As primeiras entrevistas de Salazar como chefe do governo
Nas semanas que se
seguiram à sua tomada de posse, a 5 de Julho de 1932, como presidente do
ministério, Salazar deu duas entrevistas ao Diário
de Notícias, na pessoa do seu chefe de redacção Armando Boaventura, um
jornalista monárquico, assumido defensor da Ditadura e simpatizante dos regimes
autoritários. Essas duas entrevistas, publicadas a 12 e 25 de Julho (aqui transcritas
nos apêndices 2 e 3) foram as primeiras concedidas pelo novo chefe do governo, que,
diga-se, já tinha fama de pouco propenso a conversar com jornalistas. Em 1926,
no dia em que pela primeira vez ia tomar posse da pasta das Finanças num
governo da Ditadura Militar, Salazar negara-se a prestar declarações a um
repórter do Diário de Lisboa. Apanhado
por este no comboio na estação de Entre Campos, o professor coimbrão esquivou-se
a responder às suas perguntas até à estação do Rossio. “Não tenho programa” e "Os
senhores jornalistas são terríveis" – foram as frases mais sumarentas que
foi capaz de dizer. A curiosidade, explicou-lhe o entrevistador, não era dele,
mas de seis milhões de pessoas que aguardavam uma solução para os problemas
nacionais. O jornal reproduziu assim mesmo a magra entrevista e comentou-a com um
humor ainda permitido pela Censura, aludindo à anedota do papagaio que “não
fala, mas pensa” (apêndice 1).
Em Novembro-Dezembro de
1932, quatro meses depois das declarações prestadas a Armando Boaventura,
Salazar concederia uma série de entrevistas ao repórter António Ferro, publicadas
em sucessivos números do Diário de
Notícias[1]
e reunidas depois no livro Salazar: o homem
e a sua obra (1933). As declarações de Salazar a António Ferro tinham muito
mais o cariz de autênticas entrevistas do que as prestadas pelo ditador a
Boaventura, o qual se tinha praticamente limitado a recolher o texto previamente
escrito e lido diante dele pelo novo chefe do governo. Por timidez ou para não ter
que responder a perguntas incómodas ou ver as suas palavras deturpadas, Salazar
parecia disposto a manter o hábito de não conversar com jornalistas nem falar
de improviso. António Ferro venceria até certo ponto essa relutância do ditador,
tirando-o habilmente do seu recato e persuadindo-o a expor as suas ideias oralmente,
de forma dialogal – ainda que as entrevistas em causa só tivessem sido
publicadas após a minuciosa revisão e as emendas do governante. Na década de 1930,
Salazar daria ainda algumas raras entrevistas a jornalistas portugueses, duas novamente
a António Ferro (1933 e 1938) e duas a Costa Brochado, para o semanário A Verdade (1935). De futuro, porém, o
ditador só daria entrevistas a jornalistas estrangeiros, nunca tendo explicado
a razão de semelhante discriminação, por ele mantida ostensivamente durante
trinta anos. As ideias e posições do ditador destinadas ao público português foram,
assim, sistematicamente fixadas pela palavra escrita: discursos sempre lidos, as
célebres "notas oficiosas" enviadas para a imprensa, alguns raros prefácios
em livros e pouco mais. Nos anos finais do governo de Salazar, o volume Entrevistas 1960-1966 (Coimbra Editora,
1967) continha 14 entrevistas concedidas exclusivamente a jornalistas
estrangeiros.
Armando Boaventura e as
suas turvas relações com António Ferro
O jornalista Armando Ferraz de Boaventura (1890-1959)
trabalhou na imprensa lisboeta nas décadas de 1920 e 1930. Tendo chefiado a
redacção do Diário de Notícias, onde até
1933 teve Ferro como colega, e sido correspondente de guerra em Espanha entre
1937 e 1939, terminou a sua carreira profissional como adido de imprensa na
embaixada de Portugal no Brasil, na década de 1940. Foi também desenhador e
caricaturista de algum mérito, ilustrando por vezes as suas próprias
reportagens. Eis um seu auto-retrato, possivelmente da década de 1950.[2]
Como combatente monárquico,
esteve envolvido na Monarquia do Norte, em 1919, após o que se exilou em
Espanha. Regressado a Portugal em 1921, foi jornalista do diário católico e
monárquico A Época, passando depois para o Diário
de Notícias, onde ascenderia a chefe de redacção, não sem antes ter
colaborado no lançamento do Diário da
Manhã (1931), órgão da União Nacional. Como repórter internacional do Diário de Notícias, entrevistou, entre
outros, Mussolini (1925), Hitler (1935) e Franco (1936). Sabemos que António
Ferro, igualmente com prática de repórter internacional, entrevistou Mussolini (1923,
1926 e 1934) e Hitler (1930), mas não Franco. Dado o entusiástico apoio de
Armando Boaventura às hostes nacionalistas durante a guerra civil de Espanha,
onde foi correspondente de guerra, pôde entrevistar Franco uma segunda vez em
1938, desta vez para O Século.
Boaventura deixara o Diário de Notícias em
1937, assumindo as funções de "agente" do governo de Salazar junto das
hostes franquistas e, em 1939, de adido de imprensa da embaixada portuguesa em
Madrid. Publicou, nesse período, o livro Madrid-Moscovo:
da Ditadura à República e à Guerra Civil de Espanha (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1937),
espelhando toda a sua devoção por Franco e também, obviamente, por Salazar.
Um episódio ainda
praticamente desconhecido, de que aqui se dá conta, é o do conflito havido no
princípio do ano de 1936 entre Armando Boaventura e António Ferro, antigos
colegas do Diário de Notícias. Boaventura
ainda se mantinha então como chefe de redação do jornal lisboeta, enquanto Ferro
era, desde 1933, director do Secretariado de Propaganda Nacional, acumulando insolitamente
esse cargo, desde 1934, com a presidência da direcção do Sindicato Nacional dos
Jornalistas – criado ao abrigo das leis corporativistas, após a dissolução
imposta ao Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa. Ora, Armando Boaventura
recusou aderir ao novo sindicato, que, na sua opinião, fora organizado
"sem a classe ser ouvida nem achada". O sindicato era uma
"mentira" que não representava os "jornalistas de verdade".
