Um qualquer estudante de Arquitectura
que decida, talvez inspirado por José Saramago, fazer uma “viagem a Portugal”,
identificará rapidamente, nos vários concelhos por onde for passando, no
interior ou no litoral, no norte ou no sul, uma extensíssima série de conjuntos
desenhados por arquitectos famosos ou até famosíssimos – bairros,
empreendimentos, blocos, urbanizações, o nome não é importante –, levantados do
chão, para mantermos a referência literária, a partir do impulso dado pelos
vários poderes públicos nos últimos 100 anos. No entanto, se abrir os jornais
para acompanhar o longo e polémico debate sobre a habitação nacional, tropeçará,
a cada página, no omnipresente 2%, o número repetido à exaustão, normalmente
para que nos sintamos envergonhados em relação ao resto da Europa, relativo à
percentagem de habitação pública no país. Entre a observação empírica e as
estatísticas publicadas, o que é que justifica, afinal, tamanha discrepância?
“Nalgumas ruas das avenidas novas têm‑se
construído e estão ainda em construção grandes prédios (…). A renda, porém (…),
ultrapassa de tal modo as possibilidades de cada um de nós, que tem dado lugar
às mais variadas discussões e mais ásperos protestos (…)! É claro que não são
alojamentos desta categoria que fazem falta neste momento.”
A
frase com que se inicia este texto, e que poderia ter sido retirada de um
qualquer jornal português da última semana, mês ou ano, foi, na realidade,
publicada em 1945 na revista A
Arquitectura Portuguesa. O seu autor, Alberto A.C., dando mostras da
inquietação que o assolava, deu ao seu artigo o título de Um problema, a palavra que, ontem, hoje, e muito provavelmente
amanhã, mais vezes vemos associada à questão da habitação, mesmo sem contar com
o famoso livro do poeta Ruy Belo, o qual, apesar de incluir o verso “uma casa é
a coisa mais séria da vida”, é de outro campeonato, mais próximo do metafísico
do que da materialidade da argamassa e da alvenaria.
Nesse
ano de 1945, naturalmente sublinhado em todos os manuais de História de todos
os países do planeta como aquele em que chega ao fim a II Guerra Mundial, ocorreu,
em Portugal, o arranque de uma nova política pública de habitação, desta vez,
ao contrário do que acontecera nos primeiros programas habitacionais do Estado
Novo, focada no arrendamento e não no conceito que tinha animado o início da
ditadura: o “cidadão-proprietário”, enraizado na sua pequena, modesta, mas
higiénica moradia independente e unifamiliar, e devidamente disciplinado pelo
braço forte do Estado.
Através
do pagamento mensal de amortizações, pretendia-se então, nessa época constitucionalmente
fundadora de 1933, que o morador, num prazo aproximado de duas décadas,
atingisse a posse plena da casa que lhe tinha sido destinada pelo poder
vigente. O Programa de Casas Económicas, assim foi baptizado, talvez pelo
próprio Salazar ou pelos seus muito próximos Duarte Pacheco (responsável pela
construção dos imóveis) e Pedro Teotónio Pereira (responsável pela sempre
disputada distribuição das chaves), dirigia os seus maiores esforços não para
as classes mais desfavorecidas da população, abrangidas por outras iniciativas
(Programa de Casas Desmontáveis, por exemplo), mas principalmente para aqueles
que constituíam ou poderiam vir a constituir a base social de apoio do regime:
chefes de família, com emprego estável no sector público ou privado, e sobre os
quais não recaíssem quaisquer suspeitas de mau comportamento político e moral.
Devidamente
“emparedados” entre os critérios de admissão (explicitamente atestados pelos
sindicatos nacionais ou pelos respectivos chefes quando se tratava de
funcionários do Estado) e a disciplina paternalista assegurada pelo fiscal do
bairro (responsável, entre outras actividades, pela organização de um ficheiro
actualizado sobre cada morador), os beneficiários deste programa sentiam-se,
contudo, privilegiados. A “casa portuguesa”, onde viviam e da qual, caso
mantivessem perenemente um comportamento decente
e adequado, seriam proprietários num futuro relativamente visível, era,
afinal de contas, aos olhos da propaganda oficial, um oásis de vida saudável na
periferia, sem comparação possível com a confusão sobrelotada e promíscua dos
centros urbanos.
