Forma dat esse
Num
texto sobre as últimas palavras ("E então vós julgais" in Nenhum de
nós há-de voltar), Charlotte Delbo, uma «concentracionária», refere-se às
palavras dos moribundos como palavras solenes. O tema pode não ser novidade,
mas o contexto – o Lager – é. Segundo os linguistas, solemnis
compõe-se de sollus annus. É solene o que ocorre todos os anos. O
termo tem, pois, origem na esfera mítica; diz o regresso do mesmo. Esperado, o
sagrado renova-se no mundo e renova o mundo, desse modo tudo se passa como se o
ciclo imanente do eterno retorno acarretasse uma solenidade objectiva. Na
morte, porém, a imanência quebra-se. O que acontece, acontece uma única vez. A
eternidade está diante dos olhos na despedida absoluta. O «nunca mais» tem
necessariamente uma solenidade diferente. Longe de regressar, o solene da morte
apõe o selo da ausência definitiva. Nessa medida, confere à morte o seu
carácter humano, histórico. Nas últimas palavras ditas vem à luz do dia a mais
evanescente das formas humanas, que, no entanto, é a sua forma por excelência :
o viver em comum com os outros, que faz do homem o animal político. As
derradeiras palavras, banais ou não pouco importa, assinalam a comunhão entre
os homens no exacto acto de se perder. Ao passar algo a outrem, passa-se o próprio.
O poder ter uma morte funda a traditio, a continuidade dos homens. A solenidade dos moribundos assenta
precisamente nessa forma de esperança.
Mas
no Lager tudo é roubado aos homens. As coisas são-no para roubar a vida,
a vida é-o para roubar a morte. O homem
sem morte reduz-se a coisa, e as coisas não morrem: reduzem-se a matéria-prima
que se transforma como elemento do mundo físico. Quando não há esperança,
desaparece a necessidade de solenidade. Conta Delbos:
«'Desta vez vou bater a bota.'
Estavam
nuas em cima de tábuas nuas.
Estavam
sujas e as tábuas sujas de diarreia e de pus. [...]
Mas
não era permitido serem fracas para consigo mesmas.
Então
disseram: 'Vou bater a bota» para não tirar a coragem às outras e contavam tão
pouco que alguma sobrevivesse que não confiaram nada que pudesse ser uma
mensagem.»
A des-solenização, o disfemismo, é a vingança do humano, que assim se diz de forma invertida – sem esperança. Como se nessas palavras a comunicação entrasse em curto-circuito, perdesse a história que lhe é inerente e regressasse em ricochete para o presente estreito: ad immunda per angusta. O efeito é especular. Quem as escuta devolve a quem as diz o que todos sabem, o que todos aguardam: a morte à porta fechada, fora do mundo humano. Nenhuma mensagem – sans phrase : aqui viveu um ser humano – será transmitida. A morte humana que denuncia a imanência do mesmo acaba assim por se reabsorver nele. Delbos sabe-o e cumpriu-o: o que pode restar da luz de uns olhos que se extinguiu noutros olhos converte-se no dever moral de dar testemunho. Uma última forma.
João Tiago Proença
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