sábado, 25 de junho de 2016





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 68 - ART ENSEMBLE OF CHICAGO

 
 
Fotografia de Steven Cerra
 

Mais dado ao drama ou à tragédia o jazz nunca teve grande convívio com o humor. Mesmo quando dele se aproxima, algo de alarmante se desprende: o fácies arrepanhadamente risonho de Louis Armstrong com o seu quê de postiço, por parecer apenas servir a máxima “the show must go on”; o burlesco de Cab Calloway que deixa na dúvida se há nele o propósito de ter graça; o surrealismo de Dizzy Gillespie que mal esconde o sarcasmo; o Mumbles de Clark Terry que não passava de um breve e honesto número de comédia; o delírio de Sun Ra com apogeu em “Nuclear War”: 12 minutos a repetir, à maneira de um blues, inúmeras variações da frase: “If they push that button, your ass gotta go; it’s a muthafucker!” – e não haverá muitos mais exemplos além destes.
Daí que os desconcertos do Art Ensemble do Chicago, embora provoquem irrisão e se dêem bem com ela, não será isso exactamente o que pretendem. Mas para saber como chegou esta corrente à foz há que remontá-la até à bifurcação que a engrossou.
Depois da saída de Armstrong para Nova Iorque e da primazia do swing, o jazz em Chicago foi um fio mantido primeiro por Earl Hines e depois por Amad Jamal. A seguir a este dir-se-ia que tudo o vento levou da wind city. Nisto se chegou à década de 60 quando o pianista Muhal Richard Abrams formou uma banda de música experimental (1962) que foi ganhando tracção num meio sedento de integridade e autonomia. Em Nova Iorque tinha-se tornado impossível à vanguarda – uma espécie de apostasia contra quaisquer regras canónicas do jazz – respirar fora da atmosfera rarefeita de Ornette Coleman e de Cecil Taylor, ou esgazeada de Coltrane. Em contrapartida, o laboratório de Abrams louvava Chicago como um polo alterativo, tanto mais arejado quanto menos ortodoxo, onde encontraram asilo os inconformistas de várias inclinações. De modo que a partir de 1965 o colectivo inicial alargou-se e organizou-se na Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM). O futuro próximo iria demonstrar que a AACM foi o Almanaque de Gotha do free jazz congregando os profetas que mais notavelmente praticariam a arte e a disseminariam. Nesta parte da divulgação, porém, verificou-se que o impacte e a influência da AACM teve quase nenhuma repercussão fora do jazz – ele encasulava-se, o que se tornaria um facto histórico.
 

Certain Blacks
1970 (2005)
Verve - 0678482
Lester Bowie (trompete), Edward Mitchell Jr.(a.k.a. Roscoe Mitchel) (saxophone baixo), Malachi Favors Maghostut (contrabaixo, percussão), Chicago Beau (saxofone tenor, piano, harmónica, percussão), Joseph Jarman (saxofone alto, tenor, soprano, vibrafone, percussão), Julio Finn (harmónica), William A. Howell (bateria).
 
Em face da desgostosa falta de eco, como resposta a uma actividade pouco menos do que frenética, uma fracção dos músicos da AACM veio ter à Europa onde poderiam desconstruir mais à vontade e com maior apreço das plateias. Na verdade “Europa” queria dizer “França”, que no ano de 1969 ressacava das agitações do Maio transacto, migrando para as artes e as humanidades o que intentara politicamente nas ruas. Perfeitamente integrado no ar dos tempos e no espírito do lugar, o comité formado por Roscoe Mitchell, Lester Bowie e Malachi Favors Maghostut popularizou-se nos círculos intelectuais, ao produzir a música que queria ouvir a juventude vanguardista e ao soltar alguns aforismos adequados à moda vigente: “You know, some day soon there won’t be any music.” E quando outra mão-cheia de “exilados” se juntou ao triunvirato ficou-lhes bem designarem-se como Art Ensemble of Chicago.
Sete discos em 1969 e outros tantos em 1970 esclarecem o fervor criativo em que viveu o Art Ensemble of Chicago. Num ambiente assanhado, que oscilava entre a frustração e a euforia política, muito marcado por polémicas acrimoniosas, pelo radicalismo tempestuoso e por um ethos de revolta permanente, estes músicos de Chicago intervieram de uma forma, provavelmente, só ao alcance de americanos em Paris. Uma descontracção anarquizante sem fumos de ortodoxia, um humor corrosivo e sarcástico sem espécie de autocomplacência e, acima de tudo, uma densidade musical destituída de qualquer sintoma de presunção ou afectação cultural (isto é: académica) fizeram do Art Ensemble of Chicago um fenómeno que a Europa seria incapaz de conceber mas que provavelmente, só a Europa conseguia acolher.
Da torrente de registos que o Art Ensemble debitou, “Certain Blacks” seria mais um deles, sem aspiração a cravar-se como um marco e só será exemplar na medida em que nele se cumulam todos os traços musicais do grupo. O suficiente para ficar como memória activa de um período.

 
 
José Navarro de Andrade

 
 
 
 

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