domingo, 21 de junho de 2015

Adriano e Adorno.

 
 
 
Marguerite Yourcenar (1903-1987)
 
 
 
 
 
As Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar,
e a poesia após Aushwitz
 
 
 
Entre muitos autores de língua francesa que fazem parte do meu Panteão literário, tenho de referir o meu precoce fascínio por Marguerite Yourcenar (Bruxelas, 1903-Mount Desert Island, no Maine, 1987), famosa desde o enorme  sucesso das suas Memórias de Adriano (1951), romance histórico[1] que tive o prazer de ler poucos anos depois, numa elegante edição da Guilde du Livre,[2] de 1959, assim como me impressionaria depois L’Oeuvre au Noir (1968), síntese impressionante dos dramas apocalípticos do século XVI, imagem já do que seria o século XX, além de tradutora do grande poeta grego de Alexandria, Constantin Cavafy (1863-1933). Esta obra, escrita sob a forma de uma carta redigida no final da vida de Adriano ao seu sobrinho-neto adoptivo Marco Aurélio, foi dedicada à figura excepcional do imperador que sucedeu a Trajano e governou Roma durante  duas décadas, de 117 a 138 d.C., assegurando por duas décadas a immensa romanae pacis majestas (“imensa majestade da paz romana”), vivendo num período situado entre a piedade ritual e o cristianismo nascente. Nestas memórias a autora inspirara-se numa observação de Flaubert, segundo a qual “Les dieux n´étant plus et le Christ n´étant pas encore, il y a eu, de Cicéron à Marc Aurèle, un moment unique où l’homme seul a été”, fazendo de Adriano essa figura solitária, chocado pelo intolerância de judeus e cristãos, sonhando com um Panteão, esse santuário onde todas as divindades coabitassem, edifício reproduzindo a forma do globo terrestre, um sábio apaixonado por todas as artes, dado ao cultivo das letras, ele mesmo poeta, grande viajante, homem impregnado de filosofia grega e expressão da perenidade dos ideais do império romano fundado pelo divo Augusto. Yourcenar enalteceu-o numa escrita de grande simplicidade ática, como um “monumento à sua maneira”, tanto mais que a paixão do imperador pelo jovem bitínio Antinous – afogado aos 20 anos no Nilo e logo sepultado num templo e ao qual se prestaria um culto religioso, sendo os eu nome dado a uma cidade, Antinoe –, não deixava de ter um equivalente pessoal na ligação amorosa da escritora belga com Grace Pick, que a acompanhou na sua longa estadia no plácido Maine, desde a guerra até à sua morte.[3] A proximidade da babélica biblioteca de Yale permitiria à autora consultar todas as fontes necessárias para reconstituir a vida e a acção do imperador de Roma.
A verdade, contudo, é que no seu retrato, ao lado de todos os elementos dum perfil olímpico romano, Yourcenar não se esquece de sublinhar a antipatia de Adriano pelos Judeus e a proibição que lhes foi imposta de viverem na sua antiga capital, desde o final da revolta nacionalista e messiânica a hebraica de Bar Kochba contra os ocupantes romanos, que os exércitos destes levaram quatro anos a esmagar, dedicando sete páginas a descrever a longa e cruel guerra do rebelde judeu messiânico – o seu nome significava “Filho da Estrela” contra os exércitos de Roma.[4] Decretou então o imperador Adriano, no final dessa guerra, travada entre 132 e 135, a transformação da antiga Jerusalém na nova Aelia Capitolina, reconstruída sobre a antiga cidade e o espaço do Templo arrasado por Tito em 70 d.C.. Doravante, com o sucessor de Trajano, esmagada a revolta de Bar Kochba, estaria o povo da Bíblia proibido de ali viver, além de que lhes era interdito o exercício da religião moisaica, a ordenação dos rabinos, a circuncisão, a celebração do shabath e o estudo da Torah, estando-lhes ainda vedada a entrada na capital ou no templo de Júpiter Capitolino que substituíra o Templo edificado por Salomão no Monte Moriah, templo duas vezes destruído, primeiro por Nabucodonosor e, por fim, no 9 de Ab (6 de Agosto) de 70, por Tito.[5]
 Só Antonino Pio, imperador desde 138 d.C., autorizaria os judeus a praticarem de novo a circuncisão em Roma, de modo que o judaísmo lograria sobreviver a partir de então. Em suma, se a discriminação do povo da Aliança imposta por Adriano tivesse perdurado, não seria impossível imaginar que a religião de Yaweh fosse varrida da face da terra, apesar da diáspora dos judeus ter chegado aos limites extremo-ocidentais da romanidade. Yourcenar menciona pelo menos um dos episódios mais dramáticos do período em que o pacífico Adriano governou o Império, o da revolta nacionalista de Bar Kochba (“Filho da Estrela”), esse “espírito inculto” que “era daqueles que acreditam nas suas próprias mentiras e cujo fanatismo ia nele de par com a astúcia” que se teria feitio passar pelo “Messias e rei de Israel” (Mémoires d’Hadrien, p.198). A descrição desta feroz guerra entre romanos e zelotes judeus, que durou quatro anos, ocupa várias páginas das Memórias de Adriano (op. cit., pp.198-205), combates em que o próprio imperador participou ao lado das suas tropas, deplorando que um reinado tão pacifico tivesse desaguado naquela refrega tão cruel e longa.
Mas as reflexões de Adriano de Yourcenar sobre os judeus e a sua religião são sempre negativas e desdenhosas. Exemplifiquemos com algumas expressões e frases: o hebreu seria uma “língua de sectários, tão obcecados pelo seu deus que esqueceram o género humano”( p.35); mercadores judeus recusaram pagar impostos aos romanos e um grupo de zelotes de Jerusalém cortou as estradas que conduziam o trigo, árabes e judeus fizeram causa comum na guerra que ameaçava arruinar os seus negócios e “Israel aproveitava-se para se lançar contra um mundo de que era excluído pelas suas fúrias religiosas, os seus ritos singulares e a intransigência do seu deus” (pp. 75-76). Adriano refere que decidira transformar Jerusalém em Aelia Capitolina, uma cidade nova sobre aquela que Tito arrasara, uma grande metrópole para o progresso do comércio no Oriente, instalando no Monte Moriah uma gruta para o culto dos mistérios romanos, o que indignou a população judaica, pois “estes deserdados preferiam as suas ruínas a uma grande cidade em que se ofereciam todas os benefícios do ganho, do saber e do prazer” (p.156).
Adriano recebeu Akiba, velho rabino da sinagoga de Jerusalém, fanático que não sabia grego e que pretendia dissuadir o imperador dos projectos já em curso na cidade, não percebendo que aquele “oferecia a este povo desprezado um lugar entre os outros na comunidade romana: Jerusalém, pela boca de Akiba, comunicava-me que a sua vontade de ficar até ao fim a fortaleza duma raça e dum deus isolado do género humano”(pp. 161-2). Por outro lado, Yourcenar sublinha o esforço de Adriano em erguer o Panteão em Roma, de modo que esse “santuário de todos os deuses reproduzisse a forma do globo terrestre e da esfera estelar, (…), da esfera oca que contém tudo”, sendo o edifício desenhado por Apolodoro um “templo aberto e secreto concebido como um quadrante solar”, rematado essa passagem com uma das mais belas evocações de Roma como a cidade universal apoteótica fundada pelos prófugos de Tróia (pp.142-3).
Compreende-se que Yourcenar, querendo fugir ao anacronismo, tentasse exprimir com sentido historicista o verdadeiro Adriano, mas nesse caso teria sido útil que fosse mais longe na descrição que faz das medidas abertamente discriminatórias tomadas pelo imperador contra o povo judaico, o que só acaba por mencionar en passant, embora  descreva a guerra de Bar Kochba contra o ocupante romano, insistindo na ideia de que “Israel se recusa a ser um povo no meio de outros, possuindo um deus no meio de outros deuses”, sendo “o único povo que tem a arrogância de encerrar a verdade toda nos limites estreitos duma só concepção divina, insultando assim a multiplicidade do Deus que contém tudo; nenhum outro deus inspirou aos seus adoradores o desprezo e o ódio por aqueles que rezam em diferentes altares”.[6]
 
 
After the Holocaust, fotografia de Myatt Lipscomb
 
 
 
 
A qualidade literária inegável desta grandiosa e admirável obra romanesca de Marguerite Yourenar, decalcada sobre as fontes historiográficas referidas na “Nota” (sic) que serve de bibliografia/posfácio das Memórias de Adriano (pp.251-256), não a dispensava de tomar em conta que elas eram publicadas depois de ter havido o horrível anus mundi de Auschwitz, após ter sido cometido o crime inexpiável e incomensurável da Shoah: esse simples facto bastaria para a escritora franco-belga tomar em conta o juízo, talvez excessivo, emitido por Theodor Adorno, quando afirmava que “depois de Auschwitz já não é possível escrever poemas (…). Hitler impôs aos homens um novo imperativo categórico; pensar e agir de tal modo que Auschwitz não se repita, que nada de semelhante aconteça. (...). Auschwitz provou de modo irrefutável falhanço da cultura (…). Depois de Auschwitz, a morte significa ter medo de qualquer coisa pior do que a morte.”[7] (Dito de outro modo, e escrevendo literatura em vez de poesia, a frase de Adorno continua a ser válida para qualquer livro escrito depois da Shoah, depois de Auschwitz: e é precisamente por essa razão que Yourcenar devia ter acrescentado algo às suas magníficas memórias para as inocentar de algo que fosse escrito depois de Auschwitz, como o foram estas memórias sobre um sábio imperador romano e que viveu e agiu e pensou e amou no século II da era cristã, e que até deixou fama como poeta, o autor desses famosos versos: animula, vagula, blandula….
 
 
João Medina
 
 
 


[1] Veja-se  Gérard Vindt e Nicole Giraud, Les  grands romans historiques, Paris, Bordas, 1991, ilustr., maxime pp.24-25 (Mémoires d’ Hadrien) e 58-9. Recorde-se o livro indispensável de Georges Lukacs (1885-1971), Le roman historique, Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1977 (publicado em Moscovo em 1937), filósofo marxista húngaro, conhecido como o “Marx da estética”, que escrevia em alemão, autor ainda d’A Teoria do Romance.
[2] Marguerite Yourcernar, Mémoires d’Hadrien, Lausana, La Guilde du Livre, 1959.
[3] Veja-se Josyane Savigneau, Marguerite Yoprucenar. L’invention d’une vie, Paris, Gallimard, col. Folio 2001, maxime pp.277-302 (cap.“Hadrien retrouvé”),
[4] Sobre a guerra de Bar Kochba contra o exército romano, veja-se Mémoires d’Hadrien, pp.198-205.
[5] Vespasiano mandara Tito esmagar uma revolta judia, seria imperador de 79 a 81 d.C., tendo mandado erguer em Roma um arco de triunfo onde se vê um grupo de soldados romanos transportando a menorah do Templo que o então comandante dos exércitos na Judeia comandara, captura que lhe valera então, no Egipto, o ser coroado com um diadema e, em Roma, um cerimónia de triunfo pessoal decretada pelo senado.
[6] Marguerite Yourcenar, op. cit., p. 197. Sobre a guerra de quatro anos contra os nacionalistas judeus do messiânico Bar Kochba, vide pp.198-205.
[7] Theodor Adorno (1903-1969), La dialectique négative, Paris, Payot, 1966.




4 comentários:

  1. Modestamente (não sou das letras como se dizia no meu tempo)tambem sou um leitor de MY e ao contrario do que normalmente se diz(Os bem falantes nunca lêem apenas relêem))foi dos poucos livros que li duas vezes e provavelmente irei a uma terceira .Alexis ou o vão combate foi mesmo um dos que mais me impressionou na altura em que li.Bom isto tudo para dizer que fiquei sem perceber onde queria chegar o JP .Que a autora se auto censurasse ?Que emendasse a mão dado ter acontecido o holocausto?Que modificasse a historia?Não creio e porisso e se for possivel agradecia uma luz.Obrigado.

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  2. Um romance, mesmo que histórico, é um romance. E a liberdade de quem o escreve está tanto no seguimento da história como naquilo em que a elide.

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  3. Engraçado como ao querer ser perfeito nos achamos no direito de ditar como os outros devem escrever, pensar e agir. Cuidado, foi assim que o Adolfo começou...

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