E contestava Ferro pessoalmente, acusando-o de ser presidente do sindicato
apenas com 22 votos e com o fito de, por inerência, vir a ser procurador à
Câmara Corporativa. Uma tal posição, expressa privadamente, mas vinda do chefe
de redacção do primeiro diário do país, não podia deixar de causar forte abalo
a António Ferro – tanto mais que o conflito foi seguido de perto pelo chefe do
governo, que pôde ler a correspondência mutuamente acusatória trocada entre ambos,
de que eles próprios lhe fizeram chegar cópias[3].
É possível que estas e
outras posições de Armando Boaventura tenham contribuído para o facto de Salazar
nunca mais lhe ter concedido entrevistas. Numa carta que em 1936 António Ferro enviou
a Armando Boaventura, fazendo chegar cópia dela a Salazar, o director do SPN não
se esqueceu de lembrar ao seu ex-colega do Diário
de Notícias que em 1935 ele tinha subscrito uma petição de 200 jornalistas
e escritores, endereçada ao presidente da Assembleia Nacional, pedindo o fim da
censura, alinhando assim o seu nome com o de numerosos intelectuais
oposicionistas. Perante essa posição colectiva dos intelectuais, António Ferro,
na sua dupla qualidade de director da propaganda do regime e de líder sindical
dos jornalistas, veio a terreiro defender a manutenção da censura, com um
discurso violento pronunciado num jantar de 150 “intelectuais nacionalistas”,
em 24 de Fevereiro de 1935, na Estufa Fria. As relações entre Boaventura e
Ferro seriam de algum modo apaziguadas ainda em 1936, como parece testemunhar o
facto de o director do SPN ter intercedido junto do general Franco para que
este concedesse a Armando Boaventura a entrevista realizada em fins de Dezembro
desse ano[4]. Anos
mais tarde, quando em Julho de 1941 foi colocado como adido de imprensa na
embaixada do Rio de Janeiro, Boaventura viajou para o Brasil acompanhado por
Ferro, que iniciava então um périplo pelo continente americano[5]. Nenhum
destes factos prova, naturalmente, que as relações entre os dois fossem já
boas, ainda que estivessem normalizadas. Contestado por jornalistas de várias
tendências, Ferro tinha abandonado a presidência do Sindicato Nacional dos
Jornalistas em Março de 1937. Quanto a Armando Boaventura, parece ter-se
mantido fiel à sua recusa de aderir à “mentira” do Sindicato Nacional dos
Jornalistas. Pelo menos, nunca fez parte de qualquer dos seus corpos directivos.
As entrevistas de Salazar a Armando Boaventura (1932)
As duas entrevistas concedidas
em Julho de 1932 pelo novo chefe de governo ao chefe de redacção do Diário de Notícias – não reproduzidas desde
então em qualquer publicação e que adiante se transcrevem integralmente – têm manifesto
interesse histórico, tanto pelas matérias abordadas como pelo momento em que
ocorreram.
Ao tomar posse como
presidente do ministério, no dia 5 desse mês, Salazar tinha pronunciado um
curto discurso de circunstância, falando em termos muito vagos dos propósitos
do seu governo[6]. Optara por não fazer uma “declaração
ministerial à moda antiga”, pretendendo sobretudo passar a ideia de que “os
homens são outros, mas o governo é o mesmo”. Era importante declarar essa ideia
de continuidade, porque o processo de formação do seu governo fora tudo menos
pacífico ou consensual entre as facções apoiantes da ditadura. Comparadas com o
discurso da tomada de posse, as declarações ou “entrevistas” de Salazar a
Armando Boaventura, muito especialmente as publicadas a 12 de Julho, foram incomparavelmente
mais esclarecedoras das suas intenções relativamente a questões políticas concretas
e essenciais.
Formalmente, essas
entrevistas (assim designadas pelo jornal) enfermam ainda do antigo figurino
que Salazar impunha às suas relações com os jornalistas, lendo-lhes declarações
previamente escritas. Todavia, Armando Boaventura decidiu publicar essas
declarações no jornal dando-lhes a forma de diálogo, que de facto não existiu.
O resultado dessa operação de copy desk
foi bastante medíocre, como se poderá constatar.
Salazar discursando na tomada de posse do seu governo, a 5 de Julho de 1932.
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A primeira entrevista,
publicada a 12 de Julho (anexo 2), dedicou-a Salazar a esclarecer os pontos
cruciais da política que o governo que chefiava ia pôr em prática, bem como a tentar
desfazer "confusões" que ainda sobreviveriam, alimentadas mesmo em
sectores apoiantes da Ditadura Militar. Uma dessas alegadas confusões
relacionava-se com o processo de constitucionalização do regime. Salazar e um
grupo de próximos colaboradores tinham elaborado nesse ano de 1932, com o
general Domingos Oliveira ainda como presidente do ministério, um projecto de
Constituição que, depois de debatido pelo governo e pelo Conselho Político
Nacional, foi publicado a 28 de Maio, para "debate público" (a versão
final, a submeter a plebiscito, só seria publicada no Diário do Governo de 22 de Fevereiro de 1933)[7]. Na
sua primeira entrevista, Salazar quis transmitir a Armando Boaventura a ideia
de que a constitucionalização da Ditadura, dando origem ao Estado Novo, não iria
ser, como "muitos" pensariam ou desejariam, um regresso à
"normalidade constitucional" do passado, mas sim a entrada num
período completamente novo, incompatível com o sistema de partidos. O estado de
excepção instaurado pelos militares em 28 de Maio de 1926 estava, pois, a
chegar ao seu termo, mas a Ditadura – que, na opinião de Salazar, havia
"banido" definitivamente a política partidária – estava para ficar,
ainda que sob uma forma constitucionalizada.
