Em busca do Tosão de Ouro português:
de Bruges a Nicósia, partindo do Alto
da Ajuda
Parte I
A infanta profetisa
Sob
o brilho inaudito de centenas de diamantes, dezenas de rubis e de uma magnífica
safira de Ceilão, pende a patética figura de uma pele de cordeiro, em ouro
cinzelado, cravejado a diamantes. Capa da revista do Expresso no início deste ano, é uma condecoração singular que é
também uma jóia admirável – uma das mais espectaculares insígnias de ordem de
cavalaria alguma vez criadas, notável tanto pela beleza do seu desenho e pela
perfeição da sua execução, como pela sua grandiloquente desproporção.
O
Tosão de Ouro, magistral criação de David
Gottlieb Pollet em 1790 para o futuro Rei D. João VI, terá certamente um lugar
de destaque no novo Museu do Tesouro Real,
que no fim deste ano de 2021, segundo da era Covid, abrirá portas no alto da
Calçada da Ajuda após segunda inauguração. Será porventura o princípio do fim da
polémica sobre a conclusão do inacabado Palácio da Ajuda, que esteve para ser
ministérios e tantas outras coisas sem nunca deixar de ser uma ruína indigna.
Capa da edição 2520 da Revista E, do Expresso, de Fevereiro de 2021, com a insígnia de D. João VI da Ordem do Tosão de Ouro em tamanho real, apresentada como “a peça mais importante” do futuro Museu do Tesou
D. João, Príncipe Regente de Portugal
e futuro Rei D. João VI, co
Depois
de ter ornado o real e imperial peitilho na última década do século XVIII e nas
primeiras do XIX, foi remetido a mais de cem anos de escuridão num cofre, até
ser comprado por Salazar aos herdeiros do Rei D. Miguel, que recebeu a jóia na
partilha da herança do seu pai mas não a levou para o exílio.
Mas
a insígnia de D. João VI carrega consigo a história de uma ligação mais profunda
a Portugal, que nos remete para um tempo mais longínquo, nos alvores da
dinastia de Avis – e abre as portas para um périplo europeu em busca de sinais
dessa presença portuguesa no início da Ordem do Tosão de Ouro, uma das mais
prestigiadas condecorações do mundo, rivalizando apenas com a Ordem da
Jarreteira, criada quase um século antes em Inglaterra e que permanece
igualmente uma das mais exclusivas.
Isabel,
única infanta da Ínclita Geração,
tinha quase 33 anos quando se casou com Filipe III, o Bom, Duque da Borgonha.
Em 1430 a Borgonha era um portento da Europa, no auge do seu poder comercial e
da produção cultural do continente, além de que em desafio constante aos seus
suseranos, os Reis de França.
A
Flandres era o centro da corte da Casa da Borgonha. Através de uma política
muito activa de aquisições territoriais, Filipe III foi alargando progressivamente
o seu território, e aumentando o seu prestígio e a sua força militar. Com quase
34 anos e viúvo pela segunda vez, faltava-lhe o essencial para quem quer formar
uma dinastia. Não deixa de surpreender, nesse sentido, a opção pela infanta portuguesa,
que se poderia considerar demasiado madura para conceber o tão desejado
herdeiro.
Representação de Filipe III da Borgonha e Isabel de Portugal, que aparece envolta num manto com as armas nacionais, no Armorial de la Toison d'or da Biblioteca Municipal de Dijon.
Armas conjuntas de Filipe III da Borgonha e Isabel de Portugal no Armorial de la Toison d'or da Biblioteca Municipal de Dijon.
Quinze
anos antes, a Infanta tivera uma proposta de casamento do seu primo direito, o
Rei Henrique V de Inglaterra, que não se concretizou. A proposta borgonhesa
chegou ao Rei D. João I em 1428 e em Outubro do ano seguinte o fundador da
Dinastia de Avis despediu-se da filha, que partiu numa esquadra naval para uma
viagem turbulenta até ao Norte da Europa, mais refinado e exuberante do que a
corte portuguesa.
O
faustoso casamento entre Isabel e Filipe III celebrou-se a 7 de Janeiro de 1430
em L'Écluse (Sluis). Já em Bruges, no último dia das festas matrimoniais, a 10
de Janeiro, Filipe anunciou a criação daquela que haveria de se tornar uma das
mais cobiçadas ordens de cavalaria do Mundo para os séculos seguintes[i]
– e até aos nossos dias – tendo por símbolo uma excêntrica pele de cordeiro, em
ouro, designado tosão ou velo.
