Tendo obtido entretanto a versão
portuguesa da biografia de Richard Zenith, deixo-vos aqui o confronto das
passagens a que a jornalista do Expresso chama "semelhanças
flagrantes", para que possam fazer um juízo cabal sobre as mesmas. Quanto
aos motivos não-declarados que estiveram na base do artigo da revista do
Expresso, ficam para ocasião mais propícia.
1.
Richard Zenith (pp. 65-66): "Nesse mesmo mês
de Janeiro, num dia em que andava nos seus afazeres, subiu para um dos
'americanos' que cruzavam Lisboa. Dava-se-lhes este nome porque eram importados
dos EUA: veículos sobre carris abertos, puxados por cavalos, que eram mais
velozes e mais suaves do que carruagens que circulavam nas calçadas irregulares.
(Os veículos motorizados, também importados da América, não começaram a
circular senão em 1901.) Sentada num dos bancos de madeira do carro, Maria
Madalena observava as fachadas das lojas e os grupos variados de transeuntes
passarem devagar. Os estratos sociais elegantes – cujas luvas e chapéus da
moda, incluindo as penas para as senhoras, eram indício de estatuto social –
misturavam-se livremente nas ruas com os pobres vestidos com roupas simples e
por vezes descalços. A dado momento, Maria Madalena apercebeu-se de que um
homem sentado à frente dela a olhava, e não era com total discrição: queria que
ela percebesse que estava a ser observada. Maria Madalena lançou-lhe um olhar
fugaz, desviou os olhos, depois voltou a olhar para ele. Tinha uma testa alta e
faces cheias, uma tez rosada, olhos azuis e um bigode à inglesa, com suíças
compridas de ambos os lados. Deve ter feito um comentário fortuito, para meter
conversa, e logo revelou ser comandante de um navio que tinha percorrido o
mundo ao serviço da marinha portuguesa. Como era diferente do falecido marido!
Ela deve ter-lhe explicado a razão de estar vestida de preto, e ele ter-lhe-á
apresentado os habituais sentimentos. Gostou da sonoridade da voz dele e dos
modos delicados mas confiantes. Chamava-se João Miguel Rosa. Concordou em
voltar a encontrar-se com ele, provavelmente no mesmo transporte público – um
expediente que Fernando Pessoa também haveria de usar, muitos anos depois, para
se encontrar com uma jovem.
As regras de decoro desses tempos
não permitiam que as mulheres se encontrassem sozinhas com homens, e Maria
Madalena era uma viúva ainda no período de luto, facto que tornava tudo ainda
mais complicado. O problema não se resumia a saber como a sociedade a julgaria
mas também como ele, seu inesperado pretendente, interpretaria cada movimento
dela. De acordo com um velho estereótipo, era suposto que as viúvas fossem
sexualmente rapaces e capazes de dominar qualquer homem desprevenido. Por isso,
tanto ela como o comandante avançaram devagar, mas a atracção era magnética,
pelo que não demorou muito a declararem-se um ao outro. O novo amor de Maria
era muitas coisas que o primeiro marido não era: tinha quase a mesma idade que
ela (era quatro anos mais velho, em vez de onze), forte e robusto, extrovertido,
jovial e sereno".
João Pedro George (pp. 38-39): "Em Janeiro de
1894, duas ou três semanas depois de Jorge ter sido transportado para o
cemitério dentro do seu minúsculo caixão, a mãe de Pessoa conheceu um capitão
da Marinha de Guerra, de nome completo João Miguel dos Santos Rosa. Nascido em
Lisboa em 1857, João Miguel Rosa estava na Marinha Portuguesa desde os 14 anos
e já viajara por todo mundo, em comissões de serviço que o tinham levado a
Macau, Angola, Guiné-Bissau, América do Sul, etc. As fotografias do futuro
padrasto de Pessoa dão a entender que seria um homem imponente e entroncado,
com um rosto quadrado, onde sobressaía o bigode de pontas eriçadas, como o de
Guilherme II (o último imperador alemão e Rei da Prússia, que começara o seu reinado
no ano em que nasceu Fernando Pessoa, em 1888, e teria de abdicar no final da I
Grande Guerra, em 1918), e mãos grandes, de dedos compridos e grossos, que
inspiravam confiança.
Maria Madalena conheceu este
cavalheiro distinto numa viagem de carro americano (ou apenas americano), o
nome com que em Lisboa, na segunda metade do século XIX, era conhecido o meio
de transporte colectivo, movido por tracção animal sobre carris, que levava os
passageiros de um ponto da cidade a outro (o americano seria substituído, no
século XX, pelo eléctrico).
Começou por reparar no cavalheiro
que, sentado mesmo em frente, olhava para ela, viu que os olhos dele a seguiam
e se mantinham, por vezes, fixos nela. Durante alguns minutos, estabeleceu-se a
dialéctica entre o homem que espia e a mulher que exibe. Provavelmente, João
Rosa queria que aquela mulher bonita e elegante como uma escultura de Rodin
percebesse que estava a ser observada. 'Quantos dias da minha vida daria para
possuir aquela mulher', seria talvez uma das suas fantasiosas elaborações.