“e são tão económicas as nossas
ambições / que não vão muito além das mil evoluções das moscas” (Ruy Belo)
Mesmo
descontado a propaganda, e tentando, claro, ignorar o tenebroso ficheiro do
fiscal, parece verdade que o conceito, qual sapatinho no pé da Cinderela, se
ajustava perfeitamente aos gostos e preferências do proverbial “português
médio”, eventualmente o mesmo que, nos anos 50, catapultou a canção Uma Casa Portuguesa a um tal grau de
sucesso que a própria Amália Rodrigues dela se cansou, chegando mesmo, em
alguns concertos, a fazer ouvidos de mercador aos pedidos que muitas vezes lhe
gritavam da platéia para que a cantasse.
As
quatro paredes caiadas, o cheirinho a alecrim, as uvas douradas e as rosas no
jardim, entre outras características – o São José de azulejo, o sol a bater na
janela – que garantiam o conforto pobrezinho de um lar, se bem que celebrizadas
musicalmente pelos versos que Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira
escreveram num hotel de Moçambique, tinham uma existência real nos Bairros de
Casas Económicas inaugurados a partir da década de 30 nas então pouco ocupadas
cercanias das cidades portuguesas, além de partirem de uma teorização
largamente desenvolvida, não só pelo poder político pós-I República, mas também
por importantes arquitectos, dos quais se destaca o fascinante e multifacetado Raul
Lino.
Figura
ainda hoje polémica, alvo de interpretações não consensuais, dele se pode
dizer, tentando não extremar a caracterização, que tendia para o nacionalismo, para o romantismo, para o
anti-modernismo. Pouco dado ao fascínio da máquina e da velocidade e eficiência
por ela proporcionadas, defensor da manufactura artesanal e do tempo lento, refugiava-se
nostalgicamente na História e nas tradições do país, procurando a tal alma e
essência da “casa portuguesa”, que imaginava meridional e solar, influenciada
pelo mediterrâneo na sua dupla vertente romana e árabe.
Os
títulos dos livros que publicou – A Nossa
Casa: apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples (1918); A Casa Portuguesa (1929); Casas Portuguesas: alguns apontamentos
sobre o arquitectar das casas simples (1933) – quase dispensam explicações
adicionais sobre a importância deste arquitecto para o Programa de Casas Económicas,
muito embora pouca relação houvesse, pela escala e pelos orçamentos, entre os seus
projectos particulares (Casa do Cipreste em Sintra, por exemplo) e aqueles que
fez para habitação pública. Havia, porém, em ambos os casos, uma ideia de ninho protegido do exterior que batia
certo com a ideia transmitida por Salazar num importante discurso
radiodifundido em 1933: “a intimidade da vida familiar reclama aconchego, pede
isolamento, numa palavra, exige a casa, a casa independente, a casa própria, a
nossa casa. Eis porque nos não interessam as colossais construções para habitação
operária, com seus restaurantes anexos e sua mesa comum. Para o nosso feitio
independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada, nós desejamos
antes a casa pequena.”
Bairro de Casas Económicas das Condominhas, Porto, Arq. Raul Lino e Joaquim Madureira, 1934
Assim eram, pois, os bairros de Raul Lino e respe ctivos discípulos, como o Novo de
Belém, o dos Telheiros da Ajuda, o Duarte Pacheco em Braga, o das Condominhas, o
do Ilhéu, com as suas casinhas, jardinzinhos, quintaizinhos, janelinhas,
patiozinhos, beiraizinhos, hortazinhas, alpendrezinhos e, claro, alguns São
Josés de azulejinhos, como na canção popularizada por Amália. Todos esses
“inhos” físicos e palpáveis haveriam de contribuir, esperava-se, para o espírito da “casa portuguesa”, tão
presente nos versos cantados pela fadista como nos muito anteriores textos do
arquitecto Raul Lino, que o fazia depender, até mais do que dos materiais, do
“sabor português” e de um “certo ar amoroso de doçura”. Paradoxalmente,
todavia, os projectos conciliavam o conservadorismo com alguns aspectos da
modernidade, nomeadamente no que se refere à dimensão e simplificação das
habitações, tema que alimentava noutros países o estudo racionalista do Existenzminimum, ou seja, a definição do
espaço mínimo onde um ser humano poderia viver eficientemente, seja lá isso o que for.
