A
Colecção Vampiro regressou de entre os mortos para trazer de volta um dos
catálogos mais divertidos e com um arranjo gráfico que, ainda hoje, é
revolucionário.
As
colecções do passado
Já aqui escrevi sobre a
difícil relação que o mercado editorial português parece manter com o seu
passado. Estas lacunas na memória editorial têm apartado os publicadores de uma
saudável relação e, até mesmo, de uma lógica de continuidade com os grandes catálogos
de que algumas editoras dispunham. É inegável que esta ausência de memória nos
tem toldado as perspectivas e feito caminhar de costas voltadas para um passado
que, muito mais do que mencionado, merece ser lido, tanto melhor quanto mais
essa leitura seja feita contra o presente, contra a obsessão infundada pelos
novos autores, contra os mais recentes prodígios editoriais ou êxitos de venda
importados. Este passado editorial representa uma riquíssima herança para os
actuais fazedores de livros, tanto pelos catálogos como pelas colecções em que
estes muitas vezes se subdividiam.
As colecções, quando
pensadas e estruturadas sob mais critérios que somente o género literário,
quando reveladoras de uma atitude estética e de selecção coerente e ponderada,
dão às editoras algo que os grandes grupos têm tido uma enorme dificuldade em
lograr, uma identidade. A colecção da Relógio d’Água de formato económico e
dedicada aos clássicos, bem como as diversas que a Tinta-da-China mantém são
disto um excelente exemplo. Contudo, são recentes e, mais que isso, quase
nenhuma das grandes colecções do passado sobreviveu até aos dias de hoje sem um
sacrifício mais do relevante da sua identidade.
De entre as diversas
colecções dignas de menção, talvez a mais icónica tenha sido, pelo menos no que
ao aspecto gráfico diz respeito, a célebre Colecção Vampiro, editada pela
Livros do Brasil, ainda hoje, e sem grande polémica, a mais reconhecível e
meritória colecção no universo da literatura detectivesca. Quem se interessa
por livros em Portugal reconhecerá de imediato os volumes da Colecção Vampiro,
principalmente daqueles caixotes de exemplares a 1 e 2 euros, seja nos
vendedores de fim-de-semana da Rua da Anchieta, nos alfarrabista ou em qualquer
pessoa que tenta ganhar uns trocos a esvaziar as estantes herdadas dos pais. O
império das vendas por atacado que estes livros representam, ainda hoje
disponíveis para venda em alfarrabistas, mostra a enorme popularidade que esta colecção
chegou em tempos a ter, tal como demonstra que, actualmente, a grande maioria
dos seus volumes não estão particularmente valorizados no mercado dos livros
antigos.
Antigas
e novas andanças do Vampiro
Num gesto tão
inesperado quanto saudavelmente conservador – ainda para mais num grupo como a
Porto Editora, que incorpora quase cabalmente o mantra do empreendedorismo
literário, se é que estas duas palavras podem ser acopladas sem danos cerebrais
significativos para quem as pronuncia – decidiu ressuscitar a Colecção Vampiro
na mesmíssima Livros do Brasil, actualmente uma das chancelas do conglomerado.
A Vampiro nasceu em 1947, com Poirot Desvenda o Passado de Agatha Christie, ao qual se seguiram
cerca de setecentos livros, naquela que é, provavelmente, a mais prolífica
colecção editorial portuguesa, e que durou até 2007, altura em que foi posta a
dormir, depois de uns últimos anos de escolhas contestáveis e de claros
retrocessos no impecável formato de bolso e nas emblemáticas capas que tinham
tornado reconhecível a colecção.
Admitindo que muito do
sucesso da Colecção Vampiro está relacionado com os gostos da época – vivíamos
na época de ouro das novelas detectivescas –, certamente a sua estética única e
imediatamente identificável, mesmo por quem ainda nem estava vivo quando o seu
catálogo reinava, há-de ter jogado um papel central no fenómeno Vampiro. Isto
terá acontecido sobretudo no formato de bolso (105x160), de tons
predominantemente negros e onde as excepcionais capas de Cândido Costa Pinto ou
Lima de Freitas fascinaram a grande maioria dos seus compradores e leitores, e
que as colecções de policiais posteriores a serem editadas em Portugal, como a
Xis e a Escaravelho de Ouro, nascidas na década de cinquenta, procuraram emular.
