O mínimo que se pode
dizer da mais recente incursão do pensador e ensaísta Marcello Duarte Mathias é
que concebeu e concretizou uma antologia do pensamento nacional contemporâneo
de uma forma perfeitamente original: O Português visto por (alguns)
Portugueses, Publicações Dom Quixote, 2023. É uma leitura que não deixará
ninguém indiferente pelo acicate reflexivo a que nos obriga, momentos há em que
andaremos por ali a rabiar, numa tentativa de formar uma opinião consistente
sobre o que é ser português, com tais e tantas poliédricas opiniões.
A subtileza é a de
pôr ao despique um conjunto de autores dos séculos XX e XXI, desde os finais da
monarquia até ao tempo presente, dá-se a cada um dos autores antologizados a
oportunidade de tratar perfis, ressaltar qualidades e defeitos, virtudes e
imperfeições, sobre o que antigamente se chamava a alma portuguesa; há mesmo
gente intempestiva e detentora de desabafos brutais, no final, cada um deles dá
um contributo para que o leitor se avenha com a resposta que lhe aprouver, a
cada um de nós cabe sentenciar quanto à individualidade do português e se ele
possui mesmo um caráter distintivo, no arrebol de tantos olhares. Chegamos ao
final da leitura e está tudo fica em aberto.
Quem lê esta
magnífica e caleidoscópica antologia tem tudo a ganhar com a bem esboçada
introdução onde o autor explica os propósitos do seu cometimento de coligir
reflexões sobre isto de se ser português, dá as suas razões sobre a seleção dos
antologizados que não é arbitrária, alguns deles faleceram antes do Estado
Novo, a generalidade deles foram contemporâneos do Estado Novo, temos depois o
25 de Abril; é, pois, uma galeria versátil, há a melancolia de gente da Direita
assumida, gente que mudou de opinião e que participou em tempos de oposição e
que se veio a sentir desadequada nos ziguezagues da democracia, o que dá azo
para que em dado momento o autor observe: “A frustração das elites para com o
país é uma constante histórica e fundamenta essa espécie de desajuste insanável
que se estabeleceu ao longo dos tempos entre o país e aqueles que o representam
no campo da cultura. Acresce que em Portugal, como se sabe, não há escol, é
outra das nossas particularidades – a própria noção é desvalorizada por certas
formações ideológicas como pertencendo a uma visão retrógrada do que deve ser a
sociedade; seja como for, existem, sim, individualidades que se impõem nos seus
respetivos domínios por mérito próprio, as mais das vezes de forma isolada, sem
apoios e sem aplausos. Paralelamente, é coisa conhecida, nós somos o povo que
mais mal diz de si próprio, verdadeiro desporto nacional, e são com frequência
os estrangeiros, que nos conhecem e nos estimam, os primeiros a assinalar as
nossas qualidades.”
O leitor não deixará
de se impressionar com a gravidade dos queixumes e a pronta firmeza com que a
generalidade destes autores revela nostalgia pela pátria, ninguém desdenha do
patriotismo, apesar dos azedumes.
Discreteia o autor
sobre a psicologia do português, logo a sua mansidão, o fugir às belicosidades,
o ser mais reativo do que empreendedor. Mas há os rasgos empolgantes, e a
referência que o autor escolhe é a travessia aérea do Atlântico Sul, por Gago
Coutinho e Sacadura Cabral. E há um aspeto a considerar, ver a História como um
fantasma que não morre: “São numerosos os autores aqui presentes que de uma
forma ou de outra a essas coisas do passado se referem – de Fernando Aires a
Franco Nogueira e Raúl Brandão, de Miguel Torga a Vergílio Ferreira e Aquilino
Ribeiro, de Agostinho da Silva a Teixeira de Pascoais e Manuel Alegre.”
Estamos agora
comprometidos com o ideal europeu, somos maioritariamente liberais e o impacto
da globalização não nos parece afetar. O autor questiona esta Europa, tem bases
para o a fazer, exerceu a diplomacia, conhece os bastidores da política, está
profundamente estruturado para falar sobre estes desafios europeus no contexto
da nossa continuidade histórica, alude com serenidade à dominante pessimista de
uma boa parte destes testemunhos aqui registados, vê muita inquietação quanto
ao destino do nosso país, reconhece em todos o que há de mais afincado na
portugalidade: “Retrato crítico, sem dúvida, dilacerado tantas vezes;
impregnado, porém, de uma profunda fidelidade ao que somos e ao que não podemos
deixar de ser.”
E mergulhamos então
nesses retratos críticos, cada um de nós que junte as peças: “Coragem,
Portugueses, só vos faltam as qualidades”, Almada Negreiros; “Povo tradicional,
mas extraordinariamente poroso às influências alheias; povo convivente, mas
facilmente segregável por artes de quem o conduz ou se propõe conduzi-lo”,
Manuel Antunes; “Os portugueses são várias coisas, são muitas coisas. São muito
velhos por causa da História, são novos porque estão a aprender. Isto cria uma
contradição dentro de cada um de nós. São pobres e pequenos – porque o país é
pobre e pequeno – mas, como têm as mesmas expetativas que os noruegueses e
canadianos, são muito ricos em expetativa”, António Barreto; “O divórcio entre
os homens políticos e os homens de cultura tem sido uma das ruínas deste país” –
João Bigotte Chorão; “Coberto de luto, suporta mal o sol africano que coze o
pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas
fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, larva sargaços; pesca dos restos,
cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à
esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quinto dos Infernos
toca-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará
sempre um cismador deserto, voltado para o mar”, José Cardoso Pires; “Os
portugueses odeiam-se tanto uns aos outros que têm dificuldade em admitir que
se possa gostar deles”, José Cutileiro; “Portugal define-se melhor como uma
ideia que, de vez em quando, alguns portugueses têm”, Miguel Esteves Cardoso;
“O português revê-se no pequeno, vive no pequeno, abriga-se e reconforta-se no
pequeno: pequenos prazeres, pequenos amores, pequenas viagens, pequenas
ideias”, José Gil; “Camões fez mais do que pintar-nos. Deu-nos o palco do
mundo, celebrou nele a nossa aventura descobridora e simbólica em tais termos
que não parece ter deixado outra alternativa como entidade coletiva do que
refazer sem fim a viagem do Gama, ou ficar de braços cruzados na praia deserta
do Restelo a lamentarmo-nos do que fomos e já não somos, assistindo humilhados
à aventura dos outros. Foi o que Pessoa quis dizer, quando escreveu que depois
da descoberta do caminho marítimo para a Índia os portugueses ficaram sem
emprego”, Eduardo Lourenço.
O leitor que se
prepare para entrar numa montanha russa de opiniões, pode dela não sair de bem
consigo, mas não se esqueça do que diz Miguel Torga: “Somos, socialmente, uma
coletividade pacífica de revoltados.”
Leitura imperdível.
Mário Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário