terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Turno da noite.

 
 
 



 































 
 
 
 


 




O «gabinete» de Konstantin Petrov




 
 
 
 
 
Em Junho de 2001, Konstantin Petrov, um imigrante da Estónia, arranjou emprego como electricista no Windows of The World, em Nova Iorque. Há dias, falei aqui desse restaurante, situado no topo da Torre Norte do World Trade Center. Poucos meses depois de Petrov começar a trabalhar aí, dois ataques suicidas transformaram em cinza e poeira as Torres Gémeas. Entre o primeiro embate do avião e o último suspiro das Torres não passaram mais do que 102 minutos. Entre os funcionários que estavam a trabalhar no Windows of the World, ninguém sobreviveu.
 
         O chef do restaurante salvou-se por um acaso do destino. Nessa manhã, antes de subir ao alto da Torre Norte, passou pelo centro comercial que ficava no piso inferior do WTC para mandar reparar os óculos numa loja de artigos ópticos. Konstantin Petrov sobreviveu por uma outra razão: saíra do Windows of the World ao alvorecer, como sempre. Trabalhava ali durante a noite. Duplo emprego, turno da noite, a vida de um imigrante. De dia, cuidava de um prédio de apartamentos do outro lado de Manhattan. Ao final da tarde, encaminhava-se para o Windows of the World, onde permanecia noite dentro, muitas vezes só tendo por companhia as luzes da cidade, o barulho das sirenes ao longe. 
 
 
         Petrov tinha a paixão da fotografia, captando tudo quanto passava diante da sua objectiva. Deixou centenas ou milhares de imagens. O seu acervo pessoal é único. Desde a vida em Tallinn até à sua família, passando por motas – outra das suas paixões – tudo aqui se encontra. Possivelmente deslumbrado pelo ambiente e pelo décor do Windows of the World, ofuscado pelas mil luzes de Nova Iorque, fotografou tudo, literalmente tudo. Até um insecto pousado na janela do restaurante, a 410 metros de altura. Nos poucos meses que ali trabalhou, até tudo aquilo se desfazer em cinza e poeira, fotografou o restaurante ao entardecer ou ao raiar do dia. Das suas imagens transparece uma solidão e uma tonalidade cálida que fazem lembrar os quadros de Hopper. Petrov captou tudo. Os salões principais, os pormenores da arquitectura, mas também as entranhas do restaurante, os espaços inacessíveis. As casas-de-banho dos clientes e as dos empregados, bastante diferentes daquelas. O espaço exíguo dos gabinetes de cada qual, e até a toca que ele próprio conseguiu fazer nas profundezas do World Trade Center. As cozinhas, vastas. Percebe-se bem a diferença entre os dois ambientes, melhor do que se lermos o célebre livro de Goffman sobre o modo como nos apresentamos na vida de todos os dias, ora à mesa, ora à cozinha. A qualidade técnica e artística das imagens é duvidosa, o que só aumenta o seu encanto e valor. Não se vê vivalma, quer o restaurante esteja em repouso, com as cadeiras empilhadas, que se encontre em estado de alerta, prestes a receber freguesia. Provavelmente, com a sua paixão pelas imagens, Petrov constituiu o maior arquivo fotográfico existente sobre o Windows of the World, algo que desapareceu para todo o sempre. O seu espólio tem sido precioso para os que procuram mostrar como era a vida nas Torres Gémeas. Encontra-se alojado aqui, num local de partilha de imagens chamado Fotki, que foi desenvolvido por Dmitri Don, um programador informático que chegou a Nova Iorque e inventou aquilo, muito antes do Flickr ou do Facebook. Quando mostrou o Fotki a potenciais investidores, estes desprezaram a ideia, dizendo que as pessoas poderiam muito bem mandar fotografias por e-mail... Falido, sem perspectivas de emprego, Dmitri regressaria à Estónia. Antes disso, por volta de 1998, convencera o seu amigo Konstantin a vir trabalhar para Nova Iorque. Petrov chegou à América com 25 anos de idade. Na sua terra natal, tinha uma ocupação curiosa: fazia e comercializava aparelhos para que os seus compatriotas pudessem captar ilegalmente o sinal televisivo emitido na Finlândia.
     
       Há um livro que se chama precisamente Windows of the World, um romance ou novela que relata os dilemas sentidos pelos que ali estavam na manhã de 11 de Setembro de 2001. O electricista da Estónia fotografou o espaço à exaustão, como se adivinhasse o seu destino. Não se ficou pelos salões, mostrando como seria trabalhar ali, até ao dia em que um avião suicida matou todos quantos ali trabalhavam. Mesmo que fossem imigrantes com dois empregos, gente vulgar como ele, Konstantin Petrov. Normalmente, quando o turno da noite acabava, por volta das 8 horas, Konstantin ficava mais um tempo por ali, a tomar café e a falar com os colegas. Na manhã de 11 de Setembro de 2001, porém, mal terminou o turno decidiu ir para casa. Estava a sair do parque de estacionamento do World Trade Center quando o primeiro avião embateu na Torre Norte, aquela em que ficava o Windows of the World. Sentiu o estrondo, seguiu em frente. Quando chegou a casa, ligou a televisão, viu o que se passava, telefonou para o restaurante, conversou um pouco com alguns colegas. Foi a última vez que falou com eles.       
 
         A sua história é tão ou mais fascinante do que as fotografias que tirou. A New Yorker contou-a, com grande desenvolvimento, num artigo que é também uma homenagem póstuma a um rapaz da Estónia deslumbrado pelas luzes da cidade. Do que morreu, não dizemos, para não estragar o suspense. Está tudo passado a pente fino numa reportagem da New Yorker – sem dúvida, a revista mais apropriada para narrar os trabalhos e os dias de um estónio em Nova Iorque.
 
 



 

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