As singulares e tantas
vezes desconcertantes capas – mais as de Costa Pinto, membro do Grupo
Surrealista de Lisboa e um dos grandes nas artes gráficas nacionais –, chocavam
com a simplicidade e, claro, a pobreza dos meios utilizados, não envergonhando
as fabulosas revistas e seriados pulp
norte-americanos dos anos vinte e trinta, que em parte a inspiraram, como a Weird Tales[1], a
Astounding Stories[2] ou
a Pocket Books, esta última publicada
desde o fim dos anos trinta e com capas semelhantes. Em alguns casos Costa
Pinto chega mesmo a mergulhar no profundo do plágio, como acontece com capa de A Mão Decepada, de Joel Townsley Rogers,
que copia quase integralmente a capa do mesmo título na Pocket Books, como refere Henrique Valle num texto publicado no Malomil [3].
Sem prejuízo disto,
Costa Pinto é, na e para a Vampiro, o autor de algumas das melhores capas da
edição em Portugal, como acontece em O
Caso das Garras de Veludo ou em O
Caso do Olho de Vidro, ambos de Erle Stanley Gardner, em O Santo no Mar Alto, de Leslie
Charteris, ou naquela que é, provavelmente, a mais exemplar capa do autor para
a Vampiro, em O Assassinato de Roger
Ackroyd, de Agatha Christie.
Esta segunda vida da
Vampiro é agora reiniciada com S. S. Dine, em Os Crimes do Bispo, e com Ellery Queen, em Vivenda Calamidade, dois dos autores mais reconhecíveis e repetidos
de um vasto catálogo de centenas e centenas de obras, juntamente com, só para
citar alguns nomes, George Simenon, Raymond Chandler ou Rex Stout, para além
dos já referidos Erle Stanley Gardner e Agatha Christie, e com alguns dos
investigadores de papel e tinta mais eficazes e implacáveis da história da
literatura, como Philip Marlowe, o detective imortalizado por Humphrey Bogart e
com mais rápido nas ironias e nas piadas do que com as mãos num revólver, o
picuinhas e vaidosíssimo Hercule Poirot, a metediça Jane Marple ou Perry Mason,
o causídico que induziu em erro gerações e gerações de aspirantes a advogados
no mundo real.
Podendo até questionar
as qualidades literárias de uma parte significativa de um catálogo invulgarmente
vasto e dedicado a géneros que pela popularidade ou pela marginalidade sempre
ficaram um pouco longe do panteão literário, há que reconhecer que, dentro do
género detectivesco, a Vampiro conta com um elenco notável e com obras que são,
por direito próprio, bons momentos da literatura, como é o caso de O Falcão de Malta, de Dashiell Hammett, um
portento entre as novelas policiais. E, não se resumindo ao universo policial,
a Vampiro deu também a conhecer alguns autores importantes dentro dos géneros
fantástico e pulp, como é o caso de
H. P. Lovecraft, cujo Os Mortos também
Voltam, publicado pela Vampiro, foi o primeiro livro do grande mestre do
horror do século XX a ser editado em português.
Ficar
morto entre os mortos?
No passado dia 23 de
maio, quase nas vésperas da abertura oficial da Feira do Livro de Lisboa de
2016, a Porto Editora anunciava da seguinte forma a recuperação da Vampiro, num
comunicado publicado no site e onde
vinha incluído o seguinte parágrafo:
“A merecer a atenção dos leitores estará, certamente, o regresso da
emblemática coleção Vampiro, da Livros do Brasil, que se iniciará com dois
livros: Os Crimes do Bispo, de S.S. Van Dine (n.º 1) e Vivenda Calamidade, de
Ellery Queen (n.º 2). Numerados, em formato de bolso e com um preço acessível –
como sempre foi característico desta coleção criada no final dos anos 40 do
século passado e que marcou gerações de leitores e a própria história da edição
em Portugal.”
Dar uma nova vida
àquilo que já esteve morto, como tanta literatura de horror testemunha, é
sempre perigoso. Mesmo no domínio metafórico da necromancia a que aqui nos
circunscrevemos, não nos podemos furtar ao questionamento: que sentido faz
recuperar uma colecção a que o eufemismo jornalístico do “morreu de doença
prolongada” se pode aplicar na perfeição?
