terça-feira, 9 de junho de 2015

Bayreuth.

 
 
 
 
 
6 de Junho
Em Bayreuth e ainda não falei de Wagner. Vai ser agora e vou começar ab ovo, quase em Adão e Eva.
Lembro-me da primeira vez que deparei com o seu nome. Confesso desavergonhadamente ter-se-me colado logo um caloroso entusiasmo ao ouvir aquela fabulosa marcha (não sei o nome em alemão, mas em inglês é “Joyfully we greet the noble hall”, do Tannhaüser, 2º acto). Estava no meu 5º ano (hoje, 9º) e por isso o meu curso ainda não fazia parte do orfeão, mas fomos ouvir o ensaio geral. Fiquei siderado. Aquilo era a magia feita música e saiu-me um adjectivo que nunca esqueci – empolgante – que passei a associar à música de Wagner porque depois ouvi o “Coro dos Peregrinos” (também do Tannhaüser) e outros coros que me agarraram pelos fundilhos.  Lembro-me de, já mais grandote, aí com os meus 18 anos, o José Gabriel Ávila, o grande senhor de música do meu curso, gozar desse meu “empolgante” associado a Wagner e implicar com o meu fraco gosto musical (espero que ele se lembre porque nada disto é ficção!).  Regressemos, no entanto, àquele primeiro encontro com Wagner via a dita “Grande marcha” do Tannhaüser. Tinha uma letra portuguesa de José Enes toda iluminista, com um fundo religioso que reflectia lapidarmente a sua mundividência e o papel do Seminário na formação de elites culturais:
Salve ideal mansão, recinto sacro
Onde floresce o divinal talento;
Dando ao amor beleza e arte
Força à virtude, luz e vida ao pensamento.
 
Muito mais tarde vim a aperceber-me de que a letra seguia bem de perto o original. A marcha é a da entrada dos convidados no salão para saudarem o Príncipe da Turíngia. José Enes simplesmente adaptou-a ao espírito que ele sempre se propôs desenvolver no próprio Seminário de Angra. Fica aqui a versão inglesa já que a alemã de nada nos serviria:
 
