impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 93 - DANILO
PEREZ
Sempre
para Norte caminhara o jazz até que Dizzy Gillespie, em 1954, desceu abaixo do
paralelo 29, a latitude de Nova Orleães, indo ter – era sina e tradição – aonde
estava a má vida. Tão bem se deu o jazz no serralho das músicas de Cuba, qual
delas mais cálida, coleante e cativante, que nunca mais deixou de visitar essa
casa como se fosse sua. Esta paixão, claramente de má nota, fez com que desde
1959 as autoridades cubanas tivessem uma relação muito esquerda com a
resiliente presença do jazz na ilha; à uma ele era a reminiscência da ocupação dos
yankees, e logo daqueles que até à revolução mais fizeram por corromper Cuba
com casinos, music halls e prostíbulos; mas à outra, o jazz não era bem música
de gringo. Em suma, um noivado turbulento que ainda hoje prossegue com recaídas
passionais e birras ciumentas.
Devem-se
estas em boa parte às peripécias de infidelidades que o jazz foi cometendo, ao
amancebar-se com outros géneros nados e criados por todo esse viveiro musical
que é o Mar das Caraíbas, onde procriou mais Titãs do que Gaia. Assim, além da
ínclita e prolífica estirpe de intérpretes cubanos, da República Dominicana
afirmou-se o pianista Michel Camilo, do México Arturo O’Farrill e de Porto Rico
David Sanchez e Miguel Zenón, os únicos que, por mero atraso geracional, não
foram incubados e nutridos por Gillespie. Do alagado Panamá proveio Danilo
Perez que na dobra do século ascendeu a um lugar cimeiro e incontestado no jazz
latino.
A
epifania da globalização seduziu o jazz muito antes de o conceito existir do
modo que hoje se discute. Ela terá advindo em consequência directa do seu
intestino e ininterrupto desacordo entre uma negritude original e a mestiçagem cosmopolita
em que se divulgou. Esta querela não apenas atravessa a música de Danilo Perez,
como será mesmo o seu combustível. Sendo, por um lado, insanável a sua dívida
com Dizzy Gillepsie, com quem aprendeu a receita dos melhores cocktails à base
de bourbon harmónico ou de rum melódico, também, por outro, a fraternização de
Perez com Wynton Marsalis, o legendário puritano do início de 80, creditou-lhe
tantos dilemas como soluções.
Motherland
(2000)
Verve
/ PolyGram / Universal - 5439042
Danilo
Perez (piano), Regina Carter (violin), Chris Potter (saxofones), Diego Urcola
(trompete), Kurt Rosenwinkel (guitarra eléctrica), John Patitucci, Carlos
Henriquez (contrabaixo), Brian Blade, Antonio Sanchez (bateria), Richard Bona,
Luciana Souza, Claudia Acuna (voz), Greg Askew (bata itotele), Aquiles Baez
(cuatro, guitarra acústica), Louis Bauzo (bata iya), Richard Byrd (bata
konkolo), Luisito Quintero (congas), Ricaurte Villarreal (tambor repicador).
Uma visão retrospectiva, como se
preconiza às que não iludem o prisma temporal por onde espreitam, seria capaz
de equacionar a discografia de Danilo Perez anterior a “Motherland” enquanto um
ensaio, já de voz singular mas ainda com programa inseguro, em preparação desta
obra.
O plano de “Motherland” é de grande
fôlego e não convenceu toda a gente, havendo quem, sem maus propósitos, o
indexasse como world music; era ele o de compor uma suite que integrasse as
várias latitudes musicais da longitude latino-americana. A sua estrutura
harmónica louva-se na matriz tradicional do jazz, a goma que une os diversos
idiomas latinos à conversa entre si, sem necessidade de tradução simultânea.
Aos intérpretes, portanto, rogava-se que saíssem da sua zona de conforto e
terem mais ouvidos do que barriga, ou, assim o afirmou Danilo Perez: “não quero
escrever um diccionário – isso inibe a personalidade, (…) quero colocar-me na
corda bamba.”
Não foi inteiramente exorcizado em
“Motherland” o fantasma do ecletismo e com essa água nem sempre se deitaram
fora os bebés do pedantismo e da pomposidade. Porém, o tino e o risco desta
aventura, e, sobretudo, a categoria dos intérpretes que nela participam,
colocam o disco numa posição invejavelmente modelar do jazz que se apontava à
entrada do novo século.
José
Navarro de Andrade
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