terça-feira, 12 de outubro de 2021

Em busca do Tosão de Ouro português: de Bruges a Nicósia, partindo do Alto da Ajuda.



 

Em busca do Tosão de Ouro português:

de Bruges a Nicósia, partindo do Alto da Ajuda



 

Parte I

A infanta profetisa

 

Sob o brilho inaudito de centenas de diamantes, dezenas de rubis e de uma magnífica safira de Ceilão, pende a patética figura de uma pele de cordeiro, em ouro cinzelado, cravejado a diamantes. Capa da revista do Expresso no início deste ano, é uma condecoração singular que é também uma jóia admirável – uma das mais espectaculares insígnias de ordem de cavalaria alguma vez criadas, notável tanto pela beleza do seu desenho e pela perfeição da sua execução, como pela sua grandiloquente desproporção.

 

O Tosão de Ouro, magistral criação de David Gottlieb Pollet em 1790 para o futuro Rei D. João VI, terá certamente um lugar de destaque no novo Museu do Tesouro Real, que no fim deste ano de 2021, segundo da era Covid, abrirá portas no alto da Calçada da Ajuda após segunda inauguração. Será porventura o princípio do fim da polémica sobre a conclusão do inacabado Palácio da Ajuda, que esteve para ser ministérios e tantas outras coisas sem nunca deixar de ser uma ruína indigna.

 

Capa da edição 2520 da Revista E, do Expresso, de Fevereiro de 2021, com a insígnia de D. João VI da Ordem do Tosão de Ouro em tamanho real, apresentada como “a peça mais importante” do futuro Museu do Tesouro Real.

 

D. João, Príncipe Regente de Portugal e futuro Rei D. João VI, com a insígnia do Tosão de Ouro ao pescoço, pintado por Domingos Sequeira em 1802. (Colecção do Palácio da Ajuda, fotografias do autor)

 

Depois de ter ornado o real e imperial peitilho na última década do século XVIII e nas primeiras do XIX, foi remetido a mais de cem anos de escuridão num cofre, até ser comprado por Salazar aos herdeiros do Rei D. Miguel, que recebeu a jóia na partilha da herança do seu pai mas não a levou para o exílio.

 

Mas a insígnia de D. João VI carrega consigo a história de uma ligação mais profunda a Portugal, que nos remete para um tempo mais longínquo, nos alvores da dinastia de Avis – e abre as portas para um périplo europeu em busca de sinais dessa presença portuguesa no início da Ordem do Tosão de Ouro, uma das mais prestigiadas condecorações do mundo, rivalizando apenas com a Ordem da Jarreteira, criada quase um século antes em Inglaterra e que permanece igualmente uma das mais exclusivas.

 

Isabel, única infanta da Ínclita Geração, tinha quase 33 anos quando se casou com Filipe III, o Bom, Duque da Borgonha. Em 1430 a Borgonha era um portento da Europa, no auge do seu poder comercial e da produção cultural do continente, além de que em desafio constante aos seus suseranos, os Reis de França.

 

A Flandres era o centro da corte da Casa da Borgonha. Através de uma política muito activa de aquisições territoriais, Filipe III foi alargando progressivamente o seu território, e aumentando o seu prestígio e a sua força militar. Com quase 34 anos e viúvo pela segunda vez, faltava-lhe o essencial para quem quer formar uma dinastia. Não deixa de surpreender, nesse sentido, a opção pela infanta portuguesa, que se poderia considerar demasiado madura para conceber o tão desejado herdeiro.

 

Representação de Filipe III da Borgonha e Isabel de Portugal, que aparece envolta num manto com as armas nacionais, no Armorial de la Toison d'or da Biblioteca Municipal de Dijon.

 

Armas conjuntas de Filipe III da Borgonha e Isabel de Portugal no Armorial de la Toison d'or da Biblioteca Municipal de Dijon.

