Em 1989, no caso Texas vs. Johnson, o Supremo Tribunal dos EUA pronunciou-se pela
inconstitucionalidade das leis federais e estaduais que proibiam a
«dessacralização» (flag desecration)
da bandeira americana. Em resposta, o Congresso aprovou uma emenda ao Flag Protection Act que criminalizava condutas como mutilar ou
rasgar a bandeira, queimá-la, espezinhá-la, deitá-la ao chão. No ano seguinte,
no caso United States v. Eichman, o
Supremo considerou inconstitucional essa legislação do Congresso. Grupos
conservadores, como a American Legion
ou a Citizens Flag Alliance, apelaram
ao Presidente George Bush e este, por sua vez, instou a que fosse aprovada uma
emenda à Constituição federal para impedir ultrajes à bandeira, uma
controvérsia que sempre marcou a vida pública norte-americana. Em meados do
século XX, o Supremo teve de lidar com uma lei que ordenava a saudação à bandeira
nas escolas públicas, um gesto que algumas Testemunhas de Jeová se recusavam a
fazer. No caso Gobitis, de 1940, o
Supremo acabaria por entender que essa recusa era legítima, à luz da protecção
constitucional da liberdade religiosa. Além dos flag salute cases, os tribunais dos EUA foram ainda confrontados,
sobretudo aquando dos protestos contra a guerra no Vietname, com os flag burning cases, em que se discutia
se era admissível queimar a bandeira em público.
Não se pense que estas controvérsias são
exclusivo de um país que faz do patriotismo uma «religião civil» e do culto à
bandeira o traço identitário de uma nação em busca de si própria. Na Alemanha,
em 1990, o Tribunal Constitucional teve de decidir o caso de um editor punido criminalmente
por ter publicado um livro antimilitarista que, na contracapa, continha uma
«colagem» de duas fotografias: numa, mostrava-se uma cerimónia castrense em que
se exibia a bandeira alemã; noutra, um homem a urinar na rua. Mais tarde, o
mesmo tribunal teria de pronunciar-se num caso em que uma publicação satirizava
o hino nacional.
Este livro de Nuno Severiano Teixeira
não aborda estas questões, nem era suposto fazê-lo. Trata-se de uma obra
centrada nos símbolos nacionais portugueses, com um propósito de divulgação.
Como síntese da história política da bandeira e do hino nacionais, o livro
cumpre exemplarmente a sua missão, fornecendo ao leitor uma apresentação esclarecida,
informada e sobretudo muito informativa sobre os nossos símbolos. Trata-se,
aliás, de um domínio que o autor já explorara, num ensaio publicado na obra A Memória da Nação, editada em 1991 sob
coordenação de Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (curiosamente, Nuno
Severiano Teixeira não assinala este seu texto na bibliografia final). Na linha
de trabalhos iniciados por João Medina, e posteriormente desenvolvidos noutras
direcções por José Manuel Sobral, Luís Reis Torgal, Fernando Catroga, Rui Ramos,
António Pedro Vicente ou Sérgio Campos Matos, este estudo recolhe ainda o
influxo da literatura estrangeira que mais detidamente se tem debruçado sobre a
«invenção da tradição» (Hobsbawn) ou sobre as «comunidades imaginadas»
(Anderson), sem descurar os contributos de Pierre Nora em torno dos «lugares da
memória» ou de Anthony Smith acerca da identidade nacional. Como é dada
prevalência à história política, outras dimensões são relegadas para segundo
plano, nomeadamente o aprofundamento da ligação dos símbolos à «memória
colectiva» (Halbwachs) ou à «memória social» (Fentress e Wickham), e, se
quisermos, ao modo «como as sociedades recordam», para usar o título de um
conhecido livro de Paul Connerton. De igual modo, os aspectos
jurídico-institucionais não têm lugar de relevo, ponto que talvez devesse ter
merecido mais atenção, nomeadamente se tivermos em conta que existe uma
regulamentação específica sobre a bandeira – o Decreto-Lei nº 150/87, de 30 de
Março – e que a Constituição portuguesa é, provavelmente, a única do mundo a
proceder a uma recepção fornal da simbologia nacional preexistente,
com referência expressa à sua origem. Mais ainda: não é frequente existir, nos
textos constitucionais do mundo, uma «explicação» do sentido dos símbolos
nacionais, tal como a que ocorre, desde 1989, no artigo 11º, nº 1, da
Constituição, onde se diz que a bandeira é «símbolo da soberania da República,
da independência, unidade e integridade de Portugal».
