Salgueiro Maia: “Diz-me o teu nome e sais de Santarém/ trazendo a espada e a flor da liberdade”, Manuel Alegre
É uma obra de tocante
homenagem, uma edição simultânea em duas línguas, Salgueiro Maia, das
guerras em África à Revolução dos Cravos, por Moisés Cayetano Rosado,
Edições Colibri, Associação 25 de Abril, Associação Salgueiro Maia, 2021. O
retrato de uma figura que correu mundo, um homem em cima de uma Chaimite,
cumpriu o seu dever, tornou-se incómodo pelo que representava, não queria
pódio, coroa de louros, holofotes, transmitiu integralmente a imagem do militar
que queria apenas cumprir o seu dever, restituindo a liberdade à nossa pátria.
Dirão que é mais uma
biografia de Fernando José Salgueiro Maia, um olhar afetuoso sobre esse Capitão
de Abril que quis regressar prontamente ao quartel e que tão precocemente
partiu, abatido por uma doença incurável. O que nos prende, rememorando
acontecimentos e datas que se constituem iconográficas para gente da minha
idade é a admiração incontida do investigador andaluz que ajunta ao contexto
histórico da descolonização as páginas mais impressivas dos treze anos de
guerras coloniais, e, reconheça-se, tem sempre a maior utilidade para as novas
gerações dispor de um guia de referência sobre a evolução desses teatros de operações,
como se recrutava gente para a guerra, como os quadros do quadro permanente se
iam apercebendo da ausência de soluções num quadro de exaustão de meios, em que
era patente a elevada qualidade do armamento
dos guerrilheiros comparativamente com o utilizado pelas Forças Armadas
Portuguesas.
Salgueiro Maia ingressa
na Academia Militar com 20 anos de idade e dirá numa entrevista a Fernando
Assis Pacheco que então acreditava no Portugal uno e indivisível, aceitava
argumentação oficial e nas ambições das grandes potências. A sua comissão na
Guiné foi decisiva e deixará um escrito que é hoje um documento de referência
quanto à sua participação para pôr termo ao cerco de Guidage, acontecimentos
ocorridos em maio de 1973, veja-se este trecho que saiu do seu punho e que
consta das suas memórias Crónica dos feitos por Guidage:
“Debaixo de uma árvore
estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens
estão em cima de panos de tenda; no chão estão várias compressas brancas
empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por
todo o lado, a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de
moscas. Dirijo-me para ele, está com cor de cera, está praticamente nu, olha-me
como que em prece, ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o
furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar assim como as macas.
Dirijo-me ao ferido mais grave, o ferimento provém-lhe da perna, tem em cima
dela várias compressas empastadas de sangue; tiro as compressas e vejo que o
homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram
garrote. Alguém me respondeu que o enfermeiro está ferido. Começo a sentir
raiva. Continuo a tirar as compressas, que foram postas a monte, sem sequer
terem sido apertadas. O homem tem um estilhaço na zona da articulação do
joelho. Vê-se a tíbia; toda a carne se encontra como que seca, envolvendo um
buraco do tamanho de uma laranja”.
Pertence a uma plêiade
de oficiais que não têm qualquer ilusão de que a guerra para os portugueses entrou
num plano inclinado. O governo pretende recrutar a partir da camada de
milicianos que fizeram a guerra uma nova fornada de capitães, os que passaram
pela Academia Militar e já estiveram na guerra repontam, assinam documentos,
fazem tremer os ministérios, de um quadro reivindicativo tudo se transfere para
um movimento que conduza ao fim do regime, o autor dá-nos o apontamento desta
situação até chegarmos à Operação Fim-Regime, Salgueiro Maia sai de
Santarém com viaturas, antes falara com os seus subordinados, estes aderiram ao
levantamento. Do Terreiro do Paço seguem para o Largo do Carmo, Salgueiro Maia
fala com Marcelo Caetano, a seguir virá o general Spínola, que terá um
comportamento pouco deferente com Salgueiro Maia. E temos a história bem conhecida
de todo este período turbulento em que em dois momentos-chave, 11 de março e 25
de novembro, o capitão que metera Marcelo Caetano num blindado que depois o
levará ao exílio, será posto em causa devido ao seu comportamento íntegro. As
suas relações com Eanes passarão a meramente formais, e as chefias mais
conservadoras nas Forças Armadas claramente o marginalizaram, entregam-lhe
departamentos de rotina, foi colocado em serviços administrativos, destacado
para os Açores, aqui apupado e ameaçado por gente da FLA – Frente de Libertação
dos Açores. Em maio de 1979 volta a Santarém, mas para ficar à frente do
presídio militar local ocupando um posto de um sargento ajudante, dois anos
depois nomeado para Santa Margarida, com funções de instrutor. Em outubro de 1983
recebe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, mas não se sentirá compensado do
cortejo de humilhações que sofreu. Também por se sentir malquisto ou incómodo,
dá asas a um seu sonho cultural, torna-se membro da Associação Portuguesa dos
Amigos dos Castelos, entrega-se a inúmeras atividades, irá concluir um curso
universitário em Ciências Antropológicas e Etnológicas (1980), jamais
abandonará a sua equidistância face ao poder, mas não esconde o sabor amargo da
sua discriminação, como se confessa numa entrevista a Fernando Assis Pacheco,
em 1988: “deploro que tendo nós realizado um ato ímpar – pela primeira vez na
História da Humanidade, uma força militar realiza uma ação de destruição de um
poder sem se apropriar desse poder – isto que em todos os países é relevante,
passa aqui pura e simplesmente despercebido, ou então, ao contrário, serve de
base para sermos marginalizados, quando não tratados como traidores à Pátria”.
Adoece, é-lhe diagnosticado um cancro intestinal, vem a falecer a 4 de abril de 1992, pela capela da Academia Militar irão passar três antigos presidentes da República, o então presidente Mário Soares, membros do governo, dirigentes políticos. O autor é sempre afetuoso com Salgueiro Maia, não deixara de ir ao cemitério de Castelo de Vide, onde este herói do 25 de Abril está sepultado em campa rasa, dedica um poema a este ícone que esteve exatamente no dia e na hora em que se finou o Estado Novo no quartel da GNR no Largo do Carmo, poema que intitula os heróis marginalizados, e assim se despede: “A figura vai ganhando relevo com o tempo, à medida que sopra o vento, expulsa as folhas caídas e a rocha firme fica despida e limpa, os alicerces sobre os quais se levanta o país, um Portugal livre, dono do seu destino, enriquecido por uma revolução na qual a união do Povo com as suas Forças Armadas deram uma lição ao mundo”.
Um grande capitão. Ele não trouxe a espada... trouxe uma G-3.
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Saudações cordiais
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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