Há gente
diferente. Por exemplo, aqueles professores de excepção, que nos marcam sem que
saibamos bem porquê, mestres que para sempre guardaremos na memória. Tive a
ventura, ou o bom destino, de ser aluno de Adérito Tavares. Não foi apenas o
melhor professor que tive na vida, é algo mais, uma gratidão difícil de
explicar. Nas aulas de História, entre livros de Braudel e slides de castelos raianos, o professor Adérito contava-nos
episódios da sua vida. Como aquele em que, sendo criança vinda de terras do
Sabugal, se maravilhou ao contemplar as luzes do Rossio à noite. Reclamos
luminosos na Praça de Dom Pedro IV, brilhos faiscantes vistos pelos olhos de uma criança acabada de
chegar à capital nacional.
Na gente diferente, há gente que se
dedica a causas. Os dias, os anos, o tempo e o trabalho, a paciência e a
energia que o Paulo Ferrero já gastou para defender Lisboa é uma coisa que me
deixa deslumbrado de admiração. O Paulo merecia uma estátua pelo bem que nos
tem feito – sobretudo, pelos males que tem evitado ou denunciado. Outros que merecem
aplauso são a Rita Múrias e o Paulo Barata. Andam há muito a recolher os letreiros luminosos que, de tanto passarmos por eles, já fazem parte de nós,
ainda que nem nos lembremos quando desaparecem da vista. A Rita e o Paulo
chamam-lhes «fantasmas», pois o néon é fugidio, quebradiço. Têm
resgatado da destruição muitos dos anúncios faiscantes que fazem parte da
paisagem urbana de Lisboa, tanto como a colina do Castelo ou o Elevador de
Santa Justa. Para o ano, se tudo correr bem, a Rita e o Paulo irão realizar uma
exposição no MUDE – Museu do Design e da Moda. A longo prazo, contam abrir um
Museu do Néon em Lisboa. Que bom seria.
Há um grande Museu do Néon em Las
Vegas, que nunca vi (http://www.neonmuseum.org/ ). Outro em Berlim (aqui). E outro em Varsóvia, no bairro de Praga,
na margem leste do Vístula, um sítio onde os turistas ainda vão pouco, mas
suspeito que irão começar a ir cada vez mais. Não muito longe do Museu do Néon,
no nº 25 da Rua Minska fica o Czar PRL – Museu da Vida Quotidiana sob o Comunismo.
Uma vez, escrevi longamente, mais do
que a conta e o bom senso, sobre alguns lugares da Ostalgie em Berlim. Também na Polónia a memória do comunismo virou
atracção turística. Em Cracóvia, há excursões a Nowa Huta, um lugar sobre o
qual gostaria de escrever, pois tem muita realidade dentro. Sobre Nowa Huta
existe vasta literatura, tendo ainda há pouco saído dos livros que valem muito
a pena. Unfinished Utopia. Nowa Huta, Stalinism, and Polish Society, 1949-56, de Katherine Lebow, e, mais acessível e
cobrindo um âmbito temporal mais vasto, Nowa Huta, Generations of Change in a Model Socialist Town, de Kinga Pozniak. A
ter escolher, escolheria este. Mas quem quiser ficar com uma breve ideia das
cidades-modelo de inspiração soviética (como Sztálinváros, na Hungria,
Stalinstadt, na Alemanha, ou Nowa Huta, na Polónia) pode socorrer-se, em
tradução portuguesa, de Cortina de Ferro.O fim da Europa de Leste, de Anne Applebaum, a pp. 460ss.
É também por causa de um livro que hoje aqui estamos reunidos. Da autoria da fotógrafa Ilona Karwinska, Polish Cold War Neon conta, de forma muito ilustrada, a história do
néon polaco nos tempos do comunismo, quando o regime percebeu as
potencialidades propagandísticas das luzes nocturnas. Nesses tempos negros, foi criada, inclusivamente, uma empresa
estatal só para tratar do néon polaco. No auge da sua actividade, a Reklama
tinha à sua conta cerca de 1.000 instalações de néon espalhadas por um país
que, não sendo pequeno, ainda vem a ser bastante grande. As histórias da Polónia, como
a de Norman Davies, não falam do néon. A mais antiga história da Polónia que
tenho, para mais escrita por um português, também não fala do néon (refiro-me a
Historia da Polonia desde o Seu Começo,
da autoria de José Hermenegildo Corrêa, publicada pela Typograhia de J. B. de Morando em 1865 –
Hermenegildo Corrêa era aspirante da Alfândega Municipal de Lisboa quando
escreveu este livro, em quatro tomos; e quando nos interrogamos sobre se, nos dias de hoje, um
funcionário subalternno das alfândegas seria capaz ou teria sequer vontade de escrever
uma história da Polónia em quatro volumes somos forçados a reconhecer que, em muitas coisas,
houve um retrocesso civilizacional muito estranho). Voltando ao néon polaco, importa dizer que
os anúncios da Reklama eram propagandísticos mas não necessariamente políticos.
Tentando explicar, eram anúncios comerciais, publicitando edifícios, produtos, bens e
serviços, não tendo um conteúdo declaradamente ideológico. Em todo o caso,
veiculavam uma ideologia, a cores berrantes. Estilizados, sensaborões, pouco
criativos, os néons da Polónia nada tinham a ver com os flamejantes painéis de
Las Vegas, e ainda bem. Mas que lhes faltava graciosidade, disso não haja
dúvida.
Para
terminar, um outro livro, Window-Shopping Through the Iron Curtain, de David Hlynsky. Da prestigiada chancela Thames
& Hudson, com um tema interessante – as montras das lojas de Leste – tinha
tudo para ser um bom livro. Não é. Comprei-o mal saiu para o comércio, no início deste ano. O
livro tem uma ampla recolha de fotografias, cobrindo vários lugares: Praga,
Moscovo, Belgrado, etc. Algumas imagens têm a sua graça, pelo kitsch, mas provocam um sorriso e pouco
mais,. As fotografias são quase todas do pós-perestroika, 1989 em diante.
Contextualização histórica, imagens antigas, nada ali existe. Uma decepção
completa. Trata-se de um projecto fotográfico, não de um livro de História, bem
sei. Mas tudo muito fraquinho, com um discurso padronizado e rebuscado,
previsível, algo pedante. O livro não serviu para nada, excepto para falar dele
neste texto, que se despede com um travo de desilusão e amargura pelo tempo
que vos fiz perder. Logo numa altura tão turbulenta da vida nacional, em que o país inteiro se dilacera e debate com a conversão de Jesus ao credo sportinguista.
António Araújo
Obrigado pela referência amiga, António, glups, glups :-)
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