Mantendo ainda a brincadeira
e analogia com o horror, o problema do zombie canónico do cinema não é o facto
de comer cérebros ou o seu aspecto desconjuntado e andrajoso, mas sim o simples
detalhe de que aquilo que regressa é de uma natureza diferente daquilo que
partiu. O cerne da questão está, neste momento, e prende-se com o futuro da
colecção e com o rumo que a Porto Editora pretenda dar a este catálogo. Se nova
será Vampiro uma mera reposição do catálogo anterior ou se conseguirá
seleccionar o que de melhor e menos disponível existe entre os seus autores, se
será uma espécie de arca de enxoval ou se será capaz de dar continuidade ao
catálogo e incluir novos autores que estejam hoje a escrever nestes mesmos
géneros, isto é o que verdadeiramente interessa.
Estes dois livros
editados permitem-nos, contudo, algumas conclusões. O formato de bolso é
mantido, embora agora num 110x170, ligeiramente maior que o formato original. O
mesmo, contudo, não acontece com as capas que, nesta nova Vampiro, são
substituídas, pelo menos a julgar pela pequeníssima amostra disponível. E,
tanto no caso de Ellery Queen como de S. S. Dine, infelizmente, substituíram duas
das capas mais interessantes da colecção por desenhos sem qualquer ponto de
contacto com o charme, o impacto e a graça dos originais.
Pelo contrário, as
traduções, uma Némesis demasiado frequente da Vampiro, mantêm-se. Este era um
dos pontos mais críticos do catálogo, com enormes, frequentes e tantas vezes
inexplicáveis problemas de tradução, com especial destaque nos títulos, que em
português, muitas vezes, só se entendiam mesmo pela pura piada, como é caso do
já referido Os Mortos Também Voltam,
de H. P. Lovecraft, duplamente bizarro porque traduz para português o
complicadíssimo título original The Case
of Charles Dexter Ward (só era preciso mudar três palavras) e porque
escolhe um título tão apropriado e distintivo para este conto do autor
norte-americano que, à primeira vista, tanto poderia ser para este texto como
para pelo menos mais uma meia-dúzia de textos de Lovecraft que tratam de
pessoas/coisas que regressam da morte, como The
Thing in the Doorstep, Herbert West
Reanimator, Statement of Randolph
Carter ou The Unnamble, isto para
não falar do nada consensual À Beira do
Abismo, versão portuguesa de The Big
Sleep ou do incompreensível O Barco
da Morte, a “tradução” para português de Death on the Nile, de Agatha Christie, em que o tradutor estava
provavelmente a tentar mostrar ao editor que leu mesmo o livro.
Ambos os livros agora
editados mantêm as traduções originais, apenas reformuladas ao acordo
ortográfico aplicado pela Porto Editora e oriundas de um tempo em que as
pessoas, em português, ainda praguejavam com um “caramba” iam a “sorveterias” e
consideravam algumas coisas uma “tolice”. Em abono da verdade, os casos específicos
das traduções de Vivenda da Calamidade
e Os Crimes do Bispo não apresentam
problemas de maior, mas, como se disse, há no catálogo da Vampiro autênticos
desastres na arte de transpor um texto para uma outra língua.
Em suma, pretender
republicar acriticamente e sem critérios de selecção o catálogo da Vampiro é
absurdo, pelo que se espera que tal ideia não passe, de todo, pelos planos da
Porto Editora. Muitos dos seus autores são hoje fósseis de um tempo e de um
gosto sem qualquer comunicação com a actualidade. Há obras que merecem ser
revisitadas, mas, mesmo dentro dos géneros em que a Vampiro tendeu a
limitar-se, há ainda muito inédito por explorar. Esperemos que seja um catálogo
com vocação para a continuidade, em vez de um mero museu de parte do kitsch
português da segunda metade do século XX.
(uma
versão mais reduzida deste texto foi publicada no jornal i,
de
2-VI-2016)
David
Teles Pereira
Este «regresso» da «Colecção Vampiro» faz-se sob um crime de «acordização ortográfica»... o que não surpreende, sendo a culpada a Porto Editora - aliás, basta ver, nas novas capas, «coleção» para se desaconselhar a compra e se sugerir, em alternativa, a procura (em alfarrabistas e em bibliotecas) das edições originais.
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