impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 80 - SUN
RA
Nativo do planeta Saturno, é irrefutável
que Sun Ra apenas sobreviveu às insalubridades terráqueas graças a uma
parafernália de mantos recamados de lantejoulas e outros dourados de evidente
função terapêutica, assim como a uma esplêndida chapelaria de bonés, toucas e
turbantes, cujo complexo de antenas e berloques, uns de inspiração faraónica
outros mais quiméricos, não só rechaçavam os influxos nocivos como captavam as
benfazejas irradiações cósmicas.
Prova das inatas qualidades alienígenas
de Sun Ra é que tudo na sua vida e na sua carreira é impreciso, se não confuso
ou mesmo enigmático, embora nada tenha sido escondido da atenção mundana. O
nome, por exemplo. Há nota de que Sun Ra foi dado à luz do nosso planeta por
alturas de Birmingham, no Alabama – cidade sumamente desagradável para se
passar por negro – onde, por timidez ou mero conformismo, lhe atribuíram o
prosaico nome de Herman Poole Blount. O seu corpo humano cresceu a tempo de no
final da década de 40 integrar a Segunda Grande Imigração Afro-Americana para
Norte, tendo em Chicago reposto alguma verdade ao registar-se oficialmente como
o nome Le Sony’r Ra, circa 1952. Mais
tarde, os seus companheiros musicais afirmam que preferia ser chamado de “Lúcifer”,
embora atendesse ao redundante vocativo de “Sun Ra”, sendo este “Ra” a
designação do deus egípcio do Astro-Rei.
Quantos discos terá publicado Sun Ra é outra
charada insolúvel e os seus mais dedicados coleccionadores vivem na perpétua
angústia de um dia lhes aparecer alguém com uma peça que desconheciam. A
contagem menos inconsistente sugere uns 150 títulos.
Uma provável justificação para esta
incerteza é que não se reconhece Sun Ra sem a sua Arkestra (um jogo lexical: as
duas primeiras letras são palíndromo de “Ra” e as três iniciais formam a
palavra “ark” [“arca”] de conotações bíblicas, ao que se agrega o suficiente
para conotar “orquestra”) a qual integrava um sentido existencial e uma
vivência quase comunitária. Na prática isto fez com que a interpretação e o
registo formassem uma unidade indissociável na sua essência musical e no seu
acontecimento social. À ideia prevalecente de “happening” há que juntar uma
acrisolada independência editorial, marginal às grandes casas – imune,
portanto, à corrupção comercialista do homo
sapiens – com prensagem casuística e divulgação dos trabalhos artísticos
quer contingente quer circunscrita.
É
ainda possível adensar um pouco mais o carácter intrigante da obra de Sun Ra,
pois só pode ser explicável pela sua natureza extraterrestre o facto de ela ter
mudado bastante ao longo do tempo sem que nunca se haja afastado um milímetro
das suas bases programáticas. Nem sequer se poderá afirmar que a música de Sun
Ra progrediu ou evoluiu, mas tão-somente que se metamorfoseou à imagem das
estações do ano no decurso do périplo da Terra (e já agora de Saturno) em torno
do Sol.
Daqui resulta que recomendar um disco emblemático
ou sintetizador da trajectória de Sun Ra é um bico-de-obra. Simplificando,
digamos que o seu curso tem forma parabólica de uma curva de Gauss, passível de
fatiar em três fases.
The
Futuristic Sounds of Sun Ra
1961 (2006)
Savoy (Lone Hill Jazz – 10234)
Sun Ra (piano), Marshall Allen (saxophone alto,
flauta), John Gilmore (saxophone tenor, clarinet baixo), Bernard McKinney
(trombone, euphonium), Pat Patrick (saxophone baixo), Ronnie Boykins
(contrabaixo), Willie Jones (bateria), Leah Ananda (congas), Ricky Murray (voz).
