A obra de geopolítica
contemporânea intitulada O mundo de amanhã, da autoria do investigador e professor Carlos
Gaspar, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020, não esquece de anunciar
previsões, algumas delas, passado todo este período da pandemia, deste tsunami
no quadro da globalização e no contexto de relações de forças que se
reagruparam após a invasão da Ucrânia, a revelarem-se como alvos certeiros,
quando, por exemplo, o autor observa:
“O mundo de amanhã será
definido mais pelas dinâmicas que prevalecem na luta entre as democracias
liberais do que pela evolução da ciência e da tecnologia, das mudanças
climáticas ou das epidemias. A crise da ordem liberal marca o regresso da
competição entre as grandes potências. As divergências entre os EUA, a China e
a Rússia dominam a política internacional e prejudicam as dinâmicas de
integração que garantiram a paz no período pós-Guerra Fria.”
É evidente que falar da cena internacional e refletir sobre os amanhãs
obrigam à convergência entre a geopolítica, a geoestratégia e a geoeconomia,
abrindo espaço a um conjunto de indicadores onde os riscos ambientais e a
sustentabilidade têm lugar cativo.
Carlos Gaspar recorda-nos em 2020 o que era o mundo com Donald Trump e
o Brexit confirmado, a emergência de equilíbrios nacionais na Europa e na Ásia,
e assim postulava: “A ordem liberal construída pelos EUA e pela comunidade das
democracias passa a ser o centro da ordem internacional, assente nas normas do
direito e nas instituições multilaterais, e garante um período notável de paz e
de desenvolvimento no pós-Guerra Fria.” Só que se iam avivando e modelando
outas relações de poder, que ele observa: a ressurgência da China e a
ressurreição da Rússia, tínhamos e temos estas três grandes potências a
determinar a balança central do sistema internacional, mas com a agravante de
que nem as elites russas ultranacionalistas e dominadas pelo sonho imperial,
nem o regime chinês, também autoritário e nacionalista, estão longe de se
identificarem com as ideias liberais que têm sido garantes de uma certa paz
universal depois de 1945. E alerta-nos para avisos sérios decorrentes da queda
do Muro de Berlim e da tragédia de Tiananmen. Quanto ao primeiro facto, a unificação
alemã pôs fim à Guerra Fria, a URSS decompôs-se; a China tem um longo
itinerário de reformas até chegar à atual direção que possui uma velada missão
imperial.
E estamos perante os dilemas da unipolaridade, encabeçada pelos EUA,
hoje em confronto com rivalidades dos membros autoritários, e não falta nestas
linhas de confronto o conservadorismo, os apêndices populistas e a tentação
ultranacionalista. É o que o autor vai versar no capítulo dedicado ao regresso
dos impérios, aos sonhos de Putin e de Xi Jinping. Enquanto a economia russa
marca passo (tem matérias-primas, mas faltam-lhe tecnologias de pontas
ajustadas), a China é hoje a primeira potência asiática e desenha a formação da
Grande Ásia, estendendo tentáculos para sorver matérias-primas africanas e
encontrar clientelas em todos os continentes. A teima da Rússia em ser uma
grande potência já fora diagnosticada desde o início do século, ambiciona
reintegrar o espaço pós-soviético sob a tutela da Rússia, é a visão de um polo
de equilíbrio entre a União Europeia e a China, sabendo-se que não se pode
descurar a Índia. O autor passa em revista as relações que procuram estabelecer
Putin e Xi Jinping, as contradições desta coligação dentro da chamada grande
Eurásia: “A Rússia só pode continuar a ser uma grande potência na condição de
não alinhar nem com a China nem com os EUA. O último império europeu depende da
sua mestria diplomática no jogo da balança do poder para impedir que as duas
maiores potências dominem a política internacional” – esta asserção era tão
pertinente em 2020 como hoje, somos levados a supor.
Fala-se muito no declínio relativo dos EUA, mas o controle da
generalidade das tecnologias que preponderão amanhã continuam marcadas a punção
pelos norte-americanos, dominam a liderança militar, as comunicações, as
indústrias do entretenimento, possuem energia a rodos. É agora um tanto
anacrónico trazer à colação a Administração Trump, a nova Administração
encontrou novos rumos, a despeito de se manterem linhas estratégicas comuns
quanto à segurança nacional. E no mundo de amanhã, daquilo que estamos hoje a
percecionar, é tremendamente difícil ajuramentar que as relações EUA-Rússia vão
conhecer melhores dias nos regimes de controlo da modernização das armas
estratégicas, isto num tempo em que já não se esconde que os EUA vão procurar
por todos os meios fazer da resposta ucraniana o instrumento para descalcificar
qualquer veleidade da Rússia ter liderança militar equiparada, sente-se no ar
que se pretende algo parecido ao que Reagan obteve para desmantelar o modelo
económico e financeiro soviético. Enfim, presunções.
Inevitavelmente, o que se
passa na Europa tem de entrar nesta ribalta, superou-se a tremenda crise de
2008, venceu-se o colapso financeiro da Grécia, o que não impediu uma crise do
euro, isto em tempos em que Putin, com toda a desfaçatez, ocupou a Crimeia e se
riu dos pactos de sanções da época. O que o autor escreve sobre o imobilismo da
Alemanha terá talvez pouco a ver com a realidade atual, já não há margem para
dúvida que os germânicos se preparam para ser uma importantíssima potência
militar, ramificando a sua influência desde a Escandinávia aos Balcãs. A atual
Administração em Washington dá muito mais crédito a Berlim do que a Londres e a
Paris, e não esconde. Reconheça-se, mesmo que a superação destes 2 anos
modifiquem os quadros apresentados por Carlos Gaspar, que há imenso rigor no que ele observa até ao ano da publicação
da obra. E temos Portugal, indissociável do que se processa na União Europeia,
na NATO, agindo pragmaticamente com o parceiro ibérico, mantendo-se fiel ao
rigor financeiro (tão apreciado em Bruxelas), depois do espectro de insolvência
do início do século.
Atenda-se o que o autor põe em conclusão: iremos viver mais tempo, mais
robustecidos pela economia do conhecimento, pela transição energética, mas
correndo sérios riscos se não se atalhar contra o que há de mais sinistro na
mudança climática; há um sem-número de questões a resolver, logo à cabeça o
controlo sobre as armas de destruição maciça, a caminhada avassaladora para o
crescimento das megalópoles, a violência das sociedades urbanas, a histeria dos
populistas que se alimentam de slogans contra a corrupção e a debilidade das
instituições. O que está em jogo, para nós? O autor vaticina uma resposta:
“Para Portugal, para a Europa e para os EUA é crucial restaurar os valores da
unidade cívica, a coesão nacional e a confiança no futuro para garantir a
integridade da comunidade transatlântica e a convergência das democracias à
escala global contra a ofensiva internacional das potências autocráticas e
revisionistas.”
Vale a pena, em breve, termos uma reedição desta obra, convenientemente
atualizada.
Mário Beja Santos
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