Joyfully we greet the noble hall,
where may art and peace alone linger ever,
and the joyous cry long ring out:
To the Prince of Thuringia, Count Hermann, hail!
Não foi, todavia, a letra que me comoveu, mas sim aquela sumptuosidade de expressão musical fulgurante, jubilosa, optimista, e que a orquestra enviava para as nuvens.
Não exagero. E nem digo isto com orgulho porque as minhas preferências musicais juvenis iam para peças do mesmo género, profundamente emotivas, quase sempre alegres: coros do “Fausto” de Gounod; Verdi, muito Verdi (a marcha triunfal da Aïda arrebatava-me); a 1812, de Tchaikovsky  (nem tudo era alegre mas empolgante era de certeza); o “Halleujah”, de Handel)… Mais tarde apercebi-me da ligação de Richard Wagner ao nacional-socialismo e ao anti-semitismo. No filme Annie Hall, Woody Allen faz o papel de judeu complexado, obcecado com o antijudaísmo e confessa a um amigo: Ele está sempre a fazer insinuações insultuosas por eu ser judeu. Está sempre a falar de Wagner!
Os meus gostos evoluíram (se calhar, apenas mudaram) e deixei-me de Wagner, mas a filosofia levou-me a Nietzsche e desde 1981 releio-o anualmente no University Course. Os alunos fazem sempre muitas perguntas e pedem sessões extra, que muitas vezes nos levam a Wagner e ao relacionamento entre os dois grandes amigos, que mais tarde acabou por se desfazer. De facto, Nietzsche encontrou-se com Wagner em Bayreuth e foi amor à primeira vista. Wagner era o supra-sumo do iluminismo e Nietzsche entrou em transe. Com o tempo, porém, o entusiasmo foi abrandando a ponto de Nietzsche lhe censurar o Parsifal porque Wagner se deixara influenciar por Schopenhauer (Nietzsche detestava-o), introduzindo na ópera resquícios de resignação cristã, a revelar um retrocesso à civilização burguesa abominada por Nietzsche. O caso foi bem mais complicado. Wagner, que era anti-semita, insurgiu-se contra o facto de Nietzsche ter um amigo judeu. Nietzsche não era anti-semita (até respeitava muito o Antigo Testamento) e reagiu. Foi a irmã Elizabeth quem, depois da sua morte, pegou em escritos do filósofo retirados do contexto e os publicou, dando assim origem à associação de Nietzsche com o nacional-socialismo. Esses textos viraram catecismo, vade-mécum dos nazis.
Tudo isto porque estou em Bayreuth, a cidade de Wagner. O compositor não nasceu aqui. Veio já bem tardiamente, atraído pela fama da Casa da Ópera da cidade. Achou, porém, o palco demasiado pequeno para as suas espaventosas produções. Todavia os líderes da cidade aceitaram construir, propositadamente para ele, num terreno na altura periférico da cidade, um pavilhão imenso onde Wagner, em 1876, iniciou o Bayreuth Festival com produções suas. As lotações esgotaram-se logo e continuam esgotadas até hoje. Reservas de bilhetes, só com dez anos de antecedência.
Fui com a Leonor visitar a Casa da Ópera, mas está em reconstrução até 2018. Apenas pudemos espreitar uns cantos e ver uma bela exposição sobre o edifício. Por sinal o arquitecto, o italiano Giuseppe Galli Bibiena, foi também responsável pela Ópera do Tejo, em Lisboa, destruída pelo terramoto de 1755 poucos meses depois de inaugurada. Ontem fizemos uma boa caminhada até ao Parque Richard Wagner, um magnífico jardim que culmina com o tal pavilhão onde se realiza o Bayreuth Festival. Por pouca sorte, também ele está em reconstrução; contudo deverá ficar pronto a tempo da próxima edição do festival.
Há estátuas de Wagner por toda a cidade e inúmeras ruas com nomes a ele associados, e que naturalmente passam despercebidas aos menos atentos. Quando deparei com a Cosimastrasse dei-me logo conta de se tratar da mulher  dele; no entanto, só em Bayreuth vim aprender que era filha de Franz Liszt, por sinal falecido aqui quando a visitava, daí estar enterrado cá, como Wagner, embora este tenha morrido em Itália.
No meio de tudo isto terei de temperar este meu entusiasmo por Bayreuth com algumas verdades amargas. A cidade, no centro de uma região muito conservadora, foi o grande foco da ideologia do nacional-socialismo. Hitler era grande fã de Wagner (dá-me arrepios ter esse gosto em comum com o bandido!) e não perdia o Bayreuth Festival.
Freud se calhar teria uma festa se eu lhe contasse tudo isto. Iria talvez desvendar nos meus mais íntimos recônditos um criptonazismo. Coitado de mim, como diria Fernão Mendes Pinto. Tudo coincidências, pois já tentei demonstrar em escritos sérios que o iluminismo não pode ser culpado nem pelo nacional-socialismo nem pelo marxismo, tal como o cristianismo não pode ser o responsável pela inquisição. Mas isso agora já é mesmo outra música. E eu esqueci-me de referir que na minha juventude o “Hino à Alegria” de Beethoven (antes de se banalizar como hino da UE), também entrava na lista de eleitos e igualmente não por causa da letra de Schiller, mas pela fúria arrebatadora daquela poderosa harmonia de sons de vozes humanas e orquestra.
E era para continuar por aqui abaixo mas esta nota já está barbaramente comprida.
            Vão aqui duas interpretações da “Grande Marcha”, do Tannhaüser. A primeira, só orquestra e coro. A segunda, é de uma representação da ópera:


 

Encenada:
 
 
Onésimo Teotónio de Almeida
 
 
 

6 comentários:

  1. «Wagner era o supra-sumo do iluminismo»?!

    Será que não quereria dizer «romantismo (musical)»?

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  2. "De facto, Nietzsche encontrou-se com Wagner em Bayreuth e foi amor à primeira vista. Wagner era o supra-sumo do iluminismo e Nietzsche entrou em transe." 