A primeira decorreu em Chicago, talvez
antes, mas de certeza a partir de 1956 (data da sua conhecida primeira
gravação) até 1961. Foi depois de partir da cidade que melhor se entendeu o que
Sun Ra lá deixou: as sementes do género de improvisação que viria a inscrever a
variante de jazz local a partir da década de 60 até hoje. O disco “The
Futuristic Sounds of Sun Ra” será onde fica mais patente esta profecia; nele
confluem dois fluxos que às mãos doutrem se encrespariam. À uma, a Arkestra
pronuncia-se na linguagem classicista dos arranjos de Fletcher Henderson (para
quem Sun Ra trabalhou em jovem), de Duke Ellington ou, mesmo de Thad Dameron, à
outra este tecido é dilacerado pela irrupção de elementos de dissonância e
fragmentação tonal. Isto em 1961 já não era novidade, mas ainda estava fresco.
“The Futuristic Sounds of Sun Ra” foi o seu único trabalho para a renomada Savoy
e constitui uma das raras oportunidades de o ouvir em piano acústico. Mas como
em Sun Ra os paradoxos são um desígnio, fique-se sabendo que apesar de o disco
ser uma perfeita amostra da época de Chicago, a sua gravação teve lugar já em
Nova Iorque.
A fixação de Sun Ra em Nova Iorque, se
nos louvarmos na sua autobiografia, teve a habitual intervenção de potestades zodiacais.
Era para ir e vir num fim-de-semana, mas a camioneta em que a Arkestra viajava
avariou e como não havia dinheiro para regressar, ficaram por lá. Uma vez
instalado depressa o colectivo protagonizou as manifestações mais radicais do
free jazz. Por esta altura Sun Ra autodenominava-se como “cientista tonal” em
vez de “músico” e as suas plateias, segmentadas entre devotos, fãs e
assustados, sideravam perante aquele rocambolesco guisado de astrologia, cosmogonia,
egiptologia, afro-nacionalismo e ficção científica. Causavam total perplexidade
os espectáculos, ou performances, da Arkestra, que amalgamavam este pueril e
circense produto ideológico da cultura popular americana com a desconstrução
musical da avant guarde, de seu
natural arreganhada e sisuda – coisa muito do além.
O tema “Atlantis”, do álbum homónimo de
1969 condensará este período de Sun Ra numa cápsula. São 22 minutos que começam
com pausadíssimas pulsações (morse? Sonar? A “harmonia das esferas”?) e, remotamente
recordando o “Bolero” de Ravel, numa épica ascensão sónica vão-se acumulando
acordes electrónicos, pungentes e obsessivos, rasgos melódicos, até a um fragor
propriamente saturnino – nem o mais positivista dos ouvintes deixará de se questionar:
donde virá esta música que não é de cá?
Por razões meramente imobiliárias Sun Ra
translada-se para Filadélfia onde as rendas eram mais baratas. A constante
rotação dos elementos da Arkestra esbateram-lhe algum fulgor e os resultados
nem sempre ficaram à altura dos arranjos. Obedecendo ao arbítrio do Eterno
Retorno Sun Ra esclarece quem duvidava que o chão da sua música eram os blues e
o jazz e não o experimentalismo derivado dos encontros de verão em Darmstadt,
com a obra “Some Blues But Not The Kind That’s Blue” de 1977. Nela convivem
composições standard e interpretações estaladiças como se não houvesse outro
modo de vida.
Seria contraditório dizer que Sun Ra
morreu em 1993. Em abono da verdade há que sustentar ter o seu corpo fundido
com a terra desprendendo o espírito. As provas disto são tangíveis: não só o
fidelíssimo apóstolo Marshall Allen prosseguiu com a Arkestra pelo século XXI
adentro, como a metafísica, se assim se pode chamar, de Sun Ra deu origem ao
profícuo movimento do Afrofuturismo. Se os mortos não falam e Sun Ra continua a
comunicar, então não está morto – lógico, não?
José Navarro de Andrade
O artigo de hoje até tem aquele cheirinho especial alucinante.
ResponderEliminarNão tenho os 150 mas tenho os suficientes para fazer uma escolha e acrescentar uma surpresa.
Brevemente.