 

Quinze anos antes, a Infanta tivera uma proposta de casamento do seu primo direito, o Rei Henrique V de Inglaterra, que não se concretizou. A proposta borgonhesa chegou ao Rei D. João I em 1428 e em Outubro do ano seguinte o fundador da Dinastia de Avis despediu-se da filha, que partiu numa esquadra naval para uma viagem turbulenta até ao Norte da Europa, mais refinado e exuberante do que a corte portuguesa.

 

O faustoso casamento entre Isabel e Filipe III celebrou-se a 7 de Janeiro de 1430 em L'Écluse (Sluis). Já em Bruges, no último dia das festas matrimoniais, a 10 de Janeiro, Filipe anunciou a criação daquela que haveria de se tornar uma das mais cobiçadas ordens de cavalaria do Mundo para os séculos seguintes[i] – e até aos nossos dias – tendo por símbolo uma excêntrica pele de cordeiro, em ouro, designado tosão ou velo.

 

Subjacente à escolha de tão peculiar símbolo não estava uma conotação religiosa, antes uma evocação da mitologia grega. Ora, se os caminhos da História são por vezes tortuosos e difíceis de deslindar, os da mitologia grega e romana, desligados que estão dos grilhões castradores da realidade terrena, tornam-se verdadeiros labirintos.

 

Filipe, o Bom, terá encontrado na aventura de Jasão e dos Argonautas e da sua heróica conquista do tosão de ouro a inspiração para a heroicidade que procurava nos cavaleiros da sua nova ordem, os argonautas da Borgonha, destinados a grandes feitos – ainda que já sem as sereias, os dragões e outros seres imaginários que enriquecem o conto de Jasão.

 

Representação de Jasão depois de resgatar o tosão dourado no livro Origen del orden militar del Toisón de oro (1601) da Biblioteca Municipal de España.

 

Alegoria de Filipe, o Bom, Duque da Borgonha, apresentado num pedestal, rodeado por Gedeão, à esquerda da imagem, e por Jasão, à direita, cada um deles segurando o tosão. Gravura de Manuel Salvador Carmona (1734–1820), de 1778, no Metropolitan.

 

Sucede que as dificuldades de carácter do mítico Jasão, nomeadamente a afeição ao perjúrio e ao adultério, não terão sido particularmente bem vistas na corte e, em especial, pela Igreja. E foi por isso que, logo nas primeiras décadas da Ordem do Tosão de Ouro – que coincidem com o acosso muçulmano a Constantinopla e finalmente com a queda do Império do Oriente, em 1453 –, se procura reenquadrar a simbologia nas Escrituras e nas virtudes cristãs.

 

O tosão é encontrado no Livro dos Juízes, concretamente na história de Gedeão, propiciamente um heróico combatente de árabes pré-Islão, os madianitas. Deus atribuiu a Gedeão a liderança de uma espécie de cruzada – em tudo semelhante à que Filipe da Borgonha então se propunha a lançar para resgatar Constantinopla. A prova ou o sinal de que Gedeão era o escolhido foi precisamente uma pele de cordeiro, um velo de lã ou tosão (Jz 6, 36-40).

 

Página do Armorial de la Toison d'or (Biblioteca Municipal de Dijon) dedicado à fundação da Ordem, transcrevendo as duas linhas do epitáfio de Filipe III da Borgonha que respeitam à Ordem: “Pour maintenir leglise, qui est de Dieu maison | Jay mis sus le noble Ordre, quon nome La Thoyson”.

 

Guillaume Fillastre, bispo de Tournai e segundo chanceler da Ordem, produziu literatura em abundância para conciliar o pagão Jasão e o juiz Gedeão – um dos notáveis exemplares do seu De la Thoyson d'or encontra-se na nossa Biblioteca Nacional. O obscuro Gedeão, que dificilmente poderia aspirar a muita notoriedade fora do círculo dos mais doutos teólogos, foi então redescoberto para a fama da arte na Renascença europeia, como novo padroeiro da Ordem do Tosão de Ouro. A mesma glorificação coube ao infiel Jasão.

