Anne Applebaum faz
parte de um núcleo muito restrito de investigadores de primeiríssima água que
se debruçam desde o Pós-Guerra na Europa de Leste até à análise sistemática das
tendências antidemocráticas que varrem atualmente o continente europeu – é uma
historiadora especializada na história do comunismo e na Europa pós-comunista,
sem alinhamentos e de um rigor indiscutível. A Cortina de Ferro, A
Destruição da Europa de Leste 1944-1956, por Anne Applebaum, Bertrand
Editora, 2023, é um documento impressionante, possui o rigor que é timbre da
melhor historiografia, abala-nos a consciência pelos alicerces, em mais de 600
páginas iremos acompanhar migrações dramáticas no continente europeu, a asfixia
das sociedades civis na Europa de Leste, entre a RDA e a Bulgária, acompanhar a
execução do planeamento soviético para destruir qualquer veleidade ao retorno a
democracias parlamentares, à execução dos opositores ao projeto totalitário,
uma longa viagem que nos levará às convulsões em Berlim em 1953 e à revolução
de Budapeste em 1956.
Estaline experimentou
este projeto logo em 1939, depois de a Alemanha de Hitler e a URSS terem
assinado o pacto germano-soviético, em que se acordou a divisão da Polónia,
Roménia, Finlândia e Estados Bálticos. Logo o leste da Polónia, o leste da Finlândia,
as nações bálticas, Bucóvina e Bessarábia (Moldova), foram incorporadas na
União Soviética. Os territórios orientais da Polónia ainda hoje fazem parte da
Ucrânia e da Bielorrússia. Quando a Alemanha de Hitler baqueou e chegou o
Exército Vermelho, este fazia-se acompanhar de oficiais do NKVD, desde 1939 que
já havia experiência em deportações em massa para os Gulag, havia que ensinar a
sovietizar as populações locais.
O que se conta em
primeiro lugar é o cataclismo que a guerra provocou, com a sua violência
étnica, a chegada e o comportamento dos vencedores, as expulsões de populações,
dá-se um quadro claro do que era a representatividade comunista nestes países,
de um modo geral diminuta, no fim da guerra verdadeiramente prestigiado só
havia Tito, fora o único movimento comunista que dera luta sem tréguas ao
invasor alemão; vamos, igualmente, ficar a saber as mudanças que se operaram
nas polícias políticas nos países submetidos à URSS e como o NKVD as instruía,
como de forma programada se liquidou o Exército Nacional polaco, o símbolo da
resistência da Polónia ao nazismo.
Anne Applebaum
centrou o seu trabalho nos acontecimentos polacos, húngaros e checoslovacos,
será nestes territórios que iremos acompanhar a sua narrativa sobre o que
aconteceu em limpeza étnica, como se moldou a nova juventude aos ideais
soviéticos, como se destruiu a liberdade de opinião e se procurou reduzir a
oposição política a pó. Insista-se nesta observação da autora: “o Exército
Vermelho levara agentes da polícia secreta treinados em Moscovo para todos os
países ocupados, tinha posto comunistas locais no comando das estações de rádio
nacionais e começado a desmantelar as associações juvenis e outras organizações
cívicas. Prenderam, assassinaram e deportaram as pessoas que julgavam
antissoviéticas e executaram uma brutal operação de limpeza étnica.” A resposta
dos aliados ocidentais veio tardia e revelou-se incapaz de remover a chamada
Cortina de Ferro, mesmo com o Plano Marshall, a operação de salvar Berlim e o
desencadear da Guerra Fria, o comunismo soviético implantara-se. O
descontentamento virá depois, logo na economia, revelou-se incapaz de competir
com o fulgor da explosão que se deu no Ocidente, a começar pela Alemanha. A
autora dá-nos conta dos conflitos em torno da chamada reforma agrária, como a
nacionalização da distribuição e do retalho convidou ao mercado negro, como os
planos quinquenais, a despeito de inequívocas melhorias, foram insuscetíveis de
agradar às populações.
