A morte como serviço público de
interesse geral, ou uma proposta modesta para a resolução do impasse
legislativo relativo à despenalização da morte medicamente assistida
A inclinação algo fatídica, ou simplesmente mórbida,
deste escrito tem uma explicação que convém avançar logo de início: a
incapacidade crónica do nosso legislador em resolver o problema da eutanásia e
do suicídio assistido, tendo o correspondente diploma sido já duas vezes rejeitado
pelo Tribunal Constitucional, para além de objeto de veto político pelo Senhor
Presidente da República.
É que, convenhamos, nos encontramos perante um problema
da maior relevância para os destinos da nação, estando nas mãos do legislador contribuir
de forma decisiva e expedita para a sua resolução. Trata-se de um problema que
não se coaduna com a aparente impreparação, ou incapacidade de outra ordem, dos
nossos legisladores para disponibilizarem ao conjunto dos cidadãos e demais
residentes, especialmente os idosos, a possibilidade de contribuírem voluntariamente
de forma significativa, através da própria morte, para o grande desígnio da
inversão da tendência aparentemente inexorável para o envelhecimento da
população nacional e a consequente situação insustentável que se vive no serviço
nacional de saúde.
É certo que nem tudo se perdeu ao longo das sucessivas
propostas desenvolvidas pelo legislador. Assim, nos primeiros projetos falava-se
ainda, em termos injustificadamente restritivos, da antecipação da morte
medicamente assistida em «situações de sofrimento extremo» ou «intolerável»,
com «lesão definitiva de gravidade extrema, ou doença incurável e fatal». Agora,
de modo muito mais razoável e socialmente ajustado, com a desejável abrangência,
fala-se de «situação de sofrimento de grande intensidade – definida por
referência ao «sofrimento físico, psicológico e espiritual» –, com lesão definitiva
de gravidade extrema ou doença grave e incurável».
São passos no caminho certo, que nos leva a encarar sem
rodeios a morte como uma opção livre de qualquer utente do serviço nacional de
saúde, seja qual for a índole do problema de saúde, real ou sentido como tal,
que o afete. Todavia, mesmo a atual proposta legislativa mostra bem a
necessidade de libertar a prática da morte medicamente assistida de um sistema
de intrincada distinções concetuais e definições legais que fazem certamente as
delícias de juristas e comissões de ética, mas nada acrescentam em termos de
proteção do único valor a respeitar na matéria: a livre decisão do indivíduo,
ainda que esclarecida pelos profissionais especializados e respaldada pelo impecável
funcionamento burocrático das estruturas do serviço nacional de saúde.
Por outro lado, não nos importa, reconheçamo-lo desde
logo, a situação do suicídio assistido, isto é, daqueles que estão, apesar de
tudo, em condições de pôr fim às suas vidas, ainda que com assistência de
terceiro. Procurar resolver um problema da magnitude daquele que nos ocupa unicamente
na perspetiva do respeito da capacidade de atuação do indivíduo autónomo é,
convenhamos, uma atitude claramente desadequada em face da gravidade dos interesses
sociais em presença e até de pendor acentuadamente elitista. É por outras
palavras, colocar acima da vontade a capacidade individual de a executar. O que
nos motiva é, pelo contrário, a inegável, e premente, dimensão social e
económica da questão.
Torna-se, pois, necessário encarar e formular o problema
partindo de novas bases.
A solução que propomos é, julgamos, simples e expedita,
envolvendo apenas leves alterações a um diploma já em vigor, relativo à
proteção do utente dos serviços públicos essenciais. Do que se trata é
simplesmente de acrescentar a morte assistida aos serviços públicos essenciais
já previstos na lei, a saber: o serviço de fornecimento de água, o serviço de
fornecimento de energia elétrica, de fornecimento de gás natural e gases de
petróleo liquefeitos canalizados, o serviço de comunicações eletrónicas, os serviços
postais, o serviço de recolha e tratamento de águas residuais, os serviços de
gestão de resíduos sólidos urbanos e o serviço de transporte de passageiros.