Subjacente
à escolha de tão peculiar símbolo não estava uma conotação religiosa, antes uma
evocação da mitologia grega. Ora, se os caminhos da História são por vezes
tortuosos e difíceis de deslindar, os da mitologia grega e romana, desligados
que estão dos grilhões castradores da realidade terrena, tornam-se verdadeiros
labirintos.
Filipe,
o Bom, terá encontrado na aventura de
Jasão e dos Argonautas e da sua heróica conquista do tosão de ouro a inspiração para a heroicidade que procurava nos
cavaleiros da sua nova ordem, os argonautas
da Borgonha, destinados a grandes feitos – ainda que já sem as sereias, os
dragões e outros seres imaginários que enriquecem o conto de Jasão.
Representação de Jasão depois de
resgatar o tosão dourado no livro Origen del orden militar
del Toisón de oro (1601) da Biblioteca Municipal de España.
Sucede
que as dificuldades de carácter do mítico Jasão, nomeadamente a afeição ao
perjúrio e ao adultério, não terão sido particularmente bem vistas na corte e,
em especial, pela Igreja. E foi por isso que, logo nas primeiras décadas da
Ordem do Tosão de Ouro – que coincidem com o acosso muçulmano a Consta
O
tosão é encontrado no Livro dos Juízes, concretamente na
história de Gedeão, propiciamente um heróico combatente de árabes pré-Islão, os
madianitas. Deus atribuiu a Gedeão a liderança de uma espécie de cruzada – em tudo semelhante à que
Filipe da Borgonha então se propunha a lançar para resgatar Constantinopla. A
prova ou o sinal de que Gedeão era o escolhido foi precisamente uma pele de
cordeiro, um velo de lã ou tosão (Jz
6, 36-40).
Página do Armorial de la Toison d'or (Biblioteca Municipal de Dijon) dedicado à fundação da Ordem, transcrevendo as duas linhas do epitáfio de Filipe III da Borgonha que respeitam à Ordem: “Pour maintenir leglise, qui est de Dieu maison | Jay mis sus le noble Ordre, quon nome La Thoyson”.
Guillaume
Fillastre, bispo de Tournai e segundo chanceler da Ordem, produziu literatura
em abundância para conciliar o pagão Jasão e o juiz Gedeão – um dos notáveis exemplares do seu De la Thoyson d'or encontra-se na nossa Biblioteca Nacional. O
obscuro Gedeão, que dificilmente poderia aspirar a muita notoriedade fora do
círculo dos mais doutos teólogos, foi então redescoberto para a fama da arte na
Renascença europeia, como novo padroeiro da Ordem do Tosão de Ouro. A mesma
glorificação coube ao infiel Jasão.
Ao
longo dos séculos têm resistido diferentes teorias quanto às razões de Filipe
da Borgonha para criar a Ordem naquele momento[ii].
Várias destas teorias afastam qualquer relação com o casamento, apontando a
escolha da ocasião apenas como um momento propício para causar efeito e
sensação, por parte do Duque, aproveitando o facto de estar reunida a corte e
garantindo a difusão quando os convidados regressassem aos seus territórios.
Miniatura de Rogier van der Weyden, representando
Filipe III, rodeado por vários Cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro, enquanto
recebe de Jean Wauquelin as Crónicas de Hainaut. (Wikipedia Commons)
Filipe III, o Bom, Duque da Borgonha, com hábito de Soberano da Ordem do Tosão de Ouro e o seu famoso chaperon (Biblioteca Nacional de França).
Filipe III, o Bom, Duque da Borgonha, com hábito de Soberano da Ordem do Tosão de Ouro (Biblioteca Nacional de França).
Em
sentido contrário, a escolha da divisa da Ordem – Aultre n'auray (“não terei outra”, como possível referência à sua
mulher) – parece reforçar a ligação a Isabel de Portugal, que, com inegável
sentido de humor provocatório, escolheu para sua divisa pessoal o resto da
frase: Tant que je vive (“enquanto eu
for viva”). Especula-se que esta poderia ser a resposta de Isabel aos rumores
que situavam a Ordem como uma homenagem à amante favorita de Filipe, cujos
lautos cabelos louros seriam evocados pelo cordeiro e o que explicaria a
escolha do infiel Jasão como inspiração.
*
* *
Aos
cavaleiros do Tosão de Ouro era recomendado que em todas as ocasiões usassem o seu
colar de ouro reluzente, para prestigiar a Ordem – só mais tarde se passou a
usar apenas a insígnia de pescoço, como a D. João VI. O duque borgonhês
empenhou-se em garantir a grandiosidade do cerimonial, com reuniões capitulares
com a máxima pompa, reguladas em cada pormenor protocolar, que suplantassem o
que até então se vira pela Europa, ansiando assim reforçar a sua pretensão de
independência[iii].
