quinta-feira, 2 de julho de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 
# 80 - SUN RA
 

 
Nativo do planeta Saturno, é irrefutável que Sun Ra apenas sobreviveu às insalubridades terráqueas graças a uma parafernália de mantos recamados de lantejoulas e outros dourados de evidente função terapêutica, assim como a uma esplêndida chapelaria de bonés, toucas e turbantes, cujo complexo de antenas e berloques, uns de inspiração faraónica outros mais quiméricos, não só rechaçavam os influxos nocivos como captavam as benfazejas irradiações cósmicas.
Prova das inatas qualidades alienígenas de Sun Ra é que tudo na sua vida e na sua carreira é impreciso, se não confuso ou mesmo enigmático, embora nada tenha sido escondido da atenção mundana. O nome, por exemplo. Há nota de que Sun Ra foi dado à luz do nosso planeta por alturas de Birmingham, no Alabama – cidade sumamente desagradável para se passar por negro – onde, por timidez ou mero conformismo, lhe atribuíram o prosaico nome de Herman Poole Blount. O seu corpo humano cresceu a tempo de no final da década de 40 integrar a Segunda Grande Imigração Afro-Americana para Norte, tendo em Chicago reposto alguma verdade ao registar-se oficialmente como o nome Le Sony’r Ra, circa 1952. Mais tarde, os seus companheiros musicais afirmam que preferia ser chamado de “Lúcifer”, embora atendesse ao redundante vocativo de “Sun Ra”, sendo este “Ra” a designação do deus egípcio do Astro-Rei. 
Quantos discos terá publicado Sun Ra é outra charada insolúvel e os seus mais dedicados coleccionadores vivem na perpétua angústia de um dia lhes aparecer alguém com uma peça que desconheciam. A contagem menos inconsistente sugere uns 150 títulos.
Uma provável justificação para esta incerteza é que não se reconhece Sun Ra sem a sua Arkestra (um jogo lexical: as duas primeiras letras são palíndromo de “Ra” e as três iniciais formam a palavra “ark” [“arca”] de conotações bíblicas, ao que se agrega o suficiente para conotar “orquestra”) a qual integrava um sentido existencial e uma vivência quase comunitária. Na prática isto fez com que a interpretação e o registo formassem uma unidade indissociável na sua essência musical e no seu acontecimento social. À ideia prevalecente de “happening” há que juntar uma acrisolada independência editorial, marginal às grandes casas – imune, portanto, à corrupção comercialista do homo sapiens – com prensagem casuística e divulgação dos trabalhos artísticos quer contingente quer circunscrita.
         É ainda possível adensar um pouco mais o carácter intrigante da obra de Sun Ra, pois só pode ser explicável pela sua natureza extraterrestre o facto de ela ter mudado bastante ao longo do tempo sem que nunca se haja afastado um milímetro das suas bases programáticas. Nem sequer se poderá afirmar que a música de Sun Ra progrediu ou evoluiu, mas tão-somente que se metamorfoseou à imagem das estações do ano no decurso do périplo da Terra (e já agora de Saturno) em torno do Sol.
Daqui resulta que recomendar um disco emblemático ou sintetizador da trajectória de Sun Ra é um bico-de-obra. Simplificando, digamos que o seu curso tem forma parabólica de uma curva de Gauss, passível de fatiar em três fases.
 

The Futuristic Sounds of Sun Ra
1961 (2006)
Savoy (Lone Hill Jazz – 10234)
Sun Ra (piano), Marshall Allen (saxophone alto, flauta), John Gilmore (saxophone tenor, clarinet baixo), Bernard McKinney (trombone, euphonium), Pat Patrick (saxophone baixo), Ronnie Boykins (contrabaixo), Willie Jones (bateria), Leah Ananda (congas), Ricky Murray (voz).
 
