Numa das minhas
incursões pela Feira da Ladra encontrei um livrinho encadernado, o título
prontamente me chamou à atenção, fui levado a supor que se prendia com uma conferência
feita por um prosélito nazi sobre o que eles pensavam da arte moderna, e que
dera mesmo origem à queima de obras de arte e a uma exposição intitulada “A
arte degenerada” exibida por todo o Terceiro Reich, como manifestação da
barbárie e até da conspiração judaica mundial.
É nisto que vejo o
autor da obra, Arnaldo Ressano Garcia, conferência realizada em abril de 1939
na Sociedade Nacional de Belas Artes. Ressano Garcia era um ultraconservador,
abominava o futurismo, qualquer manifestação de cubismo expressionismo, tratava
Almada Negreiros como um louco, entrou em polémica com o Cardeal Cerejeira por
causa da Igreja de Nossa Senhora de Fátima como irá entrar em polémica pelas
teses vencedoras de António Ferro quanto às artes plásticas na Exposição do
Mundo Português. Ressano Garcia tinha currículo:
Docente da Escola do
Exército, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa; dirigente da Sociedade Nacional de Belas Artes; docente
de Astronomia, Geodesia e Topografia no curso de Engenharia Militar; profissão:
artista plástico e caricaturista.
O exemplar que
adquiri tem a dedicatória ao poeta Cardoso dos Santos, resta saber se foi este
senhor que mandou encadernar os textos da conferência e deliberou tratar
Ressano Garcia por nazi. Este coronel do exército português viajou até Paris,
visitou a Exposição Universal de Paris de 1937, e seguramente museus e outros
institutos de cultura. Adverte-nos no prefácio: “Conheci lá fora os bastidores
de certas manifestações e o desgraçado caminho tomado pela pintura
impropriamente chamada avançada, num regresso repugnante para a selvajaria,
glorificando-se a ignorância e a degenerescência, verdadeira afronta.” Na
primeira parte da sua conferência, este artista plástico e caricaturista já
esquecido procura dar uma lição sobre a história de arte e quando chega ao
Modernismo, diz que na Alemanha os museus se tinham enchido das mais espantosas
aberrações, mentais e sexuais, e exalta Hitler:
“Hitler é um artista
candidato a uma escola de Belas Artes e nunca um simples pintor de tabuletas,
como malevolamente se espalhou. Compreendendo quanto prejudicial seria aquela
degenerescência nas artes para o bom nome da cultura alemã, manda limpar os
seus museus de todas as imundícies artísticas que o desvairamento iconoclasta
havia imposto. Nomeia, para tal fim, uma comissão de indivíduos da mais alta
competência artística e honestidade de caráter. A maioria dessas obras é
mandada queimar. Com as outras, as escolhidas, as menos horrorosas, forma-se um
museu que se intitula ‘O Museu da Arte Degenerada’. Quando algum artista
estrangeiro deseja realizar na Alemanha uma exposição das suas obras, tem de as
sujeitar a uma prévia censura artística por parte da mesma comissão. Hitler não
descansa, torna-se, e cada vez mais, exigente. Quer que a Alemanha nova, a do
seu tempo, apresente só artistas insignes.”
Ressano Garcia também
não é peco a falar do Futurismo em Itália, diz que Mussolini fracassou deixando
estes artistas de vanguarda à rédea solta. Não deixa de zurzir o Pavilhão de
Espanha, “onde toda a charlatanice de Picasso campeava à vontade”. Entende
discretear sobre a responsabilidade dos comerciantes da arte, atribui-lhe uma
grande responsabilidade na propaganda à arte degenerada. Não se conforma com os
disparates de Rodin, sente-se à altura de proferir juízos definitivos sobre
este génio da escultura: “Rodin só foi sincero e gigante exatamente na parte
séria da sua obra. Na parte filosófica, embora sempre de maravilhosa técnica, a
sinceridade na ideia é, em geral, nenhuma. Executava uma estatueta, contorcida
e estranha, só pelo prazer de vencer dificuldades de atitudes e de movimento.
Depois, aguilhoado pelo tal cabotinismo, ele, ou algum dos seus amigos,
compunha o título filosófico, a legenda que melhor se casava com a produção.”
Também não deixa de vergastar a arte de El Greco ou a de Goya. E chega o
momento de falar sobre a responsabilidade de um comerciante (um marchand) de
arte, Ambroise Vollard, velho traficante de quadros, judeu, grande admirador e
amigos dos mais célebres artistas da vanguarda.
Entrando nas
conclusões, faz advertências ao Governo, este deve firmar-se num nacionalismo
vigoroso e sensato. Remete uma mensagem aos artistas portugueses: “devem todos
pôr os olhos na corrente mórbida, que devasta as artes plásticas, lá por fora,
não para, cegamente, a canalizarem também, para nós, mas, ao contrário, para, à
força de razão, estudo, talento e patriotismo, lhe oporem um dique,
inexpugnável.”
Porque tínhamos
grandes mestres de pintura, e elenca-os: Domingos Sequeira, Vieira Lusitano,
Vieira Portuense, Cristino da Silva, Anunciação, Lupi, Silva Porto, Columbano,
Malhoa, Luciano Freire, Roque Gameiro e Condeixa. A partir destes, era como se
tivesse chegado um deserto de tártaros. E lança ao público a sua tremenda
mensagem, o seu desmedido apelo:
“Unamos todas as
nossas forças artísticas, todas as nossas energias, todas as nossas
inteligências, na ideia de elevar ao máximo a Arte Portuguesa!
Não sejamos, nem
contra o classicismo, nem contra o romantismo, nem contra o realismo, nem
contra o modernismo, mas em compensação, unamos todas as nossas forças
artísticas, todas as nossas energias, todas as nossas inteligências contra a
invasão atual do… intrujismo!”
Ressano Garcia fazia circular pela assistência duas provas de degenerescência e intrujismo, duas aberrações de Picasso, falando de “La femme qui pleure”, de 1937, faz a seguinte observação: “É a este o ideal que certos amadores do intrujismo desejam para a pintura do novo Portugal”.
Mário Beja Santos
Caricatura de Salazar por Arnaldo Ressano Garcia
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