Representação de um dos faustosos capítulos da Ordem do Tosão de Ouro, presidido por um dos seus soberanos borgonheses (Filipe III ou o seu filho Carlos). (Biblioteca Municipal de Dijon)
Em
1432, apenas dois anos depois da fundação da Ordem, surgia na mesma corte outra
instituição que havia de ser alvo de admiração, intriga e cobiça para os
séculos seguintes – e igualmente até aos nossos dias. A sua riquíssima
iconografia e simbolismo, entrelaçam-se na da Ordem do Tosão de Ouro,
influenciando o seu cerimonial, mas entrelaçam-se também na nossa busca por
sinais da presença lusa.
A
6 de Maio, na Igreja de São João Baptista de Gante (hoje, Catedral de São
Bavão), era baptizado o segundo filho de Filipe e Isabel. O mais velho tinha
morrido nos primeiros meses desse mesmo ano e também aquele se seguiria pouco
depois. Mas se a breve vida de quatro meses não reservou ao neófito lugar na
História, o cenário da celebração religiosa ganhou vida própria desde o
primeiro dia.
O
baptismo teve lugar diante do famosíssimo retábulo do Cordeiro Místico, obra prima dos irmãos Hubert e Jan van Eyck,
mostrado nesse dia em avant-première.
Era o início de uma das histórias mais atribuladas da História da Arte, cheia
de aventura, resgates, roubos e mistério. Dürer, que terá visto o políptico em
Abril de 1521, chamou-lhe a mais bela pintura da Cristandade.
Sendo
verdadeiro milagre que permaneça quase intacto até aos dias de hoje, tem em
curso um ambicioso projecto de restauro que durará, na totalidade, cerca de um
quatro de século, para devolver os painéis ao estado original. Neste mesmo ano
de 2021, o retábulo já parcialmente restaurado foi colocado num novo
local dentro da Catedral de Gante, protegido de quase tudo o que já se cruzou
com tão singular jóia em perto de 600 anos, incluindo da luz, dos iconoclastas
e dos ladrões.
O
Cordeiro Místico tem, quando
fechado, 12 tábuas autónomas, representando as 4 centrais a Anunciação do
Anjo a Nossa Senhora, que ocorre no belíssimo interior de uma casa flamenga, com
vistas para uma das cidades do Ducado. Por cima, dois profetas (Miqueias e
Zacarias) e duas sibilas (profetisas imp
Painéis centrais do retábulo do
Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eyck, quando fechado, representando a
Anunciação do Anjo a Nossa Senhora, já depois do restauro. (Imagens: closertovaneyck.kikirpa.be)
Pormenores do painel central do retábulo do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eyck, quando aberto, representando a Adoração do Cordeiro, já depois do restauro. (Imagens: closertovaneyck.kikirpa.be)
Quando
aberto,
o retábulo tem outras 12 tábuas, formando as seis inferiores uma cena, no
centro da qual está o Cordeiro Divino, para o qual se viram todas as atenções
de anjos, santos, bispos e reis que se multiplicam nas diferentes tábuas, numa
magnífica mise-en-scéne do texto do
Apocalipse de São João. Cada uma destas tábuas foi já profusamente estudada nos
seus pormenores belíssimos, de uma grande riqueza iconográfica e extraordinária
qualidade de execução. O restauro em curso tem permitido remover grande parte
dos repintes para permitir redescobrir o trabalho original.
Jan
van Eyck, o mais novo e mais famoso dos irmãos e autor de grande parte do
retábulo depois da morte de Hubert em 1426, veio a Portugal em 1428 na
embaixada enviada pelo Duque da Borgonha para pedir a mão da Infanta Isabel ao
Rei D. João I[iv].
A peste de então, ainda sem dados diários por concelho e centena de milhar de
habitante, obrigava a corte à itinerância e os embaixadores de Filipe III foram
encontrar o Rei, a Infanta e os seus ínclitos irmãos na sede da dinastia, em
Avis.
Foi
ali que Jan van Eyck, pintor da corte e membro do séquito pessoal de Filipe III
há vários anos, cumpriu o propósito da sua vinda: o retrato da Infanta, pintado
em Avis, foi enviado para a Flandres, juntamente com a resposta do Rei D. João
I à proposta borgonhesa. Van Eyck permaneceu em Portugal mais alguns meses,
enquanto decorreram as negociações. A sua influência na arte portuguesa e nos
célebres pintores que se formaram nesses anos de ouro é reconhecida pelos
historiadores.