Outro ponto a destacar da
primeira entrevista relacionava-se com o futuro papel político dos "chefes
militares". O governo em que Salazar foi empossado em Julho de 1932 era o
primeiro, desde 1926, chefiado por um civil, e com apenas dois militares, nas pastas
da Guerra e Marinha, enquanto o governo imediatamente anterior contava seis
militares. Com a constitucionalização da Ditadura, os chefes militares iriam pois
ficar mais arredados da "política activa", a qual, segundo Salazar, não
era a sua "função própria". Excepção notória era o caso do chefe de
Estado, o general Óscar Carmona, vértice formal do organigrama do poder
ditatorial. Em todo o caso, advertia Salazar, a "disciplina militar" deveria
continuar na base do Estado, garantindo os militares, com a sua
"vigilância e firmeza" o "renascimento pátrio". Por detrás
destas considerações, entreveem-se as grandes dificuldades que Salazar teve de
enfrentar na primeira semana de Julho, quando formava o seu governo, num processo
em que foi submetido a fortes pressões e até ameaças por parte de alguns
sectores militares. Foi-lhe particularmente difícil afastar da pasta da Guerra
o anterior ministro, coronel Lopes Mateus, que fazia finca-pé em continuar no
governo, apoiado por comandantes de várias unidades e por um grupo de oficiais
de baixa patente, tenentes e capitães já conhecidos pela sua indisciplina e pelo
seu papel central em sucessivas crises da Ditadura Militar[8].
Nos dias que antecederam a tomada de posse do governo, perante a
"crise" que se desenhava nos meios militares descontentes com o
elenco governamental que se preparava, Salazar e até Carmona chegaram a ameaçar
repetidamente com a sua própria demissão. O novo ministro da Guerra, general
Daniel Rodrigues de Sousa, acabou, ainda assim, por ser praticamente imposto a
Salazar pelos chefes militares de Lisboa, concertados com o ministro deposto[9]. Um
outro "conjurado", o major Luís Alberto de Oliveira, sucederia como
ministro da Guerra em 1933. E o regresso dos militares aos quartéis foi lento:
em 1933-1936, o capitão Antonino Gomes Pereira e o tenente-coronel Henrique
Linhares de Lima sucederam ao civil Albino dos Reis na pasta do Interior.
Sabe-se que o texto desta
primeira "entrevista" a Armando Boaventura foi redigido conjuntamente
por Salazar e o seu chefe de gabinete, Antero Leal Marques[10],
ao longo do dia 9 de Julho e na manhã seguinte. Apesar das interrupções a que
foram forçados, a demora espelha o extremo cuidado posto na preparação do
texto. Na opinião do chefe de gabinete, de pouco lhes tinham servido umas notas
escritas e fornecidas para aquele efeito por Quirino de Jesus, dado o "tom
irritante" e as "inclinações ultraconservadoras" do seu autor, um
conselheiro que começava a cair em desgraça junto do ditador[11]. Destas
circunstâncias ressalta a imagem de alguma insegurança ou dependência de
Salazar nos seus primeiros anos de governo, que de futuro desaparecerá.
A segunda entrevista
concedida por Salazar a Armando Boaventura, publicada a 25 de Julho (anexo 3), foi
suscitada pela questão da trasladação para Portugal dos restos mortais de D.
Manuel de Bragança, que vivera exilado em Inglaterra desde 1910. A tão curta
distância da primeira, apenas 13 dias, esta segunda entrevista só poderia ter
sido motivada por fortes razões, ainda que circunstanciais.
A morte do último rei
português, sem descendência, dera-se inesperadamente a 2 de Julho, quando ainda
estavam em curso os preparativos para a posse de Salazar como chefe do governo,
cargo para o qual fora indigitado por Carmona a 28 de Junho. A coincidência da
morte do rei exilado com a ascensão de Salazar à chefia do governo proporcionava
a este a oportunidade de, no início da sua governação, ter um gesto apaziguador
para com as impacientes hostes monárquicas, que estavam a ver as suas
esperanças restauracionistas defraudadas pelo projecto constitucional. Mais
recentemente, os monárquicos haviam constatado, com visível desgosto, que no elenco
governamental de Salazar dominavam em absoluto os elementos republicanos. Por
outro lado, com a morte de D. Manuel, também a questão do destino a dar aos
bens da Casa de Bragança passara para primeiro plano, com um debate sobre esse
tema a iniciar-se dias depois na imprensa[12] –
ocasião para alguns relembrarem a extinção dos vínculos da Monarquia pela
República e para defenderem que os bens da coroa pertenciam à nação. Com a
questão dos bens relacionava-se ainda a posição do novo pretendente, D. Duarte
Nuno de Bragança, que continuava impedido de entrar no país e para quem os
monárquicos esperavam agora um gesto de reconhecimento por parte do poder.
Tomando, nessa
conjuntura, a decisão de proceder à trasladação para Portugal do corpo de D.
Manuel e à realização de exéquias nacionais, Salazar optou por um gesto
simbólico que não podia deixar de agradar aos monárquicos, sem ter de lhes
fazer qualquer cedência em matéria propriamente política, deixando também a delicada
questão dos bens da Casa de Bragança para ulterior resolução[13]. As
palavras elogiosas do ditador, na sua entrevista ao Diário de Notícias, para com o monarca defunto serviram-lhe para reforçar
esse gesto simbólico, mas não deixou também de tentar tranquilizar os
republicanos quanto a hipotéticos "intuitos reservados" da homenagem fúnebre
ao rei deposto – um acto que, segundo disse, visaria apenas contribuir para
sarar a "ferida" aberta em 1910 no seio da "família
portuguesa".