Parece ser evidente a proximidade entre a
disponibilização generalizada da morte assistida e os demais serviços públicos
essenciais que o Estado moderno coloca ao alcance de todos os cidadãos e
residentes. Com efeito, a aglomeração das populações nos espaços reduzidos das
grandes cidades, provocada pelo desenvolvimento industrial a partir dos séculos
dezanove e vinte, deu azo a novas condições e exigências para a condução
individual da existência. Ora, a concentração espacial da população
desencadeada pela industrialização levou a que o espaço de vida controlado pelo
indivíduo tenha diminuído cada vez mais (da casa, quintal e oficina para o apartamento
e o local de trabalho), enquanto a tecnologia expandiu muito esse mesmo espaço
de vida. Deste modo, a perda da proteção que uma certa independência dava à
existência individual foi compensada pela instituição de serviços que, graças
ao extraordinário desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, atendem às
necessidades do indivíduo e lhe tornam possível levar uma vida sem um espaço controlado
por ele: gás, água, energia elétrica, saneamento básico e, finalmente, morte.
Esta transformação vale para todos, independentemente do seu nível riqueza,
pois corresponde ao facto de que, no modo de vida dos povos altamente
industrializados, desapareceram as formas de existência autónomas e
autossuficientes.
Há, nesta conformidade, um traço em especial do regime a
que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais tendo em vista a
proteção do utente que nos parece especialmente promissor na resolução do
impasse legislativo a que chegámos.
Trata-se da regra que proíbe a imposição de consumos
mínimos de serviços de interesse geral. Com as necessárias adaptações, tal como
não é possível impor consumos mínimos ao utente dos demais serviços públicos
essenciais, também não deverá ser possível impor à pessoa que almeja a própria
morte quaisquer restrições à decisão tomada com esse fim decorrentes da sua
situação de saúde. Pelo contrário, é somente o respeito da vontade, real ou
presumida, de cada utente que urge acautelar, sendo certo que as estruturas do
serviço nacional de saúde saberão filtrar esse respeito em termos socialmente
adequados.
Encontrada, pois, a solução para o impasse normativo que
o legislador não quer, ou não se encontra em condições de ultrapassar, importa
afrontar a objeção da “rampa escorregadia” que muitos suscitam, ainda presos
num modo de pensar a questão tributário de atavismos resultantes de séculos de
imposição de uma moral social castradora da liberdade individual e avessa ao
funcionamento imperturbado das estruturas administrativas que são o seu
principal garante nos tempos atuais.
Tal como as considerações anteriores evidenciam, a morte
não é, já, no momento histórico presente, um acontecimento que ocorre num
espaço controlado pelo indivíduo, à semelhança do que sucede com os demais
serviços públicos de interesse geral. O reconhecimento desta dependência dá também
a resposta à principal objeção que nos poderia ser oposta: se o serviço
nacional de saúde tem como principal missão assegurar a vida, como justificar
que o mesmo assuma a tarefa de administrar a morte? Pois é precisamente esta a
questão essencial: se ao Estado cabe assegurar a vida, reconheça-se-lhe também a
capacidade, certamente menos pesada do ponto de vista económico, de administrar
a morte! De resto se, para se assegurar a vida nem sempre se respeita a vontade
individual, não temos razões para não acreditar que, ao menos na morte, prevalecerá
um respeito escrupuloso dessa vontade.
Rejeitamos, por último, que a implementação da proposta
agora formulada possa conduzir a uma compreensão das instalações hospitalares
como manifestações daquilo que alguns designam com o novo paradigma biopolítico
da modernidade, centrado no campo de extermínio. Estas, e outras visões apocalípticas
semelhantes, devem ser afastadas convictamente com base na simples observação
de que nunca, como nos tempos atuais, se deram tantas condições à vontade
individual para prevalecer sobre quaisquer outras considerações, sejam de que
índole forem. Resta-nos, a cada um de nós, aguardar o momento em que nos caiba
exercer essa vontade, sempre sob a tutela esclarecida de profissionais bem
preparados.
Miguel Nogueira de Brito
Muito bom
ResponderEliminarAtualmente o SNS não dá resposta em tempo util à prestação de servicos medicos de tratamento e cura dos doentes. Ao menos que seja eficaz na produção de abortos e suicidios . Uma politica de eugenizaçao ao estilo hitleriano só pode ser mais eficaz para colocar o portugal dos pequeninos na linha da frente.
ResponderEliminarNão percebi nada. No meio deste exercício argumentativo muito encaracolado, tão português, o autor está a dizer que existem efetivamente pessoas, eventualmente políticos, que querem matar os velhinhos como quem coloca um penso para uma ferida?
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