Se
o retrato de van Eyck se perdeu uns séculos mais tarde, restam felizmente
cópias do mesmo que nos permitem vislumbrar a Infanta D. Isabel antes dos seus
anos no Norte da Europa e a forma como a mestria do flamengo a colocou,
elegante e sedutora, sob um toucado de pérolas. A Torre do Tombo conserva
uma das cópias existentes. Na moldura lê-se:
“C'est la pourtraiture qui fu envoiée a
Philippe duc de Bourgogne et de Brabant, de Dame Isabel, fille de roi Jean de
Portugal et d'Algarbe, seigneur de Septe par lui conquise, qui fu depuis femme
et épouse de dessus dit duc Philippe.”[v]
Cópia do retrato de Jan van Eyck da Infanta D. Isabel de Portugal, depois Duquesa da Borgonha, que pertence ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com a inscrição na bordadura. (Imagem: ANTT)
No
primeiro volume dos seus “Livros Antigos
Portugueses” (Londres, 1928), o Rei D. Manuel II referia ser também
possuidor de uma cópia semelhante – porventura a mesma, comprada em leilão e
integrada mais tarde nas colecções nacionais – e descrevia desta forma a
infanta: “Tem egualmente o olhar semi
serrado, e sobretudo o esboço de sorriso, que se é alegre, tem tambem ironia.”[vi]
As
cópias do retrato permitiram mais recentemente a alguns autores, o primeiro dos
quais terá sido Volker Herzner, especular sobre a verdadeira identidade de uma
das figuras nas tábuas da parte exterior do retábulo do Cordeiro Místico de Gante: segurando uma faixa onde se intui ler “REX ALTISSIMUS ADVENIET PER SECULA FUTURUS
SCILICET IN CARNE”, a Sibila de Cumas,
vestindo de verde e com um imponente barrete cravejado de pérolas, tem
inegáveis semelhanças com a Isabel de Portugal do retrato cujo original se
perdeu[vii].
A
mensagem que carrega (“O Rei Altíssimo virá com forma humana pelos séculos”)
poderia, de facto, corresponder a uma mensagem política subliminar sobre as
pretensões de independência do Ducado da Borgonha, que nesse momento travava
uma feroz guerra com a França e cujas esperanças estavam no nascimento de um
herdeiro de Filipe e de Isabel.
Indo
além da mensagem, a semelhança fisionómica e de vestuário entre as figuras dos
dois retratos é bastante esclarecedora, mesmo descontando tratar-se um deles de
uma “cópia tosca”, como lhe chamou o nosso último rei. Os vestidos são
praticamente idênticos, tal como o toucado e até o pormenor da costura lateral
do barrete, que arranca exactamente do mesmo sítio da orelha. Na extraordinária
semelhança do conjunto reside a confirmação de que não se terá perdido
totalmente a representação da Duquesa Isabel por van Eyck.
Quando
postos lado a lado, a principal diferença entre as duas figuras, além da
expressão mais serena e sóbria da Sibila, é na mão direita, que no retábulo de
Gante repousa sobre o ventre, o que parece reforçar a ideia do duplo
significado da mensagem profética.
A
teoria não convence todos os historiadores, entendendo alguns que na época, de
grande mortalidade infantil, seria mau augúrio representar a Duquesa de
esperanças[viii].
A semelhança é, contudo, avassaladora e inegável: Isabel de Portugal, Infanta
da Ínclita Geração, em cuja honra foi
fundada a Ordem do Tosão de Ouro, está muito provavelmente representada num dos
mais importantes tesouros da arte, disfarçada de profetisa.
Comparação entre a cópia de van Eyck e a Sibila de Cumas que se afigura ser uma representação da Duquesa da Borgonha.
Segundo
o Rei D. Manuel II, van Eyck teria homenageado a Infanta colocando as torres da
Sé de Lisboa entre o conjunto de monumentos que surge no fundo do painel
central. É difícil discernir, no elaborado fundo, as torres da catedral
alfacinha. Mas é verdade que entre a abundante vegetação surgem também árvores
que van Eyck só poderia ter visto durante as suas viagens, pelo que não seria
estranho que tivesse escolhido representar, na sua idealização da Jerusalém
apocalíptica, edifícios que vira na Península Ibérica.