Diga-se que a primeira
proposta no sentido da trasladação dos restos mortais de D. Manuel e da
deposição dos mesmos no Panteão de S. Vicente surgira, logo no dia 3 de Julho,
da pena republicana de Joaquim Manso, director do Diário de Lisboa, em editorial ocupando toda a primeira página do
jornal (imagem seguinte).
No dia seguinte à morte de D. Manuel
II, o Diário de Lisboa (3 de Julho de
1932, p. 1) propôs a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão de S.
Vicente, acreditando que isso não repugnaria ao "espírito republicano da
Nação". (Fonte: Fundação Mário Soares.)
Dias depois, o próprio jornal
República declarou nada ter a opor a tal
proposta[14].
A 8 de Julho, o presidente Carmona, consultado por Salazar, disse-lhe que
achava a trasladação um "gesto magnânimo", de que nada haveria a
recear[15]. Nesse
mesmo dia, o conselho de ministros, o primeiro reunido sob a chefia de Salazar,
decidiu pela trasladação, transpirando essa informação para a imprensa do dia
seguinte (jornal O Século), que a
Censura deixou passar. Enfim, a 3 de Agosto de 1932, pôde ver-se o governo em
peso na igreja de S. Vicente de Fora, com o presidente Carmona e o cardeal
Cerejeira a dominarem a cerimónia dos seus cadeirões, prestando solene
homenagem ao monarca deposto pela República, sem que a maioria dos republicanos
visse nisso motivo para alarme (imagem seguinte).
Exéquias de D. Manuel II em S.
Vicente de Fora, a 3 de Agosto de 1932. Assistiram o presidente Carmona, o
cardeal Cerejeira e Salazar com todo o seu governo. (Foto: Arquivo Municipal de
Lisboa).
APÊNDICES
1. Entrevista de
Oliveira Salazar a jornalista anónimo do Diário
de Lisboa (12 de Junho de 1926, p. 8), no dia em que tomou posse como
ministro das Finanças.
Fonte: Fundação Mário Soares.
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2. Entrevista de
Salazar ao Diário de Notícias, 12 de
Julho de 1932, p. 1.
A PRIMEIRA ENTREVISTA
A ORIENTAÇÃO POLÍTICA DO NOVO GOVERNO
exposta pelo presidente do Ministério,
sr. Dr. Oliveira Salazar
Confusões e perturbações... – Dos objectivos da Ditadura – A União
Nacional – O projecto de Constituição – O Exército e a atitude política – Plano
de realizações – Mudança radical do regime de trabalho – Confiança no País
Logo que foi encarregado pelo Chefe
de Estado de organizar o actual Ministério, o sr. dr. Oliveira Salazar,
procurado pelo redactor do Diário de
Notícias, fez-lhe esta promessa:
– A primeira entrevista reservá-la-ei
para o seu jornal.
Vão decorridos mais de oito dias e,
de facto, o ilustre chefe do Governo, pois só agora se proporcionou ensejo – num
parêntese aberto às múltiplas ocupações que o assoberbam – convida-nos pelo
telefone a irmos a sua casa.
– Prometi-lhe – diz-nos – uma
entrevista, mas não sei se entrevista poderá e deverá chamar-se a uma exposição
que, por intermédio do Diário de Notícias,
entendo dever fazer ao País.
E logo acrescenta:
– Estou acostumado a escrever tudo
quanto destino a público. Por isso, não faço discursos de improviso, nem
exponho os meus pensamentos pela palavra falada. Redijo o que quero dizer e
leio. Através da minha vida pública tem sido este o meu sistema.
– Quer V. Ex.ª significar?
– Que o que vou dizer-lhe consta duma
exposição escrita que vou ler-lhe...
– O nosso interesse, sr. presidente –
acudimos pressurosos – é reproduzir as declarações de V. Ex.ª.
– Oiça então.
E fielmente reproduzimos:
– No decurso dos últimos meses,
têm-se estabelecido grandes confusões a respeito das ideias do Governo da
Ditadura, da sua finalidade, da sua evolução e da preparação da futura ordem
constitucional. Sucumbiu principalmente a essas confusões o Ministério anterior
e formou-se um pouco no meio delas o actual Governo. No fundo, tudo tem girado
à volta de interpretações erróneas dadas por muitos a certos factos políticos.
Daqui têm resultado, pelas circunstâncias especiais da política portuguesa,
perturbações graves.
Tenho, como chefe do Governo,
necessidade de esclarecer, se não de fixar, por uma vez, todos os pontos a
respeito dos quais possa haver qualquer dúvida no espírito dos amigos da
situação.
O movimento de 28 de Maio e os seus objectivos
– Esclarecimentos de carácter
político?...
– Evidentemente.
E expõe:
– O programa político geral da
Ditadura, no qual se deve integrar o deste governo, já tem sido por mais duma
vez claramente definido. São os seguintes os seus pontos fundamentais:
1.º O movimento do 28 de Maio, que
implantou a Ditadura Nacional, teve por fim levantar as condições materiais e
morais de Portugal e garantir a este o seu destino histórico, pela reorganização
política, económica e social e pela constituição dum Estado forte que assegure
a realização daqueles fins, respeitando a tradição, a ordem e as liberdades
naturalmente reconhecidas aos indivíduos e grupos sociais.
2.º Nessa ordem de ideias e em inteira
subordinação a esses princípios, a Ditadura realizou muitas das suas reformas,
publicou o Acto Colonial, fundou e difundiu pelo País a União Nacional e
elaborou o projecto de Constituição que tem estado sendo discutido.
3.º A União Nacional, como força
civil que se criou para apoiar a Ditadura e a sucessão que esta prepare, é uma
associação independente do Estado e sem carácter de partido, destinada a
assegurar pela colaboração dos seus filiados, sem distinção de confissão
religiosa ou de escola política, mas com pleno respeito e acatamento das
instituições vigentes, que aqueles por isso não poderão hostilizar, a
realização e a defesa dos princípios consignados nos seus estatutos, princípios
que são essencialmente os de direito público e de ponderado nacionalismo
desenvolvidos na Constituição projectada.
4.º A União Nacional é incompatível
com o espírito de partido e de facção política, julgando-se esse espírito
contrário ao princípio da unidade moral da Nação e à natureza e fins do Estado.
5.º Como foi sempre afirmado, é norma
superior da política da Ditadura serem aproveitados, no máximo possível e do
modo mais conveniente, os melhores valores nacionais, por motivo de salvação
pública.
A União Nacional e sua organização – Recrutamento de valores nacionais
– Desses princípios fundamentais que
V. Ex.ª acaba de expor?...
– Destes princípios fundamentais
resulta, por imposição lógica e por necessidade política, que devem ser
atraídos para o nosso campo os homens sérios e úteis, quer os sempre afastados
de qualquer actuação política, quer mesmo os que hajam militado em partidos,
desde que venham para nós com intenções rectas e aceitação sincera da nossa
doutrina.
– Pessoalmente?...
– Pessoalmente, tenho a convicção de
que a maior parte dos homens de valor que serviram as altas posições dos
partidos políticos se devem considerar infelizmente perdidos para a obra de
reconstrução nacional empreendida pela Ditadura. A educação das nossas escolas
é demasiado abstracta para que as realidades da vida tenham sobre os homens que
aderiram a um certo sistema uma acção eficaz. Nós ficamos, em geral, agarrados
à doutrina política em que o nosso espírito se formou, e é raro aparecerem
indivíduos que vão constantemente comparando, corrigindo ou rectificando, com o
auxílio dos factos, a sua posição mental.
E acentua:
– O mundo atravessa um momento de
grande transformação política, económica e social e não podem ter-se esperanças
demasiadas de que venham trabalhar, nos quadros novos impostos pelas
circunstâncias, muitos valores de antiga formação.
– Muitos valores... Não quer dizer
todos os valores de antiga formação... – objectámos.
– Evidentemente, sendo certo, como é,
que, entre os antigos homens públicos, se encontram muitos cujas afinidades
doutrinais com o nacionalismo, que está na base do movimento de 28 de Maio, os
poderão trazer francamente para a Ditadura.
E, completando o seu pensamento:
– Sentimos que, em relação a alguns,
as condições do momento os convidarão naturalmente a fazê-lo, desde que se lhes
não pede o sacrifício da sua opinião pessoal acerca da melhor forma de governo.
Prosseguindo:
– Seja, porém, como for, nós temos
de, mais uma vez, declarar que a União Nacional é um organismo permanentemente
aberto a todos os portugueses, não como um centro de reunião de mentalidades ou
processos divergentes, mas como um ponto de convergência de todos os que
estejam convencidos, ou venham a convencer-se, da superioridade dos nossos
processos e da lisura dos fins que pretendemos atingir.
– Essas adesões?...
– É evidente que tais adesões não têm
que ser promovidas com precipitação, de modo que alguma vez a nossa causa fique
em perigo ou haja fundados receios de perturbações e atritos. Nem mesmo os que
venham para a União Nacional podem ter a pretensão de ocupar, de entrada, os
lugares de responsabilidade, de direcção ou de mando, sem que, através do
tempo, hajam dado provas decisivas da sua adesão completa e da sua lealdade.
Por sua vez, os que aceitem a sua nomeação ou eleição para cargos com funções
dirigentes não podem mais dizer que não estão ou não ficam ligados à União
Nacional e ao seu programa. Isso mesmo lhes é imposto pela sua dignidade moral.
E declara:
– Em qualquer caso, ainda que sejam
bastantes os valores aproveitáveis estranhos à Ditadura e que nela ingressem,
nem por isso se poderá dispensar a obra de preparação do pessoal necessário à
administração do País e à governação pública. E deve ser esta uma das maiores
preocupações do Governo. Felizmente nós estamos assistindo a uma verdadeira
florescência nacionalista, nos meios de alta cultura, nas escolas, nas
oficinas, e temos aí o viveiro para a formação e recrutamento dos novos
quadros.
O projecto de Constituição e a chamada "normalidade
constitucional"
– Sobre a futura Constituição, sr.
presidente?
– Posta de lado pelo próprio facto
revolucionário a Constituição de 1911, ao menos na parte que respeita à
organização do Estado, todos compreendem que se impunha a necessidade de ir
arquitectando essa organização, ou por meio de diplomas independentes emanados
do Governo, ou por meio de um novo Estatuto Constitucional.
Foi nesta segunda ordem de ideias que
o Governo anterior preparou o projecto de Constituição, que tem sido
publicamente discutido. Este Governo recebeu uma espécie de mandato expresso de
prosseguir na obra de constitucionalização, sem prejuízo das garantias ou
cautelas que devessem rodear o funcionamento do Estado Novo.
– Na opinião e V. Ex.ª o referido
projecto de Constituição?...
– Incluiu tudo o que na ordem
política, administrativa, económica, moral, social e colonial é básico para a
Ditadura, para a sucessão constitucional, que ela prepara e institui, e para a
União Nacional na obra de transformação do estado e do País. Estão aí
consubstanciados os objectivos fundamentais dos Governos da Ditadura e,
portanto, do actual, porque afinal resumem os da Nação portuguesa.
E o chefe do Governo acrescenta:
– As circunstâncias políticas
obrigam-nos a adiar por algum tempo a entrada em vigor desse diploma, que tem
de ser precedido duma revisão cuidadosa de todos os pontos que têm merecido
reparo maior da opinião pública. Aceitando o Governo este projecto e declarando
a sua concordância com os princípios nele consignados, nada mais é preciso para
se saberem as grandes linhas da sua orientação política.
Muita gente supõe erradamente que a
entrada em vigor da nova Constituição quer dizer o mesmo que a chamada normalidade constitucional, no sentido
de regresso ao statu quo ante e ao
regime partidarista banido pela Ditadura. Não só há muitos trabalhos ainda a
realizar para a execução integral do sistema, como é preciso esperar da
previdência dos dirigentes que todas as leis complementares e inspiradas na
Constituição evitem o regresso a uma ordem política diferente daquela a que se
aspira.
