sexta-feira, 3 de junho de 2016

Spínola na América.


 
 
 

         Ao organizar o programa do General Spínola, por ocasião da sua visita aos Estados Unidos, durante os meses de Novembro e Dezembro de 1975, uma das minhas preocupações foi fazer tudo ao meu alcance para que a mensagem pública que ele desejava transmitir ao governo e ao povo americanos chegasse ao conhecimento do maior número possível de pessoas (falo da "mensagem pública", porque a privada só deveria chegar aos ouvidos dos interessados, o que nem sempre aconteceu, devido à propensão de alguns dos seus próximos colaboradores e com-conspiradores para a violação dos segredos profissionais).
         Que fazer então para que esse desejo se viesse a converter em realidade? Tentar todos os processos e recorrer a todos os meios para que o General pudesse ser entrevistado nos programas de televisão, de “hard news”, de maior projecção em todos os Estados Unidos, tais como "60 Minutes" da CBS, "Meet the Press" e "Today Show" da NBC e "Issues and Answers" da ABC.
         Infelizmente, foram baldadas todas as tentativas feitas para convencer os responsáveis por estes programas da presumível relevância da causa em questão. Contactados por telefone, a primeira pergunta que os produtores me faziam era se o General Spínola sabia falar Inglês. Ao ouvirem uma resposta negativa a essa pergunta, atinham-se a dizer diplomaticamente que lamentavam muito, mas que não tinham interesse na entrevista. Eu ainda insistia que tínhamos contratado um intérprete de primeira categoria (o que era a pura verdade), mas sem qualquer resultado.
         Entretanto, não me foi muito difícil vir a deduzir paulatinamente que o desconhecimento do Inglês, por parte do General Spínola, não era a única razão para que esses programas das três principais cadeias de televisão privada dos Estados Unidos não nos abrissem as portas. Como era sua obrigação, todos os responsáveis por esses programas televisivos pareciam estar convencidos de que a causa por que o General Spínola dizia lutar − e lutava, na realidade − era uma causa perdida, sobretudo em virtude da bagagem que carregava com ele, de que sobressaía o intrigante e famigerado 11 de Março. 
         Perante a impossibilidade de utilizar esses meios para publicitar a mensagem, recorremos a outros, na certeza de que o óptimo é inimigo do bom e de que algo é melhor que nada. E foi assim que conseguimos programar, entre vários outros eventos públicos, tais como conferências em universidades, uma conferência de imprensa no National Press Club em Washington, D. C., graças aos bons ofícios do meu colega e amigo John Plank, professor de Ciência Política na minha universidade (University of Connecticut) e ex-assessor para assuntos latino-americanos,  no governo de John F. Kennedy.
         A fim de que essa conferência de imprensa viesse a ter o maior êxito possível, tudo foi feito para que todos os membros desse célebre e prestigioso Clube de Imprensa norte-americano tomassem conhecimento da sua realização e − o que era mais importante ainda − para que o General Spínola estivesse devidamente preparado para responder competente e sabiamente às mais variadas perguntas que porventura lhe viessem a ser feitas. E foi com esse objectivo em mente que nos dois dias que precederam essa conferência de imprensa, tivemos várias sessões de preparação.
         Ora sucedeu que, nesse meio tempo, tomou-se conhecimento (se de fontes fidedignas ou não confesso que não o soube então nem nunca vim a sabê-lo)  de que o Comité Internacional do Partido Comunista teria realizado uma reunião secreta, ao mais alto nível, algures em Trás-os-Montes, para programar a tomada do poder, num futuro muito próximo, nos dois países da Península Ibérica: Espanha e Portugal.
         De posse dessa momentosa notícia, o General Spínola convenceu-se que a denúncia dessa conspiração soviética deveria ser o ponto alto da sua conferência de imprensa no National Press Club. Mas para que essa denúncia pudesse ser feita perante os representantes dos principais órgãos de comunicação social do mundo inteiro, alguém teria que fazer essa pergunta. Mas quem? Que jornalista? E se nenhum dos membros encartados desse famoso Clube tivesse ouvido falar dessa famigerada reunião clandestina do Comité Internacional do Partido Comunista? 
 
 
 
 
 
         E foi aqui que o General cometeu mais uma "gaffe" monumental e imperdoável, ao deixar-se levar pela ingenuidade proverbial de um dos seus assessores, o Capitão Marques Ramos, valentíssimo como soldado mas semi-analfabeto em política e relações públicas. Para esse assessor o caso era muito fácil de resolver: fabricava-se um jornalista. E qual não foi o meu espanto quando, durante a hora e tal que estive separado do grupo, por ter andado a meter debaixo das portas dos escritórios dos membros do National Press Club a "news release" em que se anunciava a importantíssima conferência de imprensa do General Spínola, qual não foi o meu espanto − repito − ao ir dar com o General Spínola, o dito assessor e o intérprete, em companhia de um cavalheiro que eu não conhecia de parte nenhuma.
         Chamei imediatamente à parte o Capitão Ramos e perguntei quem era esse sujeito e o que estava ali a fazer.
         Que estivesse descansado; que era um dos nossos; que era o jornalista ideal para fazer ao General Spínola a pergunta mais importante, a pergunta crucial, durante a conferência de imprensa. Que para que tudo corresse perfeitamente, já tinham escrito não só a pergunta, mas também a resposta, a fim de que o General não deixasse escapar o mínimo pormenor, dada a relevância extraordinária do assunto.
         Mas esse senhor era mesmo jornalista? − perguntei eu ao Capitão Ramos, na esperança de que ele se desse conta do erro fatal que estava a cometer.
         Claro que não era jornalista; mas que isso não importava: era um dos nossos; eis quanto bastava: tratava-se do Doutor Manoel da Silveira Cardozo, um senhor muito culto, professor de Ascética ou coisa parecida na Universidade Católica de Washington, D.C. − esclareceu o dito assessor. “Era um dos nossos” − voltou a repetir.
         Mas isso era uma tolice de todo o tamanho − observei eu, fortemente irritado, perante tanta ingenuidade. O resultado seria desastroso. Que o melhor a fazer era dar o dito por não dito e convencer esse senhor, provisoriamente promovido a jornalista, que, para bem da causa, nem sequer comparecesse na sala de imprensa, a fim de evitar um desastre certo. Os jornalistas conheciam-se todos uns aos outros. Ao fim e ao cabo, tratava-se de um CLUBE − rematei eu, em tom maior.
         Mas, infelizmente, os meus argumentos não convenceram o Capitão Ramos, nem, naturalmente, o General Spínola. Esse nem sequer nos ouvia, concentrado como estava em bisler e tresler e editar, em letras garrafais, a resposta à magna pergunta que lhe iria ser feita dentro de momentos.
         Chega a hora da conferência de imprensa, com a presença de um número considerável de jornalistas, para agradável surpresa minha, dado o anúncio tardio dela e dada a escassa publicidade que dela se tinha feito.
         Apresento o General Spínola e apresento o intérprete e vou sentar-me, como me competia, longe do pódio, numa das últimas filas da sala, atrás de todos os jornalistas.
         Feita a primeira pergunta, não me recordo sobre que, a que o General respondeu em termos muito parcos e muito vagos, uma vez que se estava a reservar para o prato forte da conferência de imprensa: a resposta à momentosa pergunta sobre a hipotética e fantasmagórica reunião do Comité Internacional do Partido Comunista, algures em Trás-os-Montes, um cantinho de Portugal que nenhum jornalista do National Press Club conhecia nem tinha obrigação de conhecer, no esquema geral das coisas.
           Eis senão quando, lá pelo meio da sala, ouve-se um pequeno sussurro. Reparo e, para consternação minha, noto que era o Capitão Ramos que, ostensivamente, fazia sinais ao tal Professor Cardozo, promovido nesse fatídico dia a jornalista, para que fizesse ver àqueles ignorantes jornalistas que no meio deles se encontrava alguém devidamente informado e à altura dos acontecimentos. E, de repente, vê-se no ar uma mão muito branca e muito descarnada, como convinha a um professor de Ascética, pedindo licença para falar. E ao sinal afirmativo do monóculo do General Spínola, o professor de Ascética, de rosto macerado, aproxima as suas grossas e fuscas lentes de uma folha de papel e começa a ler, muito candidamente, a pergunta combinada de antemão e laboriosamente cozinhada. 
         Ainda o pseudo-jornalista não tinha chegado ao meio da pergunta, já vários jornalistas, de máquina fotográfica engatilhada, se haviam aproximado do pódio, para fotografar os papéis que o General Spínola começara a manusear, pois, como já sabemos, o General tinha escrito a longa resposta a dar ao pseudo-jornalista.
         Tal como eu suspeitava, foi o "kiss of death." Ao verem que se tratava de jogo feito e jogo sujo, a maioria dos verdadeiros jornalistas saiu da sala de imprensa e foi gastar o tempo em trabalho mais sério.
         E foi assim que o General Spínola perdeu mais uma oportunidade soberana de levar a sua mensagem ao conhecimento não só do grande público americano, mas também do público de outros países.
         Procurar nos meios de comunicação social do dia seguinte notícias sobre a necessidade imperiosa de libertar Portugal das grilhetas e da mordaça com que os militares marxistas e o Partido Comunista Português o tinham agrilhoado e amordaçado era o mesmo que procurar agulha em palheiro. A ascética tinha alcançado uma vitória sobre o jornalismo, graças à leviandade e ao atrevimento da ignorância, por parte do General Spínola e dalguns dos seus egrégios assessores. 
 
