sexta-feira, 11 de maio de 2018

As primeiras entrevistas de Salazar como chefe do governo.

 
 
As primeiras entrevistas de Salazar como chefe do governo
 
 
Nas semanas que se seguiram à sua tomada de posse, a 5 de Julho de 1932, como presidente do ministério, Salazar deu duas entrevistas ao Diário de Notícias, na pessoa do seu chefe de redacção Armando Boaventura, um jornalista monárquico, assumido defensor da Ditadura e simpatizante dos regimes autoritários. Essas duas entrevistas, publicadas a 12 e 25 de Julho (aqui transcritas nos apêndices 2 e 3) foram as primeiras concedidas pelo novo chefe do governo, que, diga-se, já tinha fama de pouco propenso a conversar com jornalistas. Em 1926, no dia em que pela primeira vez ia tomar posse da pasta das Finanças num governo da Ditadura Militar, Salazar negara-se a prestar declarações a um repórter do Diário de Lisboa. Apanhado por este no comboio na estação de Entre Campos, o professor coimbrão esquivou-se a responder às suas perguntas até à estação do Rossio. “Não tenho programa” e "Os senhores jornalistas são terríveis" – foram as frases mais sumarentas que foi capaz de dizer. A curiosidade, explicou-lhe o entrevistador, não era dele, mas de seis milhões de pessoas que aguardavam uma solução para os problemas nacionais. O jornal reproduziu assim mesmo a magra entrevista e comentou-a com um humor ainda permitido pela Censura, aludindo à anedota do papagaio que “não fala, mas pensa” (apêndice 1).
Em Novembro-Dezembro de 1932, quatro meses depois das declarações prestadas a Armando Boaventura, Salazar concederia uma série de entrevistas ao repórter António Ferro, publicadas em sucessivos números do Diário de Notícias[1] e reunidas depois no livro Salazar: o homem e a sua obra (1933). As declarações de Salazar a António Ferro tinham muito mais o cariz de autênticas entrevistas do que as prestadas pelo ditador a Boaventura, o qual se tinha praticamente limitado a recolher o texto previamente escrito e lido diante dele pelo novo chefe do governo. Por timidez ou para não ter que responder a perguntas incómodas ou ver as suas palavras deturpadas, Salazar parecia disposto a manter o hábito de não conversar com jornalistas nem falar de improviso. António Ferro venceria até certo ponto essa relutância do ditador, tirando-o habilmente do seu recato e persuadindo-o a expor as suas ideias oralmente, de forma dialogal – ainda que as entrevistas em causa só tivessem sido publicadas após a minuciosa revisão e as emendas do governante. Na década de 1930, Salazar daria ainda algumas raras entrevistas a jornalistas portugueses, duas novamente a António Ferro (1933 e 1938) e duas a Costa Brochado, para o semanário A Verdade (1935). De futuro, porém, o ditador só daria entrevistas a jornalistas estrangeiros, nunca tendo explicado a razão de semelhante discriminação, por ele mantida ostensivamente durante trinta anos. As ideias e posições do ditador destinadas ao público português foram, assim, sistematicamente fixadas pela palavra escrita: discursos sempre lidos, as célebres "notas oficiosas" enviadas para a imprensa, alguns raros prefácios em livros e pouco mais. Nos anos finais do governo de Salazar, o volume Entrevistas 1960-1966 (Coimbra Editora, 1967) continha 14 entrevistas concedidas exclusivamente a jornalistas estrangeiros.
 
Armando Boaventura e as suas turvas relações com António Ferro
O jornalista Armando Ferraz de Boaventura (1890-1959) trabalhou na imprensa lisboeta nas décadas de 1920 e 1930. Tendo chefiado a redacção do Diário de Notícias, onde até 1933 teve Ferro como colega, e sido correspondente de guerra em Espanha entre 1937 e 1939, terminou a sua carreira profissional como adido de imprensa na embaixada de Portugal no Brasil, na década de 1940. Foi também desenhador e caricaturista de algum mérito, ilustrando por vezes as suas próprias reportagens. Eis um