A
história do retábulo do Cordeiro Místico
é um thriller avassalador. Escondido
dos iconoclastas durante as queimadas protestantes, foi cobiçado e roubado ao
longo dos séculos. Levado para o Louvre por Napoleão, foi devolvido após
Waterloo. Levado para Berlim durante a Grande Guerra, foi devolvido em 1920, para
ter dois painéis roubados em 1934. Um deles foi devolvido pelo ladrão; o outro,
o dos Juízes Justos, continua
desaparecido e surgem de vez em quando notícias sobre a sua possível
reaparição. O resto do retábulo, confiscado em 1942 por Hitler, teve ordem de
destruição caso a Alemanha fosse derrotada mas foi salvo do bunker nas minas de
sal de Altaussee e devolvido a Gante no final da Segunda Guerra.
O
Cordeiro Místico acabaria por
influenciar também a vida na corte de Filipe e Isabel, e as cerimónias da Ordem
do Tosão de Ouro. Em várias das Entradas
Solenes em cidades do ducado ao longo do seu reinado, houve representações
vivas da cena central da adoração do Cordeiro Místico. Barbara Haggh-Huglo,
musicóloga norte-americana especializada na Idade Média e na Renascença,
estudou a música e as cerimónias da Ordem do Tosão de Ouro[ix]
para concluir que o retábulo do Cordeiro
Místico teve um impacto profundo no cerimonial da Ordem mas também na
cristianização do tosão, que passou a
ser visto, depois da exegese de Guillaume Fillastre, como alegoria da
Anunciação e do próprio Cristo.
A
busca do Tosão de Ouro, agora insígnia real e não apenas objectivo mitológico
de Jasão, tornar-se-ia, a prazo, apetecível a todos os príncipes cristãos. De
resto, um certo renascimento do espírito das Cruzadas, a que o retábulo do Cordeiro Místico também apela, estava na
ordem do dia. Enquanto Portugal se preparava para a odisseia de África e,
depois, da conquista dos “mares nunca de antes
navegados”, na Borgonha preparar-se-ia em breve uma cruzada em que um
português se assumiria como futuro Rei de Jerusalém.
(Continua...)
*
* *
Ademar
Vala Marques
Outubro
2021
[i] Paviot, Jacques, Du nouveau sur la création de l'ordre de la
toison d'or, in Journal des Savants
Année 2002 2 pp. 279-298.
[ii] Para uma análise mais aprofundada,
recomenda-se Rey y Cabieses, Amadeo-Martín, La
Orden del Toisón de Oro: Vicisitudes y debates históricos desde su fundación
hasta la Guerra de la Independencia (1430-1700), in La Orden del Toisón de Oro: problemas y debates historiográficos desde
su fundación a la actualidade, Real Academia Matritense de Heráldica y
Genealogía, Madrid, 2020.
[iii] “El complejo ceremonial de la Orden del Toisón de Oro permitió a sus
primeros soberanos, sin ostentar el título de rey, revestirse con el lujo, la
apariencia, la etiqueta de la dignidad de auténticos reyes o emperadores.” (Rey
y Cabieses, op. cit., pág. 106)
[iv] Gonçalves, J. Cardoso, O Casamento de Isabel de Portugal com
Filipe-o-Bom, Duque da Borgonha e a fundação da Ordem Militar do Tosão de Ouro,
in Arqueologia
e História, Volume IX, Série 6.ª, 1930.
[v] Algo como: “É o retrato que foi enviado a Filipe, Duque da Borgonha e Brabante, da
Infanta Isabel, filha do Rei D. João de Portugal e do Algarve, senhor de Ceuta
por si conquistada, que foi depois mulher e esposa do dito Duque Filipe.”
[vi] Citado em Gonçalves, J. Cardoso, op. cit.
[vii] Em 1945, Jean Gessler, historiador
belga, defendeu que as Sibilas têm os nomes trocados, uma vez que a inscrição
que a Sibila de Cumas tem corresponde
aos Oráculos Sibilinos, associados à Sibila Eritreia. Assim sendo, Isabel de
Portugal estaria representada como Sibila Eritreia. (Breve nota na Revue belge de Philologie et d'Histoire
Année 1945, 24, pp. 496-7)
[viii]
Bernhard Ridderbos, Henk Th. van Veen, Anne van Buren, Early Netherlandish Paintings: Rediscovery, Reception and Research,
p. 58.
[ix]
Barbara Haggh-Huglo, The Mystic Lamb and the Golden Fleece: Impressions of the Ghent
Altarpiece on Burgundian Music and Culture,
Revue belge de musicologie, 2007
Fabuloso. Grato pela partilha. O saber nun ocupou lugar.
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Cumprimentos poéticos.
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Grande figura do Século XV europeu a nossa D. Isabel, filha de D. João I!
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