Por
outro lado, dois dos pontos fulcrais deste Programa – o “cidadão-proprietário”
em vez do “cidadão-inquilino do Estado” e a moradia unifamiliar em vez da
habitação colectiva – revelavam tolerância zero a eventuais instintos
“modernizadores”, fazendo prevalecer as opiniões mais tradicionalistas - a aldeia reproduzida na cidade - e o
fomento da propriedade privada, pedra basilar da muito bem-vista “herança de
família”. Tratava-se, em certa medida, de marcar a diferença em relação à forma
como a Primeira República tinha encarado a política pública de habitação, embora
mais tarde, em 1945, como foi referido logo no início deste texto, também o
Estado Novo aderisse, pragmaticamente mas sempre
com reservas, ao arrendamento público a aos
blocos de habitação colectiva, ponto que se retomará mais à frente.
Já
o período 1910-1926, que deve ser analisado mais pelas intenções do que pela
obra, uma vez que a balbúrdia instalada não permitiu que se fizesse muita, fica
marcado pelo nascimento das primeiras leis sobre a intervenção do Estado na
habitação, uma consequência não só da multiplicação de “ilhas” portuenses e de
“pátios” lisboetas insalubres, sobrelotados e miseráveis, como também de uma
crise de desemprego na construção civil, duas desgraças que, ao ocorrerem em
simultâneo, provocavam nas elites o terror de uma revolução temperada com
pitadas de peste e de tuberculose.
“Ilha” portuense numa época em que
Portugal não sofria de problemas relacionados com a taxa de natalidade
Os
Bairros Operários ou Sociais da República, alguns só projectados, outros parcialmente
construídos, mostravam naturalmente menos receio de um certo colectivismo do
que aquele que atingiria o pensamento dos primeiros anos salazaristas, o que
não se estranha dadas as características e as diferenças ideológicas entre os
dois regimes. Esses Bairros, que se davam bem com blocos multifamiliares e com
o modelo do arrendamento, previam também a integração de cantinas, lavandarias
e balneários, assim evidenciando o género de mundividência que deixava o
ditador de Santa Comba com os cabelos em pé.
O
poder republicano, no entanto, fazendo-lhe um grande favor, devido em parte ao
desagradável facto de ser muito mais fácil e rápido escrever despachos e
decretos do que erguer fiadas de tijolos, não conseguiu transformar a sua visão
em realidade, e mesmo o Bairro da Ajuda/Boa Hora e o Bairro do Arco do Cego,
dois dos poucos empreendimentos que tiveram obra de facto, acabaram por ser
finalizados já pelo Estado Novo, que ainda foi a tempo de os “ajustar” à sua
concepção individualista. As habitações acabaram assim nas mãos de “moradores-adquirentes”,
reforçando-se o pilar família/herança, e os cabelos de Salazar assentaram
novamente. Ademais, o facto de ter sido ele a ter de terminar as empreitadas
que os republicanos, no meio do caos político e financeiro, não tinham sido
capazes de erigir, reforçou a imagem de competência que vinha laboriosamente a
contruir desde o dia em que assumiu funções políticas, se não mesmo desde o dia
em que nasceu.
“Feliz aquele que administra
sabiamente / a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias / Podem passar os
meses e os anos nunca lhe faltará” (Ruy Belo)
Em
Junho de 1970, no número 1496 da Seara Nova, o arquitecto Nuno Teotónio
Pereira, cansado do aumento contínuo de barracas e bairros de lata na capital,
faz publicar um texto sugestivamente intitulado A nódoa de Lisboa. Esse tipo de “alojamento sem ser em prédio”,
como eufemisticamente lhe chamava o Censo de 1960, não era de todo uma
especificidade portuguesa, como bem podiam comprovar os inúmeros emigrantes
lusos transferidos directamente da miséria local para a miséria estrangeira de
um qualquer “bidonville” nos arredores de Paris. Esse pormenor, no entanto, não
servia de consolo a Teotónio Pereira, nem, supõe-se, aos moradores das
barracas, nem tampouco, e isso sabe-se hoje sem sombra de dúvida, às
autoridades políticas, que, programa após programa, iniciativa após iniciativa,
se sentiam, embora não o confessassem, como Sísifo nos seus trabalhos.
Note-se
que nesse ano de 1970, Portugal levava já mais de duas décadas de novas
experiências habitacionais públicas, de escala significativamente maior do que
aquela que desejava casar, sob apadrinhamento do fiscal e do seu ficheiro, o
pequeno proprietário com a casinha portuguesa “de” Raul Lino. A promoção do
arrendamento social, vista com muito maus olhos nos primeiros vinte anos de
Estado Novo, começa a ser alvo de uma visão refrescada, mais por necessidade do
que por convicção, em meados dos anos 40, e algo de semelhante acontece, pelos
mesmos motivos, em relação ao tema dos grandes blocos de habitação colectiva.
