Que a Vida Nos Oiça, por Vicente Alves do Ó, escritor e realizador de cinema, Oficina do
Livro, 2023, é um belíssimo romance, feito de lutas renhidas entre o temor do
esquecimento e a demanda da verdade, no seio de uma família de laços quebrados
e de piedosas mentiras. Uma trama onde não falta o discurso direto, os
solilóquios, as frases enviesadas, a notícia de que à mãe do narrador foi detetado
o início da Alzheimer, um abalo que entra na trepidação do romance. O autor faz
questão de se nos apresentar, indicando onde mora, ali para os lados da Igreja
da Memória, na Ajuda, em Lisboa, num segundo andar construído em 1876: “O
apartamento não é um clássico lisboeta. Não tem um típico corredor de onde
nascem portas para quartos sucessivos e uma cozinha ao fundo, com marquise
adjacente e vista para as traseiras do quarteirão. Nada disso, é labiríntico,
quadrado, portas e mais portas. Assim que me mudei, tirei as portas, pintei as
divisões de várias cores, todas roubadas a catálogos ingleses do século XVIII,
comprei algum mobiliário com o que restou de uma herança pequena da minha avó.”
Vive entre 80 metros quadrados, os livros fazem-lhe companhia. Vive, pois, na
Calçada da Memória. A memória, insista-se, é o tema central de uma história em
que uma mãe doente guarda um enorme segredo e este filho começa a trabalhar na
ideia de um filme sobre a vida da mãe, com o objetivo de que esta consiga recordar
o seu passado quando a memória começar a falhar.
O cineasta anda falho de imaginação, nenhuma daquelas
propostas que apresenta à produtora parece ter pés para andar. A sua vida
afetiva também anda no estaleiro, refugia-se no álcool. É neste caldo que se
mete à procura do passado, folheia fotografias da sua infância, centra-se nos
pais e no irmão, há lacunas teimosas. “Não tenho fotografias do meu irmão, do
meu pai antes do meu nascimento e depois do meu nascimento tenho algumas só até
ao fim dos anos 80. Depois para. Deixámos de tirar fotografias (…) Posso
assinalar que o meu pai é a personagem que menos aparece no álbum. O meu pai e
o meu irmão Jaime. A razão é simples. O meu irmão Jaime morreu em 1985 e os
meus pais divorciaram-se cinco anos depois.”
É, pois, um passado envolto em mistério, uma neblina
cerrada, a mãe não ajuda. Vasco ainda gosta muito da Luísa, há muito de agreste
no que conversam, aliás ela pede para ele lhe deixar de procurar e dá uma
explicação lapidar: “Porque só te faz mal.” Vasco tem um grupo de amigos, é
nesse meio que se fala dos graves problemas daquela geração, alguém diz que vai
ser despedida, e procurar emprego aos 48 anos não vai ser pera doce, outro
alguém recorda-lhe o farto e eloquente currículo, a futura despedida reage:
“ – Arranjo o quê? Sabes quantas pessoas da nossa geração
fizeram engenharia, economia, advocacia, enfermagem e gestão de empresas?
Milhões. Fomos milhões a sonhar com um emprego de sonho que nunca chegou,
porque toda gente ficou sentada à mesa, em casa dos pais, à espera que alguém
nos viesse buscar e oferecesse um ordenado milionário, carro, despesas
incluídas, um gabinete com vista desafogada e um horário que nos permitisse
chegar às 11 horas, perder outras 3 no almoço e sair às 5. Isto era o sonho da maioria
dos estudantes universitários da minha geração. Não sei se ainda é assim.
Espero bem que não. Só que, no processo, esta malta toda licenciada, graduada,
viajada, esqueceu-se de que alguém, que não eles, tinha de arriscar dinheiro e
criar essas famigeradas empresas milionárias.”