António Cirurgião
 
 
 
 

7 comentários:

  1. Realmente parece-me(pelo que tenho lido sobre aqueles imbróglios de 74/75)que o general Spinola andou sempre mal acompanhado desde Abril de 74.

    ResponderEliminar
  2. Esse Capitão António Ramos foi autor das mais alucinadas conjecturas sobre o PREC (veja-se a recolha de testemunhos levada a cabo por Manuel Bernardo, Memórias da Revolução 1974-75). Mas o mais inverosímil, que nem o próprio Cirurgião parece por em causa, é mesmo a ideia de que o PCP ia reunir a Trás-os-Montes quando queria tomar decisões importantes. E logo uma como esta, que parece saída da imaginação fértil de um ferveroso defensor da civilização cristã ameçada pela imparável investida do bolchevismo mundial. Em Dezembro de 1975...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Resposta ao comentarista Ricardo Noronha:


      Por lapso, escrevi "Comitê Internacional do Partido Comunista" onde era minha intenção
      escrever "Comitê da Internacional Comunista", pois os "sábios na escritura", como dizia o Vate Nacional, afirmavam que havia uma Internacional
      Comunista, da mesma maneira que havia uma Internacional Socialista.

      Respeitosamente,
      António Cirurgião

      Eliminar
  3. Suponho que haverá por aqui uma certa confusão entre os capitães António Ramos e Armando Marques Ramos, ambos tidos por oficiais "spinolistas".

    ResponderEliminar
  4. Estou entre o estupefacto e o divertido com a candura deste post. O autor tem consciência de que está a relatar uma tentativa de reles manipulação politica da comunicação social, por parte do general Spinola e sua corte? Tem mais segredos destes para contar, agora aqui em Portugal, sobre manipulação jornalística nessa altura por parte da direita, já que os americanos, está bom de ver, não eram um alvo ingénuo?

    ResponderEliminar
  5. O Capitao Ramos a que se refere o " post" prla ingenuidade de personalidade que retrata, é, só pode ser, o Capitao ( hoje coronel ) Armando Marques Ramos, protagonista do Golpe das Caldas e nao o Capitao Antonio Ramos!

    ResponderEliminar