O
Bairro de Alvalade, por exemplo, onde trabalharam vários arquitectos conhecidos
dos quais se destaca Miguel Jacobetty Rosa, foi uma iniciativa levada a cabo
pelo poder central e municipal que conjugava rendas económicas, extensa área
urbanizada e construção em altura, e a sua visibilidade, indisfarçável, logo
despertou o interesse de outras cidades portuguesas, que prontamente deitaram a
mão aos projectos de Jacobetty e aos fundos disponibilizados pelo Estado.
Casas de Renda Económica do Bairro do
Tarrafal, Matosinhos, um dos “pequenos Alvalades” que surgiram pelo país; Arq.
Miguel Jacobetty Rosa, 1951
Datam
igualmente desta época do pós-guerra a construção de Bairros para Famílias
Pobres (um dos arquitectos envolvidos foi Ruy Jervis d'Athouguia, um
aristocrata reservado que, dando provas de grande ecumenismo, desenhou casas
para pobres ao mesmo tempo que projectava edifícios para a elite, como é o caso
da emblemática Sede da Fundação Calouste Gulbenkian), Bairros para Pescadores, Bairros
do Movimento Nacional de Auto-Construção, um nome que é todo um programa mas
que contavam com apoio público, Bairros da Fundação Salazar, os quais, à
semelhança da ponte sobre o Tejo, se chamam agora 25 de Abril, Colónias Agrícolas
em vários concelhos, principalmente do interior, numa tentativa de travar o
êxodo rural, ou seja, de parar o vento com as mãos, Bairros “do” Padre Américo,
enfim, todo um conjunto de políticas que, todavia, coexistiam com um sem-fim de
lamaçais inundados por barracas de madeira carcomida e chapa esburacada.
“E a alegria é uma casa
recém-construída” (Ruy Belo)
Assim
sendo, logo no início da governação de Marcello Caetano, e como resultado de uma
longa reflexão que atribuía as insuficiências da política de habitação
(“falhanço” era uma palavra proibida) ao facto de esta se encontrar dispersa
por várias entidades, é criado o Fundo de Fomento da Habitação (FFH), organismo
destinado, de acordo com o engraçado lero-lero do governo, a “concentrar o
estudo da problemática”. Estamos em pleno III Plano de Fomento e numa época em
que parte do regime, contra a opinião de uma outra parte mais conservadora,
tentava importar para Portugal algum do Estado Social que caracterizava as
democracias da Europa ocidental.
O
FFH, através do conceito de Plano Integrado (o arquitecto Nuno Portas, cujas
ideias foram aproveitadas para esta abordagem, chamava-lhe uma “arquitectura de
nova dimensão, integradora dos sucessivos escalões de planeamento”), inicia
então o planeamento de empreendimentos de grande escala, não apenas ao nível
dos edifícios previstos, mas também em relação às vias de comunicação, às
infraestruturas e aos equipamentos sociais, ou seja, dá-se o tiro de partida,
no nosso cantinho, ao lançamento dos grands
ensembles que polvilhavam desde o final da II Guerra Mundial as áreas
metropolitanas francesas, alemãs ou italianas e que, por essa altura,
comprovando pela enésima vez a nossa chegada tardia às coisas, começavam a ser
postos em causa pelas populações e autoridades desses países.
Vários
arquitectos, alguns deles famosos nos dias de hoje mas nessa época em início de
carreira, começam por isso, num espaço temporal que engloba os anos finais da
ditadura e os primeiros anos pós-25 de Abril, a projectar, no âmbito destes PI,
ou Planos Integrados, ou 3,14 para os amigos, blocos e mais blocos de habitação
social, uns para arrendamento, outros no sistema de propriedade resolúvel, ou
seja, a amortização por prestações mensais característica das “casas
económicas” dos anos 30, espalhando pelo território milhares e milhares de
casas e apartamentos.
E
a estas devemos também somar as muitas habitações construídas como resposta
pública a catástrofes (com destaque para os Bairros Gulbenkian, nascidos de uma
espécie de PPP formada para acudir as vítimas das grande cheias de 1967), os
Bairros CAR, construídos para alojar o mais rapidamente possível os retornados
de África, visto que a solução provisória – mosteiros, seminários, casas de
acolhimento, conventos, parques de campismo, autocaravanas, pensões,
residenciais e hotéis de uma, duas, três, quatro, cinco estrelas, e mais
estrelas houvesse, caso isto fosse o Dubai – se revelava excêntrica e
dispendiosa, e os Bairros SAAL, cooperativas de trabalho conjunto entre o povo
(o real, mesmo, e não o das teorias ideológicas) e grandes nomes da arquitectura
(Siza Vieira, Alcino Soutinho, Fernando Távora, Gonçalo Byrne, etc.), numa
experiência inovadora e marcante, pontuada por muita utopia revolucionária, mas
que teve projecção internacional e nos deixou frases memoráveis, como aquela em
que um morador, interrogado sobre as suas preferências conceptuais, contrapõe
um magnífico “o senhor arquitecto faça como se fosse para si que de certeza que
eu vou gostar.”