E voltamos à infância de Vasco, Santiago do Cacém, assim
descrita: “Fica deitada numa encosta alentejana, meio caminho entre um monte e
um planalto, onde um castelo cemitério zela pela segurança de outrora e hoje é
passeio de domingo depois do almoço. É uma cidade antiga, tão antiga que as
suas pessoas continuam a ter códigos e regras de conduta social que mais
parecem saído de um romance dickensiano. Tem casas apalaçadas e casas
burguesas, ruas de calçada portuguesa, casas populares e empreendimentos
modernos que destroem toda e qualquer harmonia arquitetónica. Há gente na rua,
tem palmeiras que sobreviveram à praga marroquina, tem sotaque, não muito
carregado, mas tem.” Há mistérios que perduram, todas as respostas são esquivas,
porque é que o pai se foi embora? Por onde anda o meu pai? Vasco voltou a
Santiago, encontrou uma velha amiga que anda a recompor uma casa
extraordinária, que fora vandalizada durante o período revolucionário e depois
chega a casa. Aparentemente está tudo bem, conversam carinhosamente, não há
tensões no ar, é a força poderosa, a alquimia entre os diálogos, as meditações,
os intercalados solilóquios, tudo a galope, acaba o diálogo, instala-se uma
meditação: “Foi neste jardim que o meu pai me disse que se ia divorciar da
minha mãe. Foi neste jardim que construí uma casa na árvore com o meu irmão.
Foi neste jardim que percebi que estava apaixonado pela Luísa. E se eu guardava
essas memórias todas, imaginemos a minha mãe, o meu pai, o meu irmão.” Aliás,
houve também uma mana, era a irmã mais velha, a Leonor, morreu com 6 meses. Há
as idas aos médicos, percorre-se a costa alentejana, mãe e filho, e depois
Vasco vai até Sines, tem gratas memórias da sua juventude: “Sines trazia no
bico a vida pequena da cidade grande. O contraste, o choque, a tradição de mãos
dadas com a modernidade, o comunista com o artista, o social-democrata no
quartel dos bombeiros, os ténis de velcro e os três dias de Carnaval, o teatro
de revista e o teatro de Brecht, os pintores kitsch e Rui Chafes, um
sortido rico em cartazes espalhados pela vila cidade.”
Vasco vasculha a casa, abre arcas de madeira, armários,
procura fotografias, até mesmo uma carta. E salta-se para a vida em Lisboa,
fala-se do cinema, aquela casa na calçada da Memória onde há uma gata. Quem
fala de cinema fala em filme já realizados, mais insucessos que sucessos. O
autor vai-nos dando retratos sociais, vamos ficar a saber como vivem os seus
amigos, são quadros de uma geração. E é nisto que surge a ideia de fazer um
filme muito especial, indagar a família, uma biografia em forma de cinema,
Vasco descobre onde vive o pai, imagine-se, em Roma, é um dos pontos capitais
de romance, uma trepidação que nos deixa sem fôlego, tão rutilante como
inesperada é a revelação que o pai lhe dá daquela vida familiar. O ritmo da
narrativa ainda é mais vertiginoso, é a ideia de fazer o filme, conversa com a
mãe, ela mantém-se blindada, emerge uma nova meditação: “A ficção não existe. É
apenas uma tentativa de sobrevivência e de esclarecimento. Escrevemos na
expetativa de que o erro e a sorte nos aproximem da verdade. Em todos os livros
do mundo, nos filmes, nas peças de teatro, está sempre a mesma casa de partida
e poucas vezes a casa de chegada, mas ideia é que, durante o processo, passemos
a ver mais do que víamos e, com isso, acrescentamos uma ideia maior e mais
vasta ao que somos.”
Todos os guiões que Vasco faz vão para o lixo até que
chega o momento em que ele pode filmar um romance de amor completamente
escondido, depois de muitíssimas peripécias. Haverá filme, uma nova verdade
instalada onde houvera um passado enigmático. Filho e mãe veem o filme, e o
final é tocante.
É uma história contra o esquecimento e uma verdade para além da memória? É acima de tudo uma marcante obra literária que reforça a ideia de que Vicente Alves do Ó é um nome consagrado da sua geração.
Mário Beja Santos
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