 

Ao longo dos séculos têm resistido diferentes teorias quanto às razões de Filipe da Borgonha para criar a Ordem naquele momento[ii]. Várias destas teorias afastam qualquer relação com o casamento, apontando a escolha da ocasião apenas como um momento propício para causar efeito e sensação, por parte do Duque, aproveitando o facto de estar reunida a corte e garantindo a difusão quando os convidados regressassem aos seus territórios.

 

Miniatura de Rogier van der Weyden, representando Filipe III, rodeado por vários Cavaleiros da Ordem do Tosão de Ouro, enquanto recebe de Jean Wauquelin as Crónicas de Hainaut. (Wikipedia Commons)

 

Filipe III, o Bom, Duque da Borgonha, com hábito de Soberano da Ordem do Tosão de Ouro e o seu famoso chaperon (Biblioteca Nacional de França).

 


Filipe III, o Bom, Duque da Borgonha, com hábito de Soberano da Ordem do Tosão de Ouro (
Biblioteca Nacional de França).

 

 

Em sentido contrário, a escolha da divisa da Ordem – Aultre n'auray (“não terei outra”, como possível referência à sua mulher) – parece reforçar a ligação a Isabel de Portugal, que, com inegável sentido de humor provocatório, escolheu para sua divisa pessoal o resto da frase: Tant que je vive (“enquanto eu for viva”). Especula-se que esta poderia ser a resposta de Isabel aos rumores que situavam a Ordem como uma homenagem à amante favorita de Filipe, cujos lautos cabelos louros seriam evocados pelo cordeiro e o que explicaria a escolha do infiel Jasão como inspiração.

 

 

* * *

 

 

Aos cavaleiros do Tosão de Ouro era recomendado que em todas as ocasiões usassem o seu colar de ouro reluzente, para prestigiar a Ordem – só mais tarde se passou a usar apenas a insígnia de pescoço, como a D. João VI. O duque borgonhês empenhou-se em garantir a grandiosidade do cerimonial, com reuniões capitulares com a máxima pompa, reguladas em cada pormenor protocolar, que suplantassem o que até então se vira pela Europa, ansiando assim reforçar a sua pretensão de independência[iii].

 

Representação de um dos faustosos capítulos da Ordem do Tosão de Ouro, presidido por um dos seus soberanos borgonheses (Filipe III ou o seu filho Carlos). (Biblioteca Municipal de Dijon)

 

Em 1432, apenas dois anos depois da fundação da Ordem, surgia na mesma corte outra instituição que havia de ser alvo de admiração, intriga e cobiça para os séculos seguintes – e igualmente até aos nossos dias. A sua riquíssima iconografia e simbolismo, entrelaçam-se na da Ordem do Tosão de Ouro, influenciando o seu cerimonial, mas entrelaçam-se também na nossa busca por sinais da presença lusa.

 

A 6 de Maio, na Igreja de São João Baptista de Gante (hoje, Catedral de São Bavão), era baptizado o segundo filho de Filipe e Isabel. O mais velho tinha morrido nos primeiros meses desse mesmo ano e também aquele se seguiria pouco depois. Mas se a breve vida de quatro meses não reservou ao neófito lugar na História, o cenário da celebração religiosa ganhou vida própria desde o primeiro dia.

 

O baptismo teve lugar diante do famosíssimo retábulo do Cordeiro Místico, obra prima dos irmãos Hubert e Jan van Eyck, mostrado nesse dia em avant-première. Era o início de uma das histórias mais atribuladas da História da Arte, cheia de aventura, resgates, roubos e mistério. Dürer, que terá visto o políptico em Abril de 1521, chamou-lhe a mais bela pintura da Cristandade.

 

Sendo verdadeiro milagre que permaneça quase intacto até aos dias de hoje, tem em curso um ambicioso projecto de restauro que durará, na totalidade, cerca de um quatro de século, para devolver os painéis ao estado original. Neste mesmo ano de 2021, o retábulo já parcialmente restaurado foi colocado num novo local dentro da Catedral de Gante, protegido de quase tudo o que já se cruzou com tão singular jóia em perto de 600 anos, incluindo da luz, dos iconoclastas e dos ladrões.