A primeira decorreu em Chicago, talvez antes, mas de certeza a partir de 1956 (data da sua conhecida primeira gravação) até 1961. Foi depois de partir da cidade que melhor se entendeu o que Sun Ra lá deixou: as sementes do género de improvisação que viria a inscrever a variante de jazz local a partir da década de 60 até hoje. O disco “The Futuristic Sounds of Sun Ra” será onde fica mais patente esta profecia; nele confluem dois fluxos que às mãos doutrem se encrespariam. À uma, a Arkestra pronuncia-se na linguagem classicista dos arranjos de Fletcher Henderson (para quem Sun Ra trabalhou em jovem), de Duke Ellington ou, mesmo de Thad Dameron, à outra este tecido é dilacerado pela irrupção de elementos de dissonância e fragmentação tonal. Isto em 1961 já não era novidade, mas ainda estava fresco. “The Futuristic Sounds of Sun Ra” foi o seu único trabalho para a renomada Savoy e constitui uma das raras oportunidades de o ouvir em piano acústico. Mas como em Sun Ra os paradoxos são um desígnio, fique-se sabendo que apesar de o disco ser uma perfeita amostra da época de Chicago, a sua gravação teve lugar já em Nova Iorque.
A fixação de Sun Ra em Nova Iorque, se nos louvarmos na sua autobiografia, teve a habitual intervenção de potestades zodiacais. Era para ir e vir num fim-de-semana, mas a camioneta em que a Arkestra viajava avariou e como não havia dinheiro para regressar, ficaram por lá. Uma vez instalado depressa o colectivo protagonizou as manifestações mais radicais do free jazz. Por esta altura Sun Ra autodenominava-se como “cientista tonal” em vez de “músico” e as suas plateias, segmentadas entre devotos, fãs e assustados, sideravam perante aquele rocambolesco guisado de astrologia, cosmogonia, egiptologia, afro-nacionalismo e ficção científica. Causavam total perplexidade os espectáculos, ou performances, da Arkestra, que amalgamavam este pueril e circense produto ideológico da cultura popular americana com a desconstrução musical da avant guarde, de seu natural arreganhada e sisuda – coisa muito do além.
O tema “Atlantis”, do álbum homónimo de 1969 condensará este período de Sun Ra numa cápsula. São 22 minutos que começam com pausadíssimas pulsações (morse? Sonar? A “harmonia das esferas”?) e, remotamente recordando o “Bolero” de Ravel, numa épica ascensão sónica vão-se acumulando acordes electrónicos, pungentes e obsessivos, rasgos melódicos, até a um fragor propriamente saturnino – nem o mais positivista dos ouvintes deixará de se questionar: donde virá esta música que não é de cá?
Por razões meramente imobiliárias Sun Ra translada-se para Filadélfia onde as rendas eram mais baratas. A constante rotação dos elementos da Arkestra esbateram-lhe algum fulgor e os resultados nem sempre ficaram à altura dos arranjos. Obedecendo ao arbítrio do Eterno Retorno Sun Ra esclarece quem duvidava que o chão da sua música eram os blues e o jazz e não o experimentalismo derivado dos encontros de verão em Darmstadt, com a obra “Some Blues But Not The Kind That’s Blue” de 1977. Nela convivem composições standard e interpretações estaladiças como se não houvesse outro modo de vida.
Seria contraditório dizer que Sun Ra morreu em 1993. Em abono da verdade há que sustentar ter o seu corpo fundido com a terra desprendendo o espírito. As provas disto são tangíveis: não só o fidelíssimo apóstolo Marshall Allen prosseguiu com a Arkestra pelo século XXI adentro, como a metafísica, se assim se pode chamar, de Sun Ra deu origem ao profícuo movimento do Afrofuturismo. Se os mortos não falam e Sun Ra continua a comunicar, então não está morto – lógico, não?
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

1 comentário:

  1. O artigo de hoje até tem aquele cheirinho especial alucinante.
    Não tenho os 150 mas tenho os suficientes para fazer uma escolha e acrescentar uma surpresa.
    Brevemente.

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