Tive
a oportunidade de ver o filme O Estado
contra Fritz Bauer de Lars Kraume que
irá estrear esta semana em Portugal (sob a duvidosa titulação comercial de Fritz
Bauer- Agenda Secreta).
Na
linha de Hannah Arendt de Margarethe
von Trotta (2013), de Labirinto do
silêncio de Giulio Ricciarelli (2014) ou de Phoenix de Christian Petzold (2015- com a extraordinária Nina Hoss)
trata-se de um excelente e premiado trabalho sobre os problemas judiciais da desnazificação e sobre o papel central
de Fritz Bauer (1903-1968).
Será,
assim, uma boa ocasião para dar alguma apressada/ sintética informação e prestar
tributo a esta figura singular da justiça alemã.
De
ascendência judaica, Bauer foi o juiz mais novo nomeado pela República de
Weimar e um opositor, desde o início, da ascensão Nacional-Socialista. Foi preso
pelas suas ideias pela Gestapo, em 1933, no campo de concentração de Heuberg durante
oito meses. Compulsivamente afastado do trabalho como jurista, depois de
libertado, emigrou, em 1935, para a Dinamarca e depois para a Suécia, em 1943. Aqui
fundou, com Willy Brandt, o periódico Sozialistische
Tribüne (Socialist Tribune).
Voltou
para a República Federal da Alemanha, em 1949, entrando para o serviço público
de justiça. Desempenhou os cargos de promotor distrital em Braunschweig, Hessen
e Frankfurt.
Atingiu
grande notoriedade em 1952 através do julgamento de Otto Remer (oficial que teve
um papel fundamental, em 1944 ao impedir o Klaus von Stauffenberg, de
concretizar o atentado à bomba para matar Hitler e que foi executado em 21 de Julho
de 1944 por traição à pátria e quebra do juramento de oficial).
Bauer
denunciou Remer (defensor de um partido extremista neo-nazi Socialist
Reich Party, proibido em 1952) e tentou
salvar a memória de Stauffenberg procurando demonstrar que o gesto de
tiranicídio era patriótico, argumentando que o regime nazi era um estado de não-direito e que, neste
contexto, trair o seu juramento de obediência era servir a causa da justiça.
Bauer
esteve sempre muito isolado dentro do seu corpo profissional e, mais
amplamente, na sociedade alemã. Aliás, logo no início do filme, um influente
funcionário do Departamento de Informações comenta: "A questão é: por quanto tempo vamos poder dar-nos ao luxo de ter um
procurador-geral desses” e pouco depois, vem a célebre frase de Bauer:
" A minha própria corporação é território
inimigo" (por exemplo, em 1949, na Baviera 752 dos 924 juízes e
procuradores eram antigos nazis, ou seja, uma percentagem de 81 por cento).
A
presença de antigos nazis é retratada dentro do governo, na pessoa do
controverso Hans Globke (1898-1973), o braço direito de Adenauer na Chancelaria
em Bona e o apoio a Bauer centrado em George-August Zinn, o chefe de governo do
Land de Hessen de 1950 a 1969 (a sua cumplicidade vem desde o seu compromisso
social-democrata sob a República de Weimar e responde a Bauer que lhe assinala
um quadro de Rosa Luxemburgo no seu gabinete que “não faz mal porque ninguém sabe quem é”…).
Com
argumento escrito em parceria por Lars Kraume e pelo escritor e jornalista
francês Olivier Guez, com uma notável interpretação de Burghart Klaussner no
papel de Bauer, este filma trata basicamente da sua relação com o caso Eichmann.
Bauer
recebeu uma carta de Lothar Hermann, um sobrevivente cego de Dachau que emigrou
para a Argentina com a sua família e que afirma que a sua filha Sylvia se
apaixonou por Klaus, o filho mais velho de Eichmann. No entanto, Bauer, não
confia na capacidade do sistema judicial alemão em obter a extradição de
Eichmann (aliás, em 1959, o pedido de extradição de Mengele à Argentina,
através da embaixada alemã nesse país, caiu no ridículo com o desaparecimento e
fuga imediata daquele para o Paraguai…).
Assim,
decide não fornecer essa informação e transmite-a secretamente à Mossad (ainda
numa fase de desenvolvimento incipiente), numa opção polémica. Após muita
desconfiança inicial e insistência premente de Bauer, os serviços secretos
israelitas acabam por montar a conhecida operação de resgate e transporte de
Eichmann para Israel (sob o efeito de drogas e disfarçado de comissário de
bordo da El Al).
Elucidativamente,
a Alemanha nunca solicitou a Israel a extradição de Eichmann, contrariando
pedido expresso de Bauer, com o argumento formal da inexistência de tratado de
extradição entre os dois países.
O
filme também aborda com muita elegância a questão da homossexualidade, em
geral, e de Bauer, em particular, a penalização e os constrangimentos daí
decorrentes e as consequências disciplinares que a visibilidade ou publicitação
dessa opção “desviante” tinha no serviço público.
Fritz
Bauer é conhecido principalmente como o grande impulsionador do julgamento de
Auschwitz. Embora não sendo objecto do filme, importa realçar o papel percursor
que Bauer teve na defesa da doutrina jurídica de Roxin no campo dos tribunais
alemães. Na verdade, o célebre penalista defendeu a pertinência jurídica da
condenação de Eichmann como autor: para ele era linear a afirmação segundo a
qual num quadro burocrático, a
responsabilidade cresce à medida que nos afastamos do lugar do crime. Bauer
perderia esta luta: as tentativas de importar a argumentação israelita,
reforçada por Roxin, foram infrutíferas. Prevaleceram penas muito ligeiras,
estruturadas na figura da cumplicidade, através de um enrodilhamento
jurídico-ideológico esclarecedor do incómodo que os tribunais tinham num
enfrentamento e sancionamento claro do passado nazi (Bauer considerou que as
sentenças “estavam perto de fazer troça
do sofrimento das vitimas”).
Asfixiado
pela política de reconciliação de Adenauer e pelo medo de “agitar de novo todos os horrores”, Bauer é um defensor da
necessidade de confronto com o passado e uma grande figura moral da justiça que
importa divulgar.
Nas
palavras do realizador Lars Kraume, o seu filme “retrata a história de um combate arcaico de um marginal contra um
sistema omnipotente e é uma fonte de inspiração a todos os opositores da
injustiça na sociedade moderna”.
Todo
o percurso de Bauer justificou a sua frase “na
justiça vivo como no exílio” (a sua antinomia como representante do Estado
e adversário dos seus valores perde-se completamente no título do filme da
tradução portuguesa).
Fazendo
parte de uma linha de excelentes filmes alemães recentes que mantem viva a
memória e a transmissão da história O
Estado contra Fritz Bauer é de saudar vivamente e, certamente, uma película
a não perder.
Luís
Eloy Azevedo
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