    O Octávio já fez referência que onde se lê iluminismo deveria ler-se romantismo(musical)

    Amor à primeira vista em Bayreuth, de Nietzsche com Wagner? Mas eles já eram amigos e Wagner era o ídolo maior de Nietzsche do que à música dizia respeito. No dia da inauguração da casa da música, Nietzsche ficou indignidade porque a maioria da assistência, apesar dos vestidos e chapéus imponentes, de arte musical nada percebiam.

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  3. Grato pelos dois comentários, pois permitem-me uma correcção e um esclarecimento. Primeiro a correcção: O primeiro encontro de Nietzsche com Wagner foi um deslumbramento. Os dois encontraram-se em Beyreuth. Estou em viagem e sem hipótese de verificar dados. Não me recordo da data do primeiro encontro entre ambos, mas o seu relacionamento é anterior. O encontro em Bayreuth marca o início do forte desentendimento.
    O esclarecimento: o fascínio de Nietzsche não se limitava ao romantismo musical de Wagner. Nietzsche vê nele um grande homem do iluminismo e daí o seu desapontamento posterior quando Wagner deixou de corresponder à sua visão. Nietzsche tinha em plano levar a cabo uma completa transvaloração da história inteclectual ocidental cristã e apercebeu-se que Wagner não o acompanharia tão longe. Nietzsche é um iluminista no sentido que Kant deu ao termo no seu famoso ensaio "O que é o iluminismo?" e pretende ir mais longe, muito mais longe que o próprio Kant, mas mesmo assim o que faz é levar ao extremo a sua visão iluminista, aquilo que hoje chamamos modernidade.

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  4. Na verdade não me envergonho nem um pouco de ter também começado com Wagner o meu gosto pela música clássica. Desinteressam-me os gostos e ideologia política do compositor, a música em mim não serve senhores, é ela apenas. E gosta-se ou não.

    Continuo a gostar de Wagner ainda que não na mesma proporção. Gosto de coros, acho-lhes uma força movente.

    Li alguma coisa sobre a relação Wagner- Nietzshe e parece-me que só podia ser o que foi.

    Gostei das notas. Não as encontro demasiado longas. Obrigada.

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    1. "Li alguma coisa sobre a relação Wagner- Nietzshe e parece-me que só podia ser o que foi."

      Pois! É o que acontece e continuará a acontecer com o comum dos mortais. Neste como em outros casos a importância deriva de estarmos perante dois homens que marcaram o seu tempo e ficaram para a eternidade. Eram tão amigos que Nietzsche beneficiava daquilo que só se partilha com verdadeira amizade: cama, mesa e roupa lavada em casa de Wagner, ah e os "mimos" de Cosima.

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  5. Ola,

    Obrigado pelo texto, bem saboroso. Permito-me acrescentar duas pequenas historietas, provavelmente desprovidas de interesse, a não ser talvez demonstrar que, mesmo com a musica, a vida pode, por vezes, ser um erro.

    1. Hitler idolatrava Wagner. Numa interessantisssima exposição sobre a musica e o 3° reich que houve ha uns anos atras, aprendi que a primeira vez que Hitler assistiu a uma opera de Wagner, tendo ficado completamente deslumbrado, o maestro era... Gustav Malher, que viria mais tarde a ser estigmatizado pelos nazis como o prototipo do musico judeu degenerado. "La musique adoucit les moeurs", dizem os Franceses. Mas é so por uns instantes...

    2. Como sabemos, o grande maestro Karajan teve uma carreira fulgurante durante o nazismo, tendo-se sériamente comprometido com o odioso regime, a tal ponto que foi proibido de dirigir na Alemanha durante os anos a seguir à guerra. Com a insolênca e (infelizmente) o talento que todos lhe reconhecem, Karajan decidiu um dia dirigir uma opera de Wagner inteiramente de cor, na presença do Fuhrer. As coisas sairam-lhe mal, perdeu-se, e foi obrigado a interromper a musica. Consta que o Hitler, furioso, tera então dito "Estando eu vivo, este Karajan não volta a dirigir". Uns anos mais tarde, a condição resolutiva que acompahava ordem tão implacavel realizou-se e, não so Karajan teve a carreira que sabemos, mas aconteceram muitas outras coisas com que so nos podemos felicitar.

    Boas

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