Do ponto de vista da história política,
o livro descreve de forma extremamente clara e rigorosa, sem arroubos
patrioteiros nem iconoclastias descabidas, o processo da consagração da
bandeira verde rubra nos alvores da República, nomeadamente a querela entre os
partidários desse cromatismo, como Teófilo Braga, e os defensores da manutenção
da bandeira azul e branca, como Guerra Junqueiro. Depois, assinalam-se diversos
episódios que têm marcado a relação dos portugueses com os seus símbolos, com
destaque para a exaltação verificada aquando do Euro 2004 e alguns «casos» mais
problemáticos, que deram lugar a processos judiciais: quando João Abel Manta
usou o escudo da bandeira como sátira ao nacional-cançonetismo, quando o actor
João Grosso reinterpretou A Portuguesa em
versão rock ou, mais recentemente, quando Élsio Menau, um estudante de artes
plásticas da Universidade do Algarve, apresentou uma instalação intitulada Portugal na Forca, o que lhe valeu 17
valores na sua nota de final de curso e a instauração de um processo-crime (que
culminaria na sua absolvição). De caminho, alude-se à proposta de Alçada
Baptista, feita em 1997, para que a letra do hino perdesse o seu carácter
belicista, a qual seria, de certo modo, secundada por João Medina (que propôs a
adopção da Ode à Alegria) e do
ex-ministro socialista Paulo Pedroso (que apelou a um aggiornamento do hino, por ocasião do centenário da República). Refere-se
ainda a decisão tomada por Santana Lopes em 2004, no último dia do seu mandato
como presidente da CML, de instalar uma colossal bandeira nacional, com 240
metros quadrados, no cimo do Parque Eduardo VII, ou o incidente com o hastear
da bandeira ao avesso, na cerimónia comemorativa do 5 de Outubro realizada em
2012 nos Paços do Concelho, o que obrigou a um pedido público de desculpas por
parte do então presidente da edilidade lisboeta, António Costa. Menciona-se
também o gesto simbólico do general Rocha Vieira, ao receber e levar ao peito a
bandeira aquando da transferência de soberania de Macau para a China, em 1999,
e as acções subversivas do grupo «31 da Armada», que hasteou a bandeira
monárquica nos Paços do Concelho, em Lisboa, em Agosto de 2009. Para além da
presença da bandeira nas Olimpíadas, transportada pelos atletas vencedores nos
seus momentos triunfais, refere-se o uso de um pin verde rubro na lapela do casaco dos membros do actual Governo.
A este propósito, o autor coloca uma hipótese pouco plausível: segundo ele, ao
não ter distribuído pins idênticos por
todos os cidadãos da República, poderá estar a ocorrer uma «apropriação pelo
Governo de um símbolo que é de todos os Portugueses».
Nesta resenha dos «casos» suscitados pelos símbolos nacionais no período democrático, seria interessante recordar a acusação feita a Mário Soares, no decurso da campanha presidencial de 1986, de que teria pisado a bandeira nacional aquando da visita de Marcelo Caetano a Londres em 1973, o que motivou de imediato a apresentação de uma queixa-crime de Soares contra a jovem estudante de Direito que o acusara de ultraje à bandeira. Doutro alcance, bem mais profundo (e, por isso, que teria justificado uma referência neste livro), foi a «guerra das bandeiras» que opôs as autoridades da República aos órgãos regionais, levando à aprovação, na revisão constitucional de 1989, da proposta do PCP para sublinhar, como atrás se disse, o sentido e o alcance dos símbolos nacionais.
Como o autor não adopta – nem era
suposto que o fizesse – uma perspectiva comparativa, focando-se em exclusivo nos
símbolos portugueses, o livro não aborda polémicas algo semelhantes, mas
bastante mais intensas, que têm ocorrido noutros lugares, em especial em
Estados regionalizados como Espanha. De igual modo, o contributo dos símbolos
para a encenação e projecção do poder e para os rituais e liturgias do
patriotismo não é especialmente assinalado, sobretudo num domínio caro ao
autor, o das Forças Armadas, em que existem detalhados regulamentos relativos
ao uso e honras devidas à bandeira e ao hino nacionais. Seria ainda importante
realçar, até porque a matéria já foi objecto de decisões judiciais, a
«apropriação» dos símbolos, ou de elementos deles constantes, pela publicidade
comercial, nomeadamente a recriação de emblemas como a esfera armilar por
algumas empresas cervejeiras, o que talvez suscite problemas face ao disposto
no Código da Publicidade, que proíbe expressamente a associação da simbologia
nacional à venda de bebidas alcoólicas. Seria interessante aludir também ao
curioso episódio das bandeiras made in
China que representavam, de forma errónea e adulterada, a iconografia
inscrita nas quinas dos castelos. E, num tempo de fluxos migratórios e
diversidade cultural, seria interessante analisar até que ponto a bandeira
portuguesa convive com símbolos nacionais de outras comunidades radicadas no
país, uma questão que, por exemplo, já mereceu intervenção da Corte costituzionale italiana. Mais pacífica
e harmoniosa tem sido o convívio com os símbolos da União Europeia,
possivelmente porque estes, aos olhos do cidadão comum, não se revestem de verdadeiro significado simbólico e, como
tal, não suscitam frémitos identitários nem paixões de espécie alguma, quer
nacionalistas, quer europeístas. Finalmente, seria interessante proceder à
ligação entre os símbolos nacionais e outros tópicos do imaginário republicano
e da sua iconografia, como os bustos da República (estudados por Antonio Pedro
Vicente), figuras como o Zé-Povinho (analisado por João Medina), a vivência do
tempo e os calendários do regime nascido em 1910, celebrações cívicas como a
Festa da Árvore, o culto dos mortos da Grande Guerra e, nos nossos dias, as
homenagens aos caídos nas guerras ultramarinas. Neste contexto, importaria
assinalar a penetração, que o Estado Novo consolidou, do cromatismo verde rubro
noutros elementos de aparato do poder, como a imagética das ordens honoríficas,
o pavilhão e o estandarte presidenciais ou, mais recentemente, a bandeira da
Assembleia da República.