“E a alegria é uma casa demolida”
(Ruy Belo)
Mais recentemente, já na época de estabilidade democrática em que dois gigantes, Mário Soares e Cavaco Silva, ocupavam, numa feliz coincidência histórica, as cadeiras da Presidência e da chefia do Governo, provocando-se mutuamente, às vezes de uma forma feroz, mas também contribuindo para que cada um desse o seu melhor na respectiva função, dá-se a construção de dezenas de milhares de habitações destinadas à substituição das barracas que teimosamente ainda subsistiam. Soares aproveita as suas Presidências Abertas para, no âmbito daquilo que na gíria se convencionou chamar “magistratura de influência”, denunciar as indecentes condições de habitabilidade que marcavam certos territórios, e Cavaco, o executivo, responde-lhe com a pulsão, sempre à flor da pele, de “fazer obra”, demolindo, em conjunto com os municípios, uma infinitude de bairros de lata e de habitações precárias degradadas, não todas, infelizmente, dizem uns que por causa do boicote político de algumas autarquias, dizem outros que por causa de várias outras vicissitudes, sendo seguro que, entretanto, talvez mesmo no mês ou na semana passada, há novas barracas a nascer por aí, muito frágeis na aparência, é certo, mas solidamente resistentes aos discursos bondosos sobre pobreza e chagas sociais.
“Oh
as casas as casas as casas”, escrevia Ruy Belo já não no livro O Problema da Habitação, de 1962, mas
num outro, País Possível, editado nas
vésperas do 25 de Abril. Sim, ouve-se perguntar, onde estão as casas as casas
as casas, milhares e milhares delas, construídas com dinheiro público nos
últimos 100 anos, mesmo que descontemos outras tantas que foram feitas no
modelo de propriedade resolúvel, e destinadas por isso, desde o início, a terem
como destino final a posse privada? O tal 2%, número que nos martela os ouvidos,
o fraquíssimo indicador da nossa liliputiana habitação pública, não parece
compatível com tanto arquitecto, tanto projecto, tanta obra.
E,
no entanto, é! Consciente das suas próprias e gritantes dificuldades de gestão,
da cobrança das rendas à conservação dos imóveis, o Estado, nos últimos 40
anos, tentou livrar-se a todo o vapor, e se calhar ainda bem!, dos seus
edifícios arrendados, umas vezes entregando-os às autarquias, quando estas,
distraídas, os aceitavam, outras vezes, a maioria, vendendo as fracções aos
respectivos inquilinos, numa operação de larguíssima escala que pouca gente, se
é que alguém, consegue quantificar. E as autarquias, como é óbvio, sentindo
idênticas aflições quando envergaram o fato de senhorio, fizeram o mesmo. O que
sobrou, 2%, aí está, para consumo público em letra de imprensa, pois, como
muito bem diz o povo na sua descomplexada sabedoria, quem o rabo vende não se
senta quando quer.
PS (salvo seja!) – a
maioria da informação que aparece neste texto foi recolhida no excelente livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas em
Portugal, 1918 - 2018 (INCM, Dezembro de 2018, 525 pp.), encomendado pelo Instituto
da Habitação e da Reabilitação Urbana IP a um vasto conjunto de investigadores
coordenados pelo arquitecto e professor universitário Ricardo Costa Agarez.
Seria talvez boa ideia que a Ministra da Habitação e o PM, ainda que na
diagonal, deitassem pelo menos os olhos aos estudos solicitados pelo próprio governo
de que fazem parte. Poderiam assim contactar com esse longo período em que o
Estado – fosse ele dirigido por republicanos radicais, ditadores reaccionários
ou democratas liberais –, quando queria entregar casas ao povo (uma opção
discutível, mas legítima), metia as mãos na massa e não na argamassa dos outros.
Sérgio Barreto Costa
(texto originalmente publicado no jornal Observador)
Sem comentários:
Enviar um comentário