E, a seguir:
– Além de dever dar andamento ao
projecto de Constituição, o Governo tem, por consequência, de elaborar
paralelamente o Código Administrativo, o Código Eleitoral, os decretos
orgânicos das corporações e os restantes diplomas exigidos pelo novo direito
público e de organizar, conforme os estatutos definitivos, a União Nacional,
dando-lhe incremento, de modo que, quando for a hora própria, se proceda à
eleição dos corpos administrativos e da Assembleia Nacional e à formação da
Câmara Corporativa.
E mais declara:
– Além da defesa intransigente da
Situação e da constitucionalização do Estado, vagarosa, bem entendido, mas
progressiva, o Governo não fará na ordem interna nenhuma outra política. Parece que atravessamos um momento em que
está outra vez em moda a exaltação dos factores políticos, e quem sabe se
muitos dos que pedem agora política, sempre política, só política, política em
todas as pastas, não são os mesmos que, anos atrás, pediam a neutralização de
alguns ministérios, por não poder já o País comportar a política que neles se
fazia...
O Exército e a política
Continuando, o sr. dr. Oliveira
Salazar alude ao Exército, nestes termos:
– O Exército é, por sua natureza, a
garantia da integridade nacional e da ordem pública. Nunca foi nem pode ser
outra a sua função própria, e esta é, por definição, incompatível com a
política activa. Não foi com prejuízo destas ideias, antes no cumprimento da
alta missão que lhe está confiada, que o Exército, interpretando a vontade
geral do País, interveio, em nome da salvação pública, para instituir uma
Ditadura nacional que extinguisse as desordens das facções e a indisciplina
geral, opostas à necessidade de reorganização de Portugal e do seu prestígio.
Desde então, tem dominado todas as revoltas, garantiu a eleição do Presidente
da República e a acção dos ministérios livremente nomeados por ele.
E acrescenta:
– Mas, cumprindo este dever, que
assumiu carácter excepcional em virtude das circunstâncias, nem por isso o
Exército deixou de ser o que é próprio da sua constituição.
O Presidente da República, através de
todo este período, consultou, várias vezes e em momentos excepcionais, os
chefes militares. Era natural o facto pela própria origem da Ditadura e pelos
fins que pretende atingir. É mesmo possível que ainda o tenha de fazer, se
necessidades públicas anormais acaso o indicarem. Mas, normalmente, as coisas passam-se
e vão passar-se conforme as normas correntes da política. Quem decide e
decidirá sempre é o Chefe do Estado e o Governo por ele nomeado livremente.
O Presidente da República tem, hoje,
como auxiliar, o Conselho Político Nacional, que, amanhã, será substituído pelo
Conselho de Estado. Quer isto dizer que pela evolução natural da Ditadura e da
sua obra de reorganização política, vamos seguindo para o estabelecimento e
funcionamento do Estado Novo, não se podendo perder de vista que está sempre na
base do Estado a disciplina do Exército, que foi a fonte do movimento de 28 de
Maio e tem de ser, pela sua vigilância e firmeza, a garantia forte e consciente
do renascimento pátrio.
Situação clara – Mudança radical do sistema de trabalho
O chefe do Governo abre um parêntesis
para nos dizer:
– Agora vou entrar no capítulo a que
chamarei Situação clara.
E ditou:
– Depois de tudo o que fica dito,
seria absolutamente incompreensível que persistissem ou voltassem as confusões
a que no princípio me referi. Aos homens responsáveis pela direcção da Ditadura
pertence cumprir as suas obrigações com lealdade. Sobre os que a acompanham e a
defendem impende o dever de confiarem nos compromissos morais que os primeiros
tomaram perante a Nação. Bem sei que nenhum Governo poderá fugir de todo à
atmosfera viciosa de suspeitas e boatos contra as suas boas intenções na marcha
prudente para a futura sucessão constitucional. Mas compete aos espíritos mais
reflectidos impedir, pela sua ponderação, que esses males tomem proporções
perturbadoras, concorrendo para que haja serenidade nos juízos e correcção nas
atitudes.
Uma vez definidos com clareza a
orientação e os princípios do Governo, que não podem deixar dúvidas nos homens
de intenções rectas, teremos de empregar todos os meios ao nosso alcance para
evitar não só as perturbações de ordem, venham de que lado vierem, mas também
que perdure a confusão que se estabeleceu na política portuguesa e que se
reputa prejudicial à Ditadura e ao País.
E acrescentando:
– É possível que se modifique
radicalmente a maneira de trabalhar do Governo, substituindo-se à ânsia
reformadora, de que somos vulgarmente atacados, a resolução ordenada dos
maiores problemas, e substituindo-se os frequentes conselhos de ministros (certamente
de futuro destinados apenas a definir orientações gerais), pelas reuniões do
chefe do Governo com os ministros por cujas pastas devem ser tratadas as
questões. Não deverá mesmo estranhar-se que, não sendo de facto razoável exigir
responsabilidades aos ministros em obra legislativa, que não é da sua
especialidade, os próprios decretos com força de lei venham mesmo a ter apenas
a assinatura do presidente do Ministério e dos ministros efectivamente
responsáveis por eles. Haverá, nesta forma de trabalhar, economia de tempo e mais
perfeita harmonia com as realidades da governação pública.
E a concluir, o sr. presidente do
Ministério afirma:
– O Ministério sabe muito bem como
são graves as dificuldades que pelas circunstâncias do País, e hoje ainda mais
pelas da Europa e do resto do mundo, vai ter na política, na administração e na
economia pública. Mas tem a certeza de que poderá completar os alicerces do
Estado Novo e da reconstituição geral, desde que todos os grandes órgãos da
Nação e este povo laborioso, paciente e bom lhe dêem apoio, segundo os ditames
do seu patriotismo.
