Guardo num bloco um registo de certas frases que me parecem merecedoras de alguma visita, com ou sem propósito de estado de alma,
esta devo-a Chico Buarque, meu músico e escritor de eleição: “Solidão não é o
vazio da gente ao nosso lado… isto é circunstância. Solidão é muito mais do que
isto. Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela
nossa alma.” Ocorreu-me este aforismo a propósito do belíssimo ensaio de Ana
Margarida de Carvalho intitulado Viver Só, Portugueses esmagadoramente sós,
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023. É talvez porque há uma certa
parentela entre viver só e sentir solidão. Não é obrigatório, viver só pode ser
opção, contingência dolorosa, o resultado de um exilio, de uma separação, de um
estado de abandono; enquanto a solidão é uma dor, uma apoquentação em
permanência, os líderes políticos, financeiros, militares ou religiosos
sentem-na na pele, é por vezes na mais completa das solidões que se tomam
medidas de peso para a vida de muitos outros, cabendo-lhes o ónus total dessas
decisões, não podem ser partilhadas em termos de responsabilidade.
Esta autora, uma magnífica revelação na escrita,
estruturou de forma aliciante a trajetória do ensaio. Temos cada vez mais
idosos, ninguém desconhece tal realidade, cerca de meio milhão de idosos sós,
vai dentro da tendência europeia, mas parece que queremos tomar a dianteira. E
dá-nos elementos factuais dignos de ponderação: o envelhecimento populacional,
a litoralização do país, o aumento da esperança de vida, a drástica diminuição
da natalidade, o facto de existirem, hoje, mais divórcios e muito menos
casamentos – esta gama de fatores conflui para um conjunto recorde de
mono-agregados. E não se esquece de elencar quem vive só: por vocação,
autónomos por predisposição, celibatários por aptidão, isolados por
circunstâncias, infortúnios vários, entre os perenes até aos transitórios. E
dedica o seu ensaio às 1.027.924 pessoas que vivem só em Portugal.
Quando procuro estudar a realidade do envelhecimento e os
quadros de vida solitária, procuro reter um dado influente nas sociedades de
países mais desenvolvidos que é o hiperindividualismo que leva à quebra de
laços, às responsabilidades de vida em comum a favor de relações impessoais,
pragmáticas ou assentes em redes sociais. E bem elenca a autora os matizes da
solidão, porque não há solidão, há solidões, não esquecendo mesmo obras
literárias relevantes centradas em contextos de solidão, um desses expoentes
foi José Saramago que compôs uma galeria de personagens solitárias, pega mesmo
nessa obra-prima que é O Ano da Morte de Ricardo Reis onde há uma
expressiva definição: “a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes
de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão
não é uma árvore no meio de uma planície onde só ela esteja, é a distância
entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz”.
Também nos esclarece que pode haver uma larga distância
entre estar só e estar sozinho. A generalidade das pessoas temem a solidão,
recordem-se das manifestações durante o período mais aceso da pandemia da covid
e as formas bem imaginosas como todos nós procurámos estender as mãos, desde as
salas de música que ofereceram récitas e concertos gratuitos, canais
televisivos que puseram à disposição do público programas que tinham tido êxito
no passado, espetáculos engenhosamente preparados com cada um dos artistas em
sua casa, não faltou bailado e cantores na rua para fustigar a solidão. E
depois há a informação médica que é devastadora para quem vive em solidão,
contraem-se mais doenças, pode crescer até a propensão para o suicídio. E os
investigadores questionam o que verdadeiramente está por detrás desta era de
comunicação e em que os laços humanos, paradoxalmente, se desgastam ou
puramente se ignoram. E não podemos igualmente esquecer que há vidas em que a
solidão parece satisfatória e até necessária.
Chegou a hora de pôr protagonistas em pleno palco, vozes
isoladas mas também iremos conhecer o SOS Voz Amiga, uma linha preventiva e de
apoio em que os voluntários apenas lidam com solidão, angústia, tristeza;
iremos conhecer a aldeia das mulheres sozinhas, mais propiamente A Aldeia das
Mulheres Divorciadas, é bom ver estes testemunhos para entender como o nosso
mundo é versátil e a gente à procura de estacionar em locais onde se sinta bem,
onde campeie a amizade.
Mas não é possível ignorar as plataformas de encontros, o
Tinder é o mais famoso veículo em Portugal, ouvem-se testemunhos, conhecem-se
sonhos e ilusões. Fica-se com a ideia que Ana Margarida de Carvalho abriu em
toda a sua extensão a angular sobre o conhecimento de quem vive só, como se
confronta com a solidão e como se buscam novas partilhas, colhe mesmo o
testemunho da vida de faroleiro, acabamos por descobrir que é a profissão que é
tudo menos solidão e contemplação, há muitíssimo para fazer e seguramente que
não é por acaso que é profissão que passa de pais para filhos, talvez por se
ganhar um sentido de devoção e respeito pelo mar, por se aprender a desenvolver
a imaginação, o mar torna-se incansável. Alguém que viveu no farol do Cabo
Carvoeiro não se inibe em dizer que ainda tem memórias de ver e ouvir a maresia
bater nos vidros do quarto em dias de tempestade, ainda recorda o som do ritmo
cadenciado do rebentar das ondas deitado numa praia em dias da acalmia,
concluindo: “No fundo, a solidão nunca passou por mim. Provavelmente esteve lá.
Mas nunca a senti. Ou, por outras palavras, fez-me sempre boa companhia.”
E há quem se envolva em projetos, caso da Associação
Salvador (a sua missão é promover a inclusão de pessoas com deficiência motora
na sociedade e melhorar a sua qualidade de vida); fala-se no projeto Conversas
Com Alma, da Associação Salvador, e ouvimos o depoimento de um tetraplégico,
afinal há casos felizes, dois portadores de deficiência superaram preconceitos.
É um belíssimo ensaio sobre o quanto viver sozinho é
diferente de se sentir sozinho. “A experiência de solidão é tão individual e
privada que se torna quase indefinível. Como se poderá ler relatos de vidas
solitárias aqui expostas, viver só pode ser um privilégio, uma questão de
liberdade irrenunciável ou uma dor profunda irreversível. A solidão pode ser
desde sempre ou para sempre.”
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário