segunda-feira, 27 de junho de 2016

Lisboa, 1954.

 
 
Mary McCarthy (1912-1989)

 
 
Em Janeiro de 1954, de passagem por Lisboa na companhia do seu terceiro marido, Bowden Broadwater, a jornalista e escritora Mary McCarthy (1912-1989) escreveu à sua grande amiga Hannah Arendt. A carta, publicada no livro Between Friends: The Correspondence of Hannah Arendt and Mary McCarthy, 1949-1975, Nova Iorque, 1995, pode ser consultada aqui, na versão original. Espera-se publicar em breve um outro texto de Mary McCarthy escrito em Lisboa, também numa tradução algo «livre» e sem especiais pretensões de rigor.  
 
 
Lisboa, Rua Castilho, o nevão de 1954, aqui
 
 
Pensão Bela Vista
9 Rua Ataíde
Lisboa, Portugal Janeiro (?) 1954
 
Querida Hannah,
 
Por aqui neva em catadupa, dizem que pela primeira vez em dez ou cem anos, não consegui perceber bem. Eis então uma tarde que pode ser passada a escrever cartas; os outros dias, depois de almoço, foram dedicados a palmilhar a cidade. Visitámos a maioria das igrejas, Alfama, o Jardim Botânico – que é encantador e julgo ser uma das glórias nacionais –, a biblioteca americana, a biblioteca inglesa, lojas, hotéis, cafés. Na primeira noite fomos ao Rossio e tentámos descobrir o café em que tu e o Heinrich [Blücher] estiveram, mas não creio que o tenhamos encontrado.
Estamos alojados numa pensão onde, ao que parece, somos os únicos hóspedes, ainda que refiram existirem mais clientes. A antiga proprietária, cujo nome nos foi recomendado por Leonid [Berman], o pintor, enlouqueceu há alguns anos, e a pensão tem nova gerência. Receio ser um navio prestes a afundar-se, mas temos dois quartos, um dos quais muito amplo, com uma varanda e uma vista maravilhosa sobre o porto. A nova gerente é Mlle. Carole, de trinta e muitos anos, com um eterno cigarro nos lábios, vestida com um bolero vermelho e uma camisa inglesa com os botões apertados até ao pescoço. Aparenta uma certa graça melancólica de Marlene Dietrich, pelo que, segundo me parece, deve estar à beira da ruína. É meio francesa, meio sueca, com uma maman francesa gorda, vestida de preto, com um ar de decadência resignada. Continuam a ouvir a rádio de França e falam quatro línguas: alemão, francês, inglês e português. Desprezam os portugueses, isto é, todo e qualquer auxílio vindo de fora. Quando a cozinheira portuguesa cozinha, a comida é medíocre, quanto a Madame cozinha, é boa; quando é a Maman a cozinhar, é soberba. Como todas as pessoas quando se encontram desesperadas, parece elas que conseguem ler-nos os pensamentos. Sabem exactamente quando vamos querer experimentar um novo prato. Aí, a Maman vai para a cozinha e, nessa noite, o jantar é digno de La Pérouse. Mas o ambiente geral é de credores a rondarem, fim de festa, confusão, fusíveis a estourar. Em suma, acho o sítio muito simpático e consegui aplacar o Bowden na sua ideia de dar uma volta por outras pensões. A localização é óptima, no alto da cidade, acima e a oeste do Chiado. Como é óbvio, pelos padrões portugueses estamos a ser explorados, mas consolamo-nos com o facto de nos bastar exprimir um desejo e toda a casa entrar de imediato em acção. Isto acontece, bem sei, porque somos americanos. E, para esta gente, os americanos são uma espécie de divindades primitivas, gente com desejos imprevistos e bizarros mas que têm de ser satisfeitos e, se possível, antecipados. Nutrem as mais estranhas ideias – receosas, esperançosas – daquilo que desejamos, como ofertas ou suplementos de conforto. De momento, temos um aquecedor a gás no quarto, mas o rapaz continua a trazer-nos também um aquecedor eléctrico, mesmo sendo o único que existe na casa inteira e de não precisarmos dele.
 
Lisboa com neve. A Baixa, 1954
 
 
 
Ainda não sei quanto tempo aqui vamos ficar. Dizem que o Algarve, no Sul, onde eventualmente planeamos ir, encontra-se coberto de neve por completo, ainda que as mimosas supostamente estejam floridas. Disse-te que a New Yorker me pediu que escrevesse uma carta sobre Portugal? Ontem encontrei-me com o nosso adido de imprensa, que me pareceu muito competente, e até falava de Platão. Para mim, o fenómeno mais marcante que aqui encontrei foi a americanização. Interesses comerciais americanos, a Ford, a Buick, a International Telephone, a TWA estão em grande actividade; há milhares de carros novinhos na rua e as montras exibem rádios, frigoríficos, panelas de pressão, berços de bebés, muitos deles fabricados na América. Aquilo que de mais estranho podemos ver na Rua Garrett, a principal rua de compras, são caixas de bolachas Ritz nas montras, envoltas em veludo vermelho como se fossem objectos sagrados; uma outra montra ostenta rebuçados Tootsie Rolls. Há uma espécie de pathos infantil ou primitivo em tudo isto, uma vez que os doces e os bolos portugueses são maravilhosos, como te deves lembrar. Por todo o lado, nos subúrbios, e até no centro da cidade, florescem projectos habitacionais que, devo dizê-lo, são melhores do que os nossos.
Ainda nada sei sobre a situação política, Economicamente, é um país singular, com uma estranha mistura de prosperidade e de pobreza. As classes médias da cidade parecem ter alguma riqueza, mas não consigo perceber de onde ela vem. As casas de chá e os cafés estão cheios de mulheres e de homens bem vestidos, que na América tomaríamos por gente de negócios, secretárias ou vendedores. Todos os jovens da classe média parecem americanos, como se copiassem os gestos e as expressões que vêem nos filmes – apenas a aristocracia e os pobres aparentam ser aquilo que eu chamaria portugueses, algo muito diferente do que acontece em Itália ou em França. Em contrapartida, os produtos cá fabricados que se vêem nas montras, mesmo nas melhores lojas, são de péssima qualidade – refiro-me a sapatos, malas, vestidos, camisas para homem. Tudo tem um aspecto igual ao que encontramos nos fundos dos armazéns Gimbels ou nos saldos de terceira categoria. Parece não existir verdadeiro artesanato, só aquela tralha típica das festas dos agricultores, tudo muito inautêntico, o tipo de coisas que se compram nas lojas de estrada para levar como recordações. Nas ruas secundárias ou em Alfama vê-se uma pobreza medieval, como em África, dirias tu, ou como a que encontramos nas páginas de Os Miseráveis ou de Nossa Senhora de Paris.
Bem, tenho de terminar. Está a ficar escuro e a única coisa que não consigo encontrar nesta pensão é uma boa luz para ler e escrever. Em breve mando-te um relatório mais detalhado. Se tiveres um minuto, envia-me umas linhas para aqui, Falamos ambos de ti a toda a hora. Pergunto-me onde ficaste em Lisboa; em que zona?
Amanhã irei encontrar-me com o número dois do Ministério da Propaganda. O outro português que conheci é um dançarino de ballet, também recomendado pelo Leonid, e que amanhã nos vai levar a Alfama para ouvirmos o fado.
 
Com muito, muito carinho para ambos,
Mary

 


 Tradução de António Araújo

 

 

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