segunda-feira, 29 de junho de 2015

Amaram-se na Selva, de Alexandre Malheiro.

 
 
 
 
 
– Já vejo onde quere chegar, Amélia. Não esqueça, porém, que, nós os portugueses, em contacto, durante séculos, com as mais variadas raças, tivemos cruzamentos de que a nossa gente ainda hoje se ressente. Eu próprio ignoro, e pouco isso me preocupa, se nas minhas veias correrá certa percentagem de sangue árabe, tão longo foi o domínio muçulmano na península ibérica.
– Tem razão, meu amigo. Mas Você deverá lembrar-se de que eu, embora branca, como qualquer europeia, não passo também de uma autêntica mestiça (ou mulata, como Vocês dizem), e bastante próxima dos meus antepassados africanos para que, por um fenómeno ancestral, admitido pelas ciências médicas, bem suas conhecidas, eu possa dar à luz um filho de côr. Não seria isso, para si, um sério motivo de desgosto?
– Nunca pensei em semelhante hipótese que, só como caso verdadeiramente esporádico, se poderia vir a dar – disse José Marques.
– Admita, porém, que esse estranho fenómeno se produzia comigo? – disse Amélia. – Eu, por mim, morreria de desgosto; e Você não poderia ficar muito satisfeito.
         – Era então esse o motivo da sua indecisão em aceder ao meu pedido?
         – Evidentemente. E acha que não tem fundamento bastante o meu retraimento, ou antes o meu escrúpulo em fazer de si meu marido quem, como já lhe disse e repito, muito gosto, sabendo que mais tarde o viria a presentear com um filho preto?
 
         (Alexandre Malheiro, Amaram-se na Selva, Porto, Domingos Barreira Editor, s.d., pp. 184-185, itálicos no original)

2 comentários:

  1. Gostei imenso das vírgulas e do fenómeno ancestral admitido pelas ciências médicas. Que pena o diálogo não ter a sensualidade que se adivinha no título...

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  2. Malandra.Já a preparar qualquer eventualidade que isto é mesmo assim e ninguém sabe o dia de amanhã...

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