A escassos centímetros da sua
perplexidade, Maria Madalena mudava de posição na cadeira (sinal de que não
pôde evitar certa perturbação em face daquele olhar masculino), tentando dar a
impressão de ser uma mulher orgulhosa, completamente auto-suficiente no seu
mundo interior – o chapéu que levava na cabeça abrigava toda a mágoa de uma
alma já muito experimentada pelo sofrimento –, e terá intuído aquilo em que ele
estava a pensar, inferindo o seu estado de ânimo e intenções. De repente,
sentiu-se de novo a ganhar vida e importância, sentiu-se uma mulher apetecida,
desejada pelo desejo de outro, o que lhe terá causado uma satisfação evidente.
Gozador dos efeitos que as palavras
gentis (e os seus olhos azuis) produziam nas mulheres que queria conquistar,
João Rosa entabulou conversa com Maria Madalena, a qual sentiu, de imediato, o
rubor subindo-lhe pelas maçãs do rosto.
Ele disse-lhe que era capitão de um
navio — o Liberal, assim se chamava a embarcação onde trabalhava, pertencente à
frota portuguesa da África Oriental — que atracara em Lisboa em 24 de Dezembro
de 1893, vindo de Moçambique, para os tripulantes gozarem um ano de férias na
metrópole. Ela, deixando-se cativar, explicou-lhe vagarosamente que era viúva e
estava de luto, por isso trajava de negro. No final, combinaram que voltariam a
encontrar-se.
Ao contrário do intelectual Joaquim
Seabra Pessoa, seu falecido marido, João Rosa era forte, extrovertido e jovial,
um macho possante e robusto, com aquelas cores de romã que são sinal de
saúde."
NOTA: A informação de que Maria Madalena,
mãe de Fernando Pessoa, terá conhecido João Miguel Rosa, o futuro padrasto do
poeta e futuro cônsul em Durban, num "americano", foi posta a
circular por Eduardo Freitas da Costa em Fernando Pessoa. Notas a uma biografia
romanceada, Guimarães, 1951.
2.
Richard Zenith (p. 378): "Pessoa não era
pedante, como alguns dos frequentadores habituais de cafés que denegria nos
seus textos, mas era pedagógico, como os projectos de revistas de 1911
demonstram. Queria ensinar aos políticos como se deviam comportar, aos
intelectuais o que pensar e aos portugueses em geral por que razão era
importante ser patriota. E enquanto jovem também aspirou a ser um moralista
sexual – por razões que levantam suspeitas. Por um lado, Jean Seul teria
demasiado comprazimento na narração das práticas sexuais bizarras que as suas
sátiras condenam ostensivamente. Por outro, a castidade atormentada de
personagens como Marcos Alves e o Duque de Parma, para os quais o simples
pensamento de uma vagina causa pânico, leva a que nos questionemos sobre se
Pessoa estava a usar a sua campanha moral para evitar enfrentar, na sua própria
vida, o sexo e a sexualidade. No entanto, praticamente todas as empresas
intelectuais de Pessoa, incluindo as actividades pedagógicas, eram parcialmente
empreendidas pelo seu valor de entretenimento".
João Pedro George (pp. 209-210): "Marcos Alves,
por sua vez, descreve os sentimentos e opiniões de uma pobre alma possuída pela
'agoniada tristeza de não ter feito nada´. Romance 'sobre o que sentiria o
Marcos Alves' (como revelou Pessoa num dos seus textos), é um 'cavaqueador
brilhante', 'triunfador das atenções', com 'reputação de blagueur, de artista',
além de virgem e de sentir um medo patológico de mulheres, entrando em pânico
só de imaginar uma vagina à sua frente.
Numa das chamadas Cartas de Marcos
Alves, é o próprio quem nos diz que '(...) Levei a vida toda a sentir-me
inadaptado mesmo às suas coisas mais altas e [a] adaptar-me a todas, mesmo, às
mais reles. (...)'
Mas os dois grandes projectos da
empresa Íbis talvez fossem os dois seguintes jornais antimonárquicos e
anticlericais, com periodicidade quinzenal: O Iconoclasta e O Fósforo. A
intenção destas duas publicações militantes era informar e esclarecer os militantes
republicanos, contribuindo, ao mesmo tempo, para "provocar uma revolução
aqui" (para Pessoa, toda a ordem estabelecida é incapaz de perdurar se
algo ou alguém, paradoxalmente, a não vem perturbar)."
3.
Richard Zenith (p. 381): "Por outro lado, o
dinheiro ganho em Inglaterra poderia ajudar a pagar algumas dívidas e fugir
talvez não fosse má ideia. Em Novembro de 1911, depois de elaborar uma lista
actualizada de dívidas antigas e novas despesas num caderno, rabiscou em
grandes letras, em inglês: 'Cortar e fugir para clarificar a vida intelectual!