 

O Cordeiro Místico tem, quando fechado, 12 tábuas autónomas, representando as 4 centrais a Anunciação do Anjo a Nossa Senhora, que ocorre no belíssimo interior de uma casa flamenga, com vistas para uma das cidades do Ducado. Por cima, dois profetas (Miqueias e Zacarias) e duas sibilas (profetisas importadas da mitologia clássica, neste caso a Sibila Eritreia e a Sibila de Cumas), todos anunciando o Salvador. Na parte inferior são representados os doadores do retábulo, Joost Vijdt e Lysbette Borluut, além de São João Baptista e São João Evangelista.

 

Painéis centrais do retábulo do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eyck, quando fechado, representando a Anunciação do Anjo a Nossa Senhora, já depois do restauro. (Imagens: closertovaneyck.kikirpa.be)

 

Painel central do retábulo do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eyck, quando aberto, representando a Adoração do Cordeiro, já depois do restauro. (Imagens: closertovaneyck.kikirpa.be)

 

 




Pormenores do painel central do retábulo do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eyck, quando aberto, representando a Adoração do Cordeiro, já depois do restauro. (Imagens: closertovaneyck.kikirpa.be)

 

 

Quando aberto, o retábulo tem outras 12 tábuas, formando as seis inferiores uma cena, no centro da qual está o Cordeiro Divino, para o qual se viram todas as atenções de anjos, santos, bispos e reis que se multiplicam nas diferentes tábuas, numa magnífica mise-en-scéne do texto do Apocalipse de São João. Cada uma destas tábuas foi já profusamente estudada nos seus pormenores belíssimos, de uma grande riqueza iconográfica e extraordinária qualidade de execução. O restauro em curso tem permitido remover grande parte dos repintes para permitir redescobrir o trabalho original.

 

Jan van Eyck, o mais novo e mais famoso dos irmãos e autor de grande parte do retábulo depois da morte de Hubert em 1426, veio a Portugal em 1428 na embaixada enviada pelo Duque da Borgonha para pedir a mão da Infanta Isabel ao Rei D. João I[iv]. A peste de então, ainda sem dados diários por concelho e centena de milhar de habitante, obrigava a corte à itinerância e os embaixadores de Filipe III foram encontrar o Rei, a Infanta e os seus ínclitos irmãos na sede da dinastia, em Avis.

 

Foi ali que Jan van Eyck, pintor da corte e membro do séquito pessoal de Filipe III há vários anos, cumpriu o propósito da sua vinda: o retrato da Infanta, pintado em Avis, foi enviado para a Flandres, juntamente com a resposta do Rei D. João I à proposta borgonhesa. Van Eyck permaneceu em Portugal mais alguns meses, enquanto decorreram as negociações. A sua influência na arte portuguesa e nos célebres pintores que se formaram nesses anos de ouro é reconhecida pelos historiadores.

 

Se o retrato de van Eyck se perdeu uns séculos mais tarde, restam felizmente cópias do mesmo que nos permitem vislumbrar a Infanta D. Isabel antes dos seus anos no Norte da Europa e a forma como a mestria do flamengo a colocou, elegante e sedutora, sob um toucado de pérolas. A Torre do Tombo conserva uma das cópias existentes. Na moldura lê-se:

 

C'est la pourtraiture qui fu envoiée a Philippe duc de Bourgogne et de Brabant, de Dame Isabel, fille de roi Jean de Portugal et d'Algarbe, seigneur de Septe par lui conquise, qui fu depuis femme et épouse de dessus dit duc Philippe.[v]

 

Cópia do retrato de Jan van Eyck da Infanta D. Isabel de Portugal, depois Duquesa da Borgonha, que pertence ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com a inscrição na bordadura.  (Imagem: ANTT)

