Todos os Homens São Mentirosos, por Alberto Manguel:
Um quase inquérito policial sobre acidente ou crime, verdade ou fantasia
Este
escritor polifacetado (não lhe escapa o ensaio, o romance, a crítica literária,
a antologia, a tradução, a edição, a intervenção televisiva com que agora nos
honra, desde que escolheu viver entre nós e oferecer a sua biblioteca
monumental aos lisboetas) é medularmente argentino e sente-se à légua a dívida
que tem com um escritor seu conterrâneo, o genial Jorge Luis Borges. Porque
este romance Todos os Homens São Mentirosos, Tinta da China, 2023,
cultiva os enredos pautados pelo inexplicável, o duvidosamente visto. Quando um
jornalista francês se lançou à procura do esclarecimento da morte do genial
escritor sul-americano Alejandro Bevilacqua, que se despenhara mortalmente do
balcão da casa onde vivia, em Madrid, isto nos anos 1970, vai recolher testemunhos
absolutamente dispares, mas todos eles fabulosos, harmoniosamente labirínticos,
crípticos: da sua presumível amante espanhola, de um escritor argentino que
garante ter sido o seu único confidente, do cubano que jura a pé juntos ter
partilhado a cela com ele durante a ditadura militar argentina e, pasme-se, até
de um delator que já morreu, mas continua a informar desde o além. A trama
parece desorientar, e será sempre mais fácil para o leitor que para o
jornalista dizer uma de duas coisas: todos os homens são mentirosos ou para
cada um a sua verdade.
Alberto
Manguel veste o fato do tal escritor argentino que garante ter sido o seu único
confidente. Teriam sido amigos que não tinham nada em comum, vai encher a
entrevista com mais perguntas que respostas, descreve a genealogia dos
Bevilacqua, gente que vem de Bérgamo, e dá-nos o retrato desse homem que saltou
do balcão da casa e se estatelou no solo da rua: “Tinha uma espécie de graça
natural, uma elegância simples, uma presença anónima. Alto e magro como era,
movia-se lentamente, como uma girafa. A sua voz era ao mesmo tempo rouca e
tranquilizadora. Os seus olhos encapuchados, latinos, diria eu, davam-lhe um
aspeto sonolento. Quando estendia os seus dedos finos, amarelos de nicotina,
para agarrar a manga do interlocutor, deixávamo-nos prender, sabendo que toda a
resistência era inútil.” Dirá mesmo que era um cavalheiro da província. Ficamos
a saber que não era muito amigo do trabalho, que recebera uma herança da avó,
que inesperadamente se encontraram em Madrid, dois exilados. Fatal como o
destino, volta-se ao passado para falar de Buenos Aires, um confidente tem
muitos segredos, o entrevistado fala dos amores precoces de Bevilacqua, a
importância que teve na vida dele Loredana, que vivia com um artista de marionetas,
tudo acabou na água; e depois temos a vida cosmopolita e intelectual de Madrid,
volta-se ao passado para falar de Graciela, outro amor sem futuro, agora em
Madrid Bevilacqua dá-se com a ardente Andreia, nesta altura Bevilacqua vende
bugigangas nas ruas e a Andreia descobre na casa onde vivem um saco onde havia
um embrulho, ela abriu e era uma pilha de folhas, a primeira tinha um título: Elogio
da Mentira, por portas e travessas teremos obra editada, a crítica
exalta-a, no mínimo trata-se de uma obra-prima. E caminha-se para o mistério. No dia do lançamento o autor foge,
recolhe a casa, há uma confusão de entradas e saídas. E não tem resposta para
estas perguntas: quem era esse homem que ele conhecera sob o nome de Alejandro
Bevilacqua, quem tinha sido essa personagem contraditória, luminosa e opaca?
O
jornalista bate a outras portas. Há quem conteste tudo quanto disse Manguel. A
amante arvora-se na verdadeira conhecedora de Alejandro, conta a história do
saco e do manuscrito, fez-se a edição à revelia de Bevilacqua. E há uma
história estranha de alguém que apareceu dizendo que era autor daquele livro,
há para ali páginas de uma grande beleza: “Escrever é uma forma de ameaça com o
que não se pronuncia em voz alta, com a sombra das letras a atormentar-nos
entre as linhas.” Ela confessa que Alejandro tinha sido preso e espancado, que
havia policias sinistros. E termina o seu depoimento: “Li em algum sítio que a
única coisa que podemos fazer para lutar contra a irrealidade do mundo é contar
a nossa própria história.”
E
surge alguém que conheceu Bevilacqua na prisão, era escritor, confessa ser o
autor do Elogio da Mentira, pediu a Bevilacqua que se acaso ele saísse
da prisão em primeiro lugar levasse o manuscrito. Passou-se este tempo todo,
também veio para Madrid, está presente no dia do lançamento, mais tarde trocam
confidências e Bevilacqua chega a dizer-lhe que já não se lembrava que tinha
tal manuscrito e não era minimamente responsável pela sua publicação. E
descreve aquela balbúrdia lá em casa que culminou talvez com um assassinato ou
um suicídio.
Há
parágrafos prodigiosos que surgem como um solilóquio, é alguém que ganha a vida
como informador da polícia política, irá também convergir para Madrid, o
nevoeiro sobre o destino de Bevilacqua adensa-se, é como se alguém nos
estivesse a falar do outro mundo.
Compete
ao jornalista o grande final, não há euforia, ele parece arrepelar o cabelo,
toda esta trama, os depoimentos do tal confidente, da amante, daquele que jura
ter partilhado a cela, do delator que depõe como se estivesse numa reunião
espírita, é tudo nevoeiro, e clama para que o leitor não se sinta defraudado:
“O que importa foi dito. Saber quem matou quem, como, porquê, são assuntos que
apenas interessa ao burocrata ou ao inspetor de polícia, e eles não lerão estas
páginas. A personagem que cheguei a conhecer por interposita persona é
quase inexistente; transita de hipótese a hipótese segundo a sua figura
concorde com determinados dados e preconceitos (…) Nem todos esses diversos
Bevilacquas são os que o jornalista persegue. Nem todas as facetas de uma
realidade lhe interessam. Apenas uma, se é sincero, ou talvez nenhuma. Por isso
escreve. Para dá-la a conhecer de um ponto de vista particular, privado (…)
Agora que conheço (ou penso conhecer) a história de Alejandro Bevilacqua, sei
que não a escreverei. Em parte, porque não existe como história, como essa que
os leitores de Elogio da Mentira esperam, prólogo ou coda ao livro
fantasma, biografia desse espectro quase anónimo que hoje usurpa o papel de autor
nas bibliotecas do nosso mundo (…) Não sei se o próprio Bevilacqua teria
reconhecido, nesse catálogo de versões biográficas, a sua, a verdadeira. Como
saber, entre tanta figura que se parece connosco nos espelhos, qual é a que nos
representa cabalmente e qual é a que nos atraiçoa. Do nosso ínfimo ponto do
mundo, como poder observamo-nos a nós próprios sem falsas imaginações? Como
distinguir a realidade do desejo?”
Atrevo-me
a dizer que mesmo quem souber ler nas entrelinhas será capaz de descobrir se
houve acidente ou crime e quem, acima de tudo, era esse ser humano que dava
pelo nome de Alejandro Bevilacqua, se era infame, herói, genial escritor ou
oportunista. Afinal, nada se fica a saber em concreto.
De
leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
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