impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 68 - ART
ENSEMBLE OF CHICAGO
Fotografia de Steven Cerra
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Mais dado ao drama ou
à tragédia o jazz nunca teve grande convívio com o humor. Mesmo quando dele se
aproxima, algo de alarmante se desprende: o fácies arrepanhadamente risonho de
Louis Armstrong com o seu quê de postiço, por parecer apenas servir a máxima
“the show must go on”; o burlesco de Cab Calloway que deixa na dúvida se há
nele o propósito de ter graça; o surrealismo de Dizzy Gillespie que mal esconde
o sarcasmo; o Mumbles de Clark Terry que não passava de um breve e honesto
número de comédia; o delírio de Sun Ra com apogeu em “Nuclear War”: 12 minutos
a repetir, à maneira de um blues, inúmeras variações da frase: “If they push
that button, your ass gotta go; it’s a muthafucker!” – e não haverá muitos mais
exemplos além destes.
Daí que os
desconcertos do Art Ensemble do Chicago, embora provoquem irrisão e se dêem bem
com ela, não será isso exactamente o que pretendem. Mas para saber como chegou
esta corrente à foz há que remontá-la até à bifurcação que a engrossou.
Depois da saída de
Armstrong para Nova Iorque e da primazia do swing, o jazz em Chicago foi um fio
mantido primeiro por Earl Hines e depois por Amad Jamal. A seguir a este
dir-se-ia que tudo o vento levou da wind city. Nisto se chegou à década de 60
quando o pianista Muhal Richard Abrams formou uma banda de música experimental
(1962) que foi ganhando tracção num meio sedento de integridade e autonomia. Em
Nova Iorque tinha-se tornado impossível à vanguarda – uma espécie de apostasia
contra quaisquer regras canónicas do jazz – respirar fora da atmosfera
rarefeita de Ornette Coleman e de Cecil Taylor, ou esgazeada de Coltrane. Em
contrapartida, o laboratório de Abrams louvava Chicago como um polo alterativo,
tanto mais arejado quanto menos ortodoxo, onde encontraram asilo os
inconformistas de várias inclinações. De modo que a partir de 1965 o colectivo
inicial alargou-se e organizou-se na Association for the Advancement of
Creative Musicians (AACM). O futuro próximo iria demonstrar que a AACM foi o
Almanaque de Gotha do free jazz congregando os profetas que mais notavelmente
praticariam a arte e a disseminariam. Nesta parte da divulgação, porém,
verificou-se que o impacte e a influência da AACM teve quase nenhuma
repercussão fora do jazz – ele encasulava-se, o que se tornaria um facto
histórico.
Certain Blacks
1970 (2005)
Verve - 0678482
Lester Bowie (trompete), Edward Mitchell
Jr.(a.k.a. Roscoe Mitchel) (saxophone baixo), Malachi Favors Maghostut
(contrabaixo, percussão), Chicago Beau (saxofone tenor, piano, harmónica, percussão),
Joseph Jarman (saxofone alto, tenor, soprano, vibrafone, percussão), Julio Finn
(harmónica), William A. Howell (bateria).
Em face da desgostosa
falta de eco, como resposta a uma actividade pouco menos do que frenética, uma
fracção dos músicos da AACM veio ter à Europa onde poderiam desconstruir mais à
vontade e com maior apreço das plateias. Na verdade “Europa” queria dizer
“França”, que no ano de 1969 ressacava das agitações do Maio transacto,
migrando para as artes e as humanidades o que intentara politicamente nas ruas.
Perfeitamente integrado no ar dos tempos e no espírito do lugar, o comité
formado por Roscoe Mitchell, Lester Bowie e Malachi Favors Maghostut
popularizou-se nos círculos intelectuais, ao produzir a música que queria ouvir
a juventude vanguardista e ao soltar alguns aforismos adequados à moda vigente:
“You know, some day soon there won’t be any music.” E quando outra mão-cheia de
“exilados” se juntou ao triunvirato ficou-lhes bem designarem-se como Art
Ensemble of Chicago.
Sete discos em 1969 e
outros tantos em 1970 esclarecem o fervor criativo em que viveu o Art Ensemble
of Chicago. Num ambiente assanhado, que oscilava entre a frustração e a euforia
política, muito marcado por polémicas acrimoniosas, pelo radicalismo tempestuoso
e por um ethos de revolta permanente, estes músicos de Chicago intervieram de
uma forma, provavelmente, só ao alcance de americanos em Paris. Uma
descontracção anarquizante sem fumos de ortodoxia, um humor corrosivo e
sarcástico sem espécie de autocomplacência e, acima de tudo, uma densidade
musical destituída de qualquer sintoma de presunção ou afectação cultural (isto
é: académica) fizeram do Art Ensemble of Chicago um fenómeno que a Europa seria
incapaz de conceber mas que provavelmente, só a Europa conseguia acolher.
Da torrente de
registos que o Art Ensemble debitou, “Certain Blacks” seria mais um deles, sem
aspiração a cravar-se como um marco e só será exemplar na medida em que nele se
cumulam todos os traços musicais do grupo. O suficiente para ficar como memória
activa de um período.
José Navarro de Andrade
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