 

No primeiro volume dos seus “Livros Antigos Portugueses” (Londres, 1928), o Rei D. Manuel II referia ser também possuidor de uma cópia semelhante – porventura a mesma, comprada em leilão e integrada mais tarde nas colecções nacionais – e descrevia desta forma a infanta: “Tem egualmente o olhar semi serrado, e sobretudo o esboço de sorriso, que se é alegre, tem tambem ironia.[vi]

 

As cópias do retrato permitiram mais recentemente a alguns autores, o primeiro dos quais terá sido Volker Herzner, especular sobre a verdadeira identidade de uma das figuras nas tábuas da parte exterior do retábulo do Cordeiro Místico de Gante: segurando uma faixa onde se intui ler “REX ALTISSIMUS ADVENIET PER SECULA FUTURUS SCILICET IN CARNE”, a Sibila de Cumas, vestindo de verde e com um imponente barrete cravejado de pérolas, tem inegáveis semelhanças com a Isabel de Portugal do retrato cujo original se perdeu[vii].

 

A mensagem que carrega (“O Rei Altíssimo virá com forma humana pelos séculos”) poderia, de facto, corresponder a uma mensagem política subliminar sobre as pretensões de independência do Ducado da Borgonha, que nesse momento travava uma feroz guerra com a França e cujas esperanças estavam no nascimento de um herdeiro de Filipe e de Isabel.


 

A Sibila de Cumas, no retábulo do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eyck (Imagens: closertovaneyck.kikirpa.be

 

Indo além da mensagem, a semelhança fisionómica e de vestuário entre as figuras dos dois retratos é bastante esclarecedora, mesmo descontando tratar-se um deles de uma “cópia tosca”, como lhe chamou o nosso último rei. Os vestidos são praticamente idênticos, tal como o toucado e até o pormenor da costura lateral do barrete, que arranca exactamente do mesmo sítio da orelha. Na extraordinária semelhança do conjunto reside a confirmação de que não se terá perdido totalmente a representação da Duquesa Isabel por van Eyck.

 

Quando postos lado a lado, a principal diferença entre as duas figuras, além da expressão mais serena e sóbria da Sibila, é na mão direita, que no retábulo de Gante repousa sobre o ventre, o que parece reforçar a ideia do duplo significado da mensagem profética.

 

A teoria não convence todos os historiadores, entendendo alguns que na época, de grande mortalidade infantil, seria mau augúrio representar a Duquesa de esperanças[viii]. A semelhança é, contudo, avassaladora e inegável: Isabel de Portugal, Infanta da Ínclita Geração, em cuja honra foi fundada a Ordem do Tosão de Ouro, está muito provavelmente representada num dos mais importantes tesouros da arte, disfarçada de profetisa.

 

Comparação entre a cópia de van Eyck e a Sibila de Cumas que se afigura ser uma representação da Duquesa da Borgonha.

 

Segundo o Rei D. Manuel II, van Eyck teria homenageado a Infanta colocando as torres da Sé de Lisboa entre o conjunto de monumentos que surge no fundo do painel central. É difícil discernir, no elaborado fundo, as torres da catedral alfacinha. Mas é verdade que entre a abundante vegetação surgem também árvores que van Eyck só poderia ter visto durante as suas viagens, pelo que não seria estranho que tivesse escolhido representar, na sua idealização da Jerusalém apocalíptica, edifícios que vira na Península Ibérica.

 

A história do retábulo do Cordeiro Místico é um thriller avassalador. Escondido dos iconoclastas durante as queimadas protestantes, foi cobiçado e roubado ao longo dos séculos. Levado para o Louvre por Napoleão, foi devolvido após Waterloo. Levado para Berlim durante a Grande Guerra, foi devolvido em 1920, para ter dois painéis roubados em 1934. Um deles foi devolvido pelo ladrão; o outro, o dos Juízes Justos, continua desaparecido e surgem de vez em quando notícias sobre a sua possível reaparição. O resto do retábulo, confiscado em 1942 por Hitler, teve ordem de destruição caso a Alemanha fosse derrotada mas foi salvo do bunker nas minas de sal de Altaussee e devolvido a Gante no final da Segunda Guerra.