Veremos passados em
revista os chamados inimigos e os chamados reacionários, os conflitos com as
igrejas, e assim iremos chegar aos inimigos internos e a autora lembra-nos uma
observação de um carrasco soviético, Lavrentii Beria: “Uma pessoa que é
espancada fará o género de confissão que os agentes do interrogatório quiserem,
admitirá que é um espião inglês ou americano ou seja o que for que nós
quisermos. Mas nunca será possível saber a verdade desta maneira.” Moscovo irá
decidir ao longos dos anos quem deve dirigir cada um dos países, o destino de
cada um destes líderes é passado em revista, dá-se especial atenção à tragédia
de Gomulka, o dirigente polaco umas vezes incensado outras vezes acusado de
desviacionismo de direita, a eterna questão dos judeus infiltrados na direção
comunista; o estalinismo ir-se-á progressivamente refinando à medida que estes
países conquistados da Europa de Leste não dão uma imagem satisfatória do homem
novo ou o homem soviético, tudo se tentou no ensino para mudar os programas e
pôr as crianças desde os bancos da escola a conhecer as delícias de uma próxima
sociedade sem classes dirigida pela vanguarda proletária, todas as classes de
pensamento foram abaladas, como observa a autora: “A partir de 1948, as
autoridades da Alemanha de Leste, bem como as da Hungria e as da Checoslováquia,
lançaram um ataque mais sistemático contra as faculdades de filosofia,
história, sociologia e direito, que foram todas elas transformadas em veículos
de transmissão de ideologia, como eram na União Soviética. A história tornou-se
história marxista, a filosofia, filosofia marxista, o direito tornou-se direito
marxista e a sociologia com frequência desapareceu de todo.” Os académicos
foram fugindo, não só das ciências sociais e humanas, mas também os físicos,
matemáticos e técnicos; os comunistas sonhavam com a proletarização do corpo
estudantil, seria a base da nova intelligentsia socialista, o processo
deu os seus fiascos, os estudantes tinham colapsos nervosos, atenda-se que na
esmagadora maioria homens novos da classe operária sem instrução secundária não
conseguiam acabar os cursos por não terem suficiente capacidade para tomar
notas nas aulas.
O leitor que se
prepare para este livro de uma importância excecional, que nos permite conhecer
como foi montado o mito do realismo socialista, o planeamento de cidades
ideais, quem eram os opositores passivos nos diferentes países de Leste e como,
depois de 6 de março de 1953, anunciada a morte de Estaline, e com as novas
mudanças na hierarquia soviética, o indizível aconteceu, primeiro em Berlim,
depois em Budapeste, e a historiadora comenta: “Mesmo quando parecem
enfeitiçados pelo culto do chefe ou do partido, as aparências podem ser
enganadoras. E mesmo quando parece que estão totalmente de acordo com a mais
absurda propaganda, o feitiço pode repentinamente, inesperadamente,
dramaticamente, ser quebrado.”
Foi um regime que
durou mais de 30 anos nessa Europa de Leste, regularmente os seus próceres
interrogavam-se porque é que a propaganda não resultava, porque é que o terror
era insuficiente, quais as mudanças nacionais que a URSS aprovaria. Em Moscovo,
o dogmatismo impediu ver a aceleração do mundo, Gorbachov tentou remediar o
irremediável, perante um mundo atónito caiu o Muro de Berlim e a Europa de
Leste cedo começou a apagar as marcas da utopia comunista. Escusado é dizer que
ainda há sequelas à vista.
De leitura
obrigatória.
Mário Beja Santos
Tanto tempo passado e o socialismo continua enraizado em grande parte da população ( veja se a ameaça aos proprietários e senhorios e a discussão sobre controlo de preços, para não falar do fim das PPP na saude etc ). Nos Eua o socialismo e a diabolizacao do capitalismo é a moda nas universidades e nas novas gerações .
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