faraónica Byblos, nas Amoreiras, apresentada como a maior e mais completa
livraria do país, que também soçobrou. Dá-nos parágrafos divertidos sobre outro
transcurso profissional: “Foi na Almedina que acabei por passar o maior período
de tempo consecutivo a atender ao público, dois anos e meio ao todo, com a
particularidade de ter tido de aprender noções muito básicas de Direito, pelo
menos ao nível da edição. Saber distinguir o Civil do Processo Civil, o Penal
do Processo Penal. Descobrir a existência do título Crimes Sexuais com
Adolescentes. Perceber a importância que Marcello Caetano mantém ao nível
do Direito Administrativo”. Os entrevistados procuraram aguentar os estremeções
da pandemia conforme puderam. E assim finaliza, interrogativo: “Vai mesmo ficar
tudo bem? Num momento de enorme inquietação e de impotências sem conto, em que
podemos ser úteis, afinal?”. De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
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