 

O Cordeiro Místico acabaria por influenciar também a vida na corte de Filipe e Isabel, e as cerimónias da Ordem do Tosão de Ouro. Em várias das Entradas Solenes em cidades do ducado ao longo do seu reinado, houve representações vivas da cena central da adoração do Cordeiro Místico. Barbara Haggh-Huglo, musicóloga norte-americana especializada na Idade Média e na Renascença, estudou a música e as cerimónias da Ordem do Tosão de Ouro[ix] para concluir que o retábulo do Cordeiro Místico teve um impacto profundo no cerimonial da Ordem mas também na cristianização do tosão, que passou a ser visto, depois da exegese de Guillaume Fillastre, como alegoria da Anunciação e do próprio Cristo.

 

A busca do Tosão de Ouro, agora insígnia real e não apenas objectivo mitológico de Jasão, tornar-se-ia, a prazo, apetecível a todos os príncipes cristãos. De resto, um certo renascimento do espírito das Cruzadas, a que o retábulo do Cordeiro Místico também apela, estava na ordem do dia. Enquanto Portugal se preparava para a odisseia de África e, depois, da conquista dos “mares nunca de antes navegados”, na Borgonha preparar-se-ia em breve uma cruzada em que um português se assumiria como futuro Rei de Jerusalém.

 

(Continua...)

 

* * *

 

 

Ademar Vala Marques

Outubro 2021

 

 



[i] Paviot, Jacques, Du nouveau sur la création de l'ordre de la toison d'or, in Journal des Savants  Année 2002  2  pp. 279-298.

[ii] Para uma análise mais aprofundada, recomenda-se Rey y Cabieses, Amadeo-Martín, La Orden del Toisón de Oro: Vicisitudes y debates históricos desde su fundación hasta la Guerra de la Independencia (1430-1700), in La Orden del Toisón de Oro: problemas y debates historiográficos desde su fundación a la actualidade, Real Academia Matritense de Heráldica y Genealogía, Madrid, 2020.

[iii]El complejo ceremonial de la Orden del Toisón de Oro permitió a sus primeros soberanos, sin ostentar el título de rey, revestirse con el lujo, la apariencia, la etiqueta de la dignidad de auténticos reyes o emperadores.” (Rey y Cabieses, op. cit., pág. 106)

[iv] Gonçalves, J. Cardoso, O Casamento de Isabel de Portugal com Filipe-o-Bom, Duque da Borgonha e a fundação da Ordem Militar do Tosão de Ouro, in Arqueologia e História, Volume IX, Série 6.ª, 1930.

[v] Algo como: “É o retrato que foi enviado a Filipe, Duque da Borgonha e Brabante, da Infanta Isabel, filha do Rei D. João de Portugal e do Algarve, senhor de Ceuta por si conquistada, que foi depois mulher e esposa do dito Duque Filipe.

[vi] Citado em Gonçalves, J. Cardoso, op. cit.

[vii] Em 1945, Jean Gessler, historiador belga, defendeu que as Sibilas têm os nomes trocados, uma vez que a inscrição que a Sibila de Cumas tem corresponde aos Oráculos Sibilinos, associados à Sibila Eritreia. Assim sendo, Isabel de Portugal estaria representada como Sibila Eritreia. (Breve nota na Revue belge de Philologie et d'Histoire Année 1945, 24, pp. 496-7)

[viii] Bernhard Ridderbos, Henk Th. van Veen, Anne van Buren, Early Netherlandish Paintings: Rediscovery, Reception and Research, p. 58.






2 comentários:

  1. Fabuloso. Grato pela partilha. O saber nun ocupou lugar.
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    Cumprimentos poéticos.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Grande figura do Século XV europeu a nossa D. Isabel, filha de D. João I!

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