Dezembro para reconstruir a vida'.
Que melhor lugar para fugir poderia
haver do que Londres? Teria sido a realização de um sonho maravilhoso, que
Pessoa continuaria acalentar durante pelo menos mais vinte anos, mas o
pensamento de ir realmente para um lugar novo e encontrar pessoas novas
perturbava-o".
João Pedro George (p. 264): "Embora respeitante
a um período de apenas seis meses de trabalho, a oferta era aliciante por
vários motivos. Incluía pagamento da viagem e das despesas em Inglaterra, mas,
sobretudo, era a oportunidade, tantas vezes sonhada, de concretizar o seu
projecto de, no futuro, ir viver para Inglaterra e transformar-se, quiçá, num
poeta inglês. Pessoa conhecia os nomes dos editores, críticos e escritores
britânicos que o poderiam ajudar a reconstruir a sua vida literária no país de
Shakespeare, e a referência de Warren Kellogg e da Biblioteca, podiam ajudá-lo
a abrir essas portas.
Note-se que, num bloco-notas de
Novembro de 1911, depois de fazer uma lista com as dívidas ainda por saldar
(que incluíam empréstimos de dinheiro pedidos a amigos e conhecidos), Pessoa
apontou em maiúsculas e em inglês: 'Cortar e correr para a vida intelectual
clara! Dezembro para reconstruir a vida'.
Mas, contra todas as expectativas, e
apesar de sentir-se por vezes prostrado por causa das dívidas e de ter pensado,
inclusivamente, em largar tudo, vivendo outras aventuras, morando noutras
casas, tendo outras profissões, Pessoa recusaria a proposta do editor".
NOTA: A citação de Pessoa - "Cortar
e correr para a vida intelectual clara! Dezembro para reconstruir a vida'. -
está em "Os Objectos de Fernando Pessoa", de Jerónimo Pizarro,
António Cardiello e Patricio Ferrari, Publicações Dom Quixote, p. 122.
4.
Richard Zenith (p. 369): "Numa das cartas
semanais para Durban, enviada em Maio de 1911, Pessoa espicaçou a curiosidade
da mãe quando lhe disse que precisava de escrever uma longa carta para explicar
algumas coisas. Aquilo que precisava de explicar, é claro, era que tinha
dissipado a herança e estava atolado em dívidas, mas haveria de protelar essa
confissão por mais um ano e meio. No interim, foi enganando os credores com
promessas vãs. Continuou a fazer traduções para a Biblioteca Internacional e
Obras Célebres, recebendo os maiores louvores do coordenador do projecto
multilingue, Warren Kellogg, e tentou – ou pensou tentar – arranjar mais
trabalhos com base nas suas competências linguísticas".
João Pedro George (pp. 262-263): "O dinheiro
obtido com estas e outras traduções serviu para amortizar as dívidas contraídas
pela falência da Íbis. Mesmo depois da venda da tipografia, Pessoa continuava
cheio de complicações e dificuldades de dinheiro, tinha de fazer pagamentos
mensais ao banco pelo empréstimo que pedira depois da extinção da Íbis.
Em Maio de 1911, numa das cartas que
escrevia semanalmente à mãe, dava a entender que estava com problemas, que
algumas coisas negativas se tinham passado na sua vida, sem nunca revelar
exactamente o quê (só um ano e meio depois é que confessaria à mãe que gastara
a totalidade da herança da avó Dionísia e que estava crivado de dívidas).
Nesse Verão, deixou o quarto no
Largo do Carmo e foi viver com a tia materna Anica (Ana Luísa Nogueira) e com
os primos Mário em Maria, em Arroios, na Rua Passos Manuel, no 3.º andar do n.º
24 (ficando os seus livros no escritório do Largo do Carmo, que o primo
continuava a alugar). Pouco depois, em 21 de Setembro de 1911, morreria nessa
casa, onde também vivia, a tia-avó Maria.
Talvez porque ficara sem a
responsabilidade de pagar uma renda — a tia nunca lhe pediu para pagar pelo
quarto onde se instalou —, Pessoa foi adiando a necessidade de encontrar outro
tipo de trabalho, que lhe permitisse respirar melhor no meio de tantas
dívidas".
5.
Richard Zenith (p. 100): "O navio passou
outros promontórios rochosos antes de chegar ao Cabo das Agulhas, lugar mais a
sul do continente, onde oficialmente o Atlântico termina e o Índico
começa".
João Pedro George (p. 53): "Continuando para
sul, rodearam o Cabo da Boa Esperança, assim baptizado por Bartolomeu Dias, o
primeiro a conseguir contornar (1488) sem incorrer num dos habituais
naufrágios, que vitimaram centenas ou mesmo milhares de marinheiros. Mais
tarde, em homenagem a este navegador português, Pessoa escreveria na Mensagem
(...). Seguiu-se o Cabo Agulhas, onde o Atlântico acaba e o Índico começa, com
as suas praias de areia fina, depois Porto Elizabeth e East London".
João Pedro George
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