Enquanto
obra de síntese sobre os símbolos nacionais, orientada para o grande público,
este livro tem uma qualidade invulgar. Pela sua profundidade e desenvolvimento,
distancia-se claramente de publicações dotadas do mesmo propósito, de que se
pode referir o interessante Como Nasceu a
Portuguesa, da autoria de Teixeira Leite, ou brochuras de divulgação, como:
Os Símbolos Nacionais (editada em
2004 pelo Museu da Presidência da República); Bandeiras de Portugal ou Os
Nossos Símbolos (das juntas de freguesia de São João de Brito e de Santa
Maria de Belém, de 2004 e 2006, respectivamente); ou Bandeiras Portuguesas… Bandeiras de Portugal (de 2000, promovida
pelo Museu República e Resistência da CML). Doravante, os leitores têm à sua
disposição uma súmula desenvolvida e muito informada – escrita, ademais, numa
linguagem clara, simples e directa – sobre os símbolos nacionais portugueses. Um
livro oportuno e feliz, que atinge plenamente os seus objectivos.
Resta saber, todavia, se os símbolos
nacionais atingem sempre os seus objectivos integradores. A Constituição do
Nepal vai ao ponto de especificar a flor, o animal e a ave nacionais, que são,
respectivamente, o Rhodondendron
Aroboreum, a vaca e o Lophophorus.
Em 2013, foi eleita uma assembleia constituinte para elaborar uma nova lei
fundamental. No início deste ano, registaram-se violentos e sangrentos confrontos
em torno da nova Constituição. Meses depois, em Abril, um terramoto arrasava
tudo, causando milhares de mortes. No momento em que são escritas estas linhas,
chegam notícias de que, por causa do sismo de Abril, os partidos nepaleses
alcançaram um entendimento sobre a futura Constituição do país. A acção da
Natureza é sempre mais forte do que a teimosia dos homens – e dos símbolos que
ornamentam o seu poder efémero.
António Araújo
P.S. - uma versão ligeiramente resumida deste texto saiu no jornal Público/Ípsilon, aqui.
Em rigor, as acções do 31 da Armada em 2009 não foram «subversivas»... porque a maior - infelizmente, já mais do que centenária - subversão é a «república portuguesa». O regime que existe desde 1910, imposto por uma minoria de iberistas, criminosos e terroristas (regicidas) que depois deram em ditadores, continua a ser ilegítimo porque nunca foi referendado - e, aliás, a actual «constituição da república portuguesa» é o maior garante dessa subversão ao manter a - nada democrática - obrigação de «forma republicana de governo».
ResponderEliminarPor isso, e pela minha parte, não me incomoda de todo que o actual governo esteja eventualmente a «apropriar-se» de um símbolo que... não é de todos os portugueses. Meu é que não é, de certeza. Era só o que faltava conspurcar a lapela com uma réplica do (nas sábias palavras de Fernando Pessoa) «ignóbil trapo».
Tem razão.Eu sei porque votei no referendo que instituiu a monarquia.Ou foram eleições?Já não me lembro.Foi há muito tempo.
ResponderEliminarHá cada imbecil...
Na verdade, há cada imbecil que, anonimamente, cobardemente (e talvez vendo-se ao espelho), decide, porque não tem factos e argumentos consistentes para rebater outros, lançar insultos que certamente não teria coragem para (m)os dizer cara a cara. Mas, enfim, que fazer? É a vida.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarObviamente que se o disser cara a cara pelos vistos os seus argumentos serão eventualmente a violencia .
ResponderEliminarNão creio que se possa ter uma discussão racional pelo menos enquanto eu a entendo com uma pessoa que sem ser a brincar escreve tais iimbecilidades.Retiro o imbecil e subistituo por imbecilidades.Qualquer um está sujeito a dize-las sem ser preciso que sejam fisiologicamente mentecaptos.
Espero que tenha ou menos de dezoito ou mais de oitenta anos.É mais compreensivel.
Ora bem, vejamos se ocorreu entretanto alguma alteração... Anonimato? Sim, mantém-se. Cobardia? Idem. Inexistência de qualquer contestação fundamentada ao (meu) comentário original? Confere. Prognóstico? Irrelevante.
ResponderEliminarIsto ate teria piada se eu não soubesse que os cruzados dos diversos credos são feitos com esta massa.E isso não teve não tem e nem nunca terá graça.Acabou o paleio.
ResponderEliminarÉ curioso... seria capaz de jurar que ouvi alguém, muito longe, a gritar o que me pareceram disparates. Mas, provavelmente, era apenas um cão a ladrar. Adiante.
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