[Entrevista não assinada, da autoria
de Armando Boaventura, como se depreende da seguinte.]
3. Entrevista de
Salazar ao Diário de Notícias, 25 de
Julho de 1932, p. 1.
UM CICLO QUE FINDA...
A TRASLADAÇÃO DE D. MANUEL II PARA O
PANTEÃO DE S. VICENTE
E AS EXÉQUIAS FÚNEBRES NACIONAIS
ORDENADAS PELO GOVERNO
O cadáver deve chegar a Lisboa em 2
de Agosto, a bordo de um navio inglês
_________
Nobres, claras e patrióticas declarações do presidente do Ministério, sr.
dr. Oliveira Salazar
O chefe do governo é um homem – um
homem novo – de atitudes claras e definidas, sabendo o que quer, qual o caminho
a seguir, sem tergiversar, sem transigir, sem recuar. As suas declarações no
acto de posse do Governo a que preside foram concretas – todo um plano de chefe
de Governo, dum Governo constituído propositadamente para levar a cabo uma obra
de reorganização política da sociedade portuguesa.
Quando fala ou escreve – e só fala
para o público depois de reduzir a escrito o seu pensamento – não há uma
palavra a mais ou a menos, mas, sim, as palavras precisas, que tudo dizem e
tudo significam, quer se trate dum projecto de realizações, quer se trate duma
solução de determinado problema...
Ouvimo-lo, há poucos dias, na sua
primeira e sensacional entrevista – síntese perfeita do seu programa de
Governo. E fomos, agora, de novo, ouvi-lo sobre um assunto palpitante.,
flagrante de oportunidade – a trasladação dos restos mortais do Sr. D. Manuel
de Bragança, último rei de Portugal, a que se refere a nota oficiosa que
adiante inserimos[16].
O sr. dr. Oliveira Salazar diz-nos:
– Sim. A trasladação dos restos
mortais do Sr. D. Manuel está sendo tratada pelo Governo para data muito
próxima.
– Ainda não fixada?
– É possível que esse acto e as
exéquias nacionais se efectuem no próximo dia 2 de Agosto, trigésimo dia do
falecimento.
A atitude da Inglaterra – As razões que determinaram o Governo a tomar a
iniciativa da trasladação e de realizar as exéquias nacionais – D. Manuel de Bragança
no exílio e o seu pensamento político
E o sr. dr. Oliveira Salazar
esclarece:
– Precisamente agora, a Inglaterra,
sabendo das intenções do Governo Português, acaba de pôr à nossa disposição um
barco de guerra para transportar o cadáver até Lisboa. Traduz este oferecimento
uma tal prova de amizade a Portugal e uma tão grande gentileza por parte do
Governo inglês, que nós não vimos outra maneira de corresponder-lhes senão
aceitando. Por esse motivo, não mandamos já a Inglaterra um navio nosso.
Inquirimos:
– As razões determinantes da
iniciativa tomada pelo Governo da Ditadura sobre a trasladação do corpo do Sr.
D. Manuel?
O ilustre chefe do Governo responde:
– Essas razões constam sucintamente
da nota enviada, há dias, aos jornais, acerca da resolução tomada.
– Razões, aliás, muito sucintas, como
V. Ex.ª confirma. Seria, pois, interessante dar maior desenvolvimento a essas
razões...
O sr. dr. Oliveira Salazar anui,
expondo:
– O Sr. D. Manuel pertence, de facto,
à História e à Nação Portuguesa, e a não ser que a Família tivesse motivos para
opor-se, qualquer Governo verdadeiramente nacional sentiria a obrigação de
promover a trasladação do seu cadáver para a sua e nossa Pátria. Mas há mais...
– ?
– O Sr. D. Manuel reinou em Portugal
quando muito novo ainda e em circunstâncias políticas extremamente
desfavoráveis para que não contribuiu e de que veio a ser vítima. O maior
interesse da sua personalidade está, precisamente, ligado ao seu tempo de
exílio, como está ligada a esse período a sua mais benéfica acção a favor de
Portugal.
E esta declaração:
– Pode, no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, não haver documentação suficiente acerca dos altos serviços que o
Sr. D. Manuel prestou à Pátria, mas não seria difícil, através da sua
correspondência, reconstituir não só a história desses serviços, como o alto
pensamento que os inspirava.
– Um alto pensamento político?...
O sr. Presidente do Ministério acode:
– Pelo pouco que eu pessoalmente
conheço, o pensamento político do Sr. D. Manuel girou sempre à volta de três
pontos fundamentais: 1.º a liberdade e a absoluta independência de Portugal;
2.º a aliança inglesa como base da nossa política externa; 3.º a unidade da
Nação a sobrepor a todas as divisões e a todos os interesses, sendo caso disso,
a própria Nação[17].
E a seguir:
– Ora, não por casualidade, mas pela
mesma compreensão das necessidades políticas nacionais, a Ditadura tem
justamente tomado idêntica posição. Julgando-a perfeitamente compatível com as
melhores relações de amizade na península Ibérica, a Ditadura pretende manter
bem viva na consciência de todos os portugueses a inequívoca independência da
Nação, que é, sem dúvida, uma das maiores heranças que devemos aos nossos
antepassados e um dos factos políticos mais salientes e mais bem vincados na
história de todo o mundo. Por outro lado, todos os que têm reflectido
maduramente na situação portuguesa metropolitana e colonial e no sistema de
relações externas, que pode trazer maiores vantagens recíprocas para os estados
em causa, têm chegado à conclusão de que a aliança inglesa, fora de toda a
ideia sentimental ou de hábito historicamente adquirido, tem de ser o maior
ponto de apoio da nossa política internacional.
E acentua:
– Uma política mesquinha suporia
erradamente que a nossa desordem ou pobreza pode aproveitar a alguém. Mas toda
a valorização que a Ditadura faça de Portugal, pela ordem, pela boa
administração, pelo desenvolvimento económico, tenderá fatalmente a tornar mais
útil essa aliança. Finalmente, os Governos da Ditadura, que receberam do
Exército o mandato imperativo de fazer exclusivamente política nacional, pondo
a Nação acima dos grupos e das facções, tiveram por parte do Sr. D. Manuel a actuação,
porventura menos conveniente para os seus interesses de rei, mas altamente
patriótica, no sentido da união de todos os portugueses.
Os exemplos da história – Uma ferida que vai sarar – A união de todos os
portugueses em benefício da Pátria
Uma pequena interrogação e o sr. dr.
Oliveira Salazar salienta:
– São numerosos, na história, os
exemplos de grandes homens que, exilados por infelicidades políticas, chegaram
a amaldiçoar a pátria que os baniu. Mas aqueles que, como o Sr. D. Manuel,
foram expulsos, sem culpa, da sua pátria e, apesar disso, continuaram a amá-la
e a prestar-lhe serviços, são ainda maiores do que os grandes.
E esta judiciosa observação que
encerra um alto conceito:
– Se nós queremos fazer a reeducação
deste povo com sentimentos dignos dele, não devemos furtar à sua consideração
os maiores exemplos de civismo, de patriotismo e de elegância moral. Que grande
exemplo, pois, para muitos de nós, a vida do rei defunto no seu exílio!...
– Foram, portanto, sr. presidente,
todas estas considerações... – íamos a atalhar.
– Foram todas estas considerações,
que lhe estou reproduzindo, que pesaram sobre o espírito do Governo e o levaram
a promover a trasladação do Sr. D. Manuel opara a terra portuguesa, e as
exéquias fúnebres nacionais, que hão-de realizar-se em S. Vicente...
– Onde o corpo do último rei de
Portugal ficará depositado?...
– Evidentemente, pois é esse o lugar
que lhe compete.
E, a concluir, o chefe do Governo,
sem de algum modo alterar o ritmo da conversa – da conversa de que extraímos
esta entrevista –, falando no mesmo tom, inalterável e imperturbável,
sintetiza, assim, o seu próprio pensamento político – de política nacional:
– Em 1910 abriu-se uma ferida num
sector da família portuguesa. A República era por essência incompatível com a
pessoa do rei. Passaram já sobre o novo caminho, por onde a Nação foi
conduzindo os seus destinos, mais de vinte anos. O cadáver do rei deposto volta
agora, por nossas mãos, à Pátria comum.
E a rematar:
– Quem nos diz que este facto, que da
nossa parte, da parte do Governo, não tem intuitos reservados, não sarará
aquela ferida e não promoverá uma união mais íntima de todos os portugueses,
fechando definitivamente o ciclo das convulsões, em benefício da Pátria?...
[Entrevista assinada por Armando
Boaventura.]
[1]
Diário de Notícias de 19 a 24 de
Dezembro de 1932. Na edição de 18 de Dezembro do mesmo jornal fora publicado o
texto de António Ferro que serviu de introdução às entrevistas.
[3] As
peças desta polémica de bastidores acham-se no Arquivo Salazar, CO/PC-10-A, pasta
2, 6ª subd.
[4] Alberto Pena Rodríguez, El Estado Novo de Oliveira Salazar y la
Guerra Civil Española: Información, prensa y propaganda (1936-1939),
Universidad Complutense de Madrid, 1997, p. 314-315.
[5] Diário da Noite (Rio de Janeiro), 4 de
Agosto de 1941, p. 1. A notícia relatava essencialmente o facto de Armando Boaventura,
chegado há oito dias ao Brasil na "embaixada de António Ferro" (sic),
ter ganho a lotaria do Grande Prémio Brasil desse ano, no valor de mil contos
de réis, uma fortuna na época.
[6]
“Os homens são outros, o governo é o mesmo”, em A. O. Salazar, Discursos, Coimbra Editora, 1935, pp.
153-156.
[7]
Sobre a génese da Constituição de 1933, ver António Araújo, A Lei de Salazar, Coimbra: Tenacitas,
2007.
[8]
Vejam-se, a este propósito, vários episódios relatados no diário íntimo do então
chefe de gabinete de Salazar, Antero Leal Marques (Fátima Patriarca, "«Diário»
de Leal Marques sobre a formação do primeiro governo de Salazar –
apresentação", Análise Social,
n.º 178 (2006).
[9]
Idem, pp. 199-204.
[10]
Antero Leal Marques foi chefe de gabinete do ministro das Finanças, Salazar, de
1928 até 1935, passando então a exercer essas funções junto do presidente do
ministério.
[11] Fátima
Patriarca, op. cit., pp. 210-211. Avelino Quirino de Jesus (1865-1935) esteve
envolvido na redacção do Acto Colonial (1930) e do projecto de Constituição (1932),
cujos primeiros esboços foram da sua autoria.
[12] A
primeira peça jornalística, uma entrevista com o conselheiro Martins de
Carvalho, consultor jurídico do rei exilado, foi publicada logo a 3 de Julho no
Diário de Lisboa (p. 6). Este mesmo
jornal publicaria a 4 de Julho (p. 5) uma entrevista com o administrador dos
bens da Casa de Bragança, Eduardo Fernandes de Oliveira e, nos dias e semanas
seguintes, uma série de notícias, depoimentos e posições sobre o tema,
inclusive a do próprio director do jornal.
[13]
Em Novembro de 1933 um decreto-lei instituiu a Fundação da Casa de Bragança,
que ficava detentora da maioria dos bens móveis e imóveis da dita Casa, aos
quais a viúva e a mãe de D. Manuel declaravam renunciar, nos termos de um
entendimento havido com o governo português. Certos meios monárquicos viram
nessa solução um "confisco".
[14] Informação dada pelo Diário de Lisboa de 7 de Julho de 1932, p. 5.
[15]
Fátima Patriarca, op. cit., p. 210.
José Barreto
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Muito obrigada pela oportunidade de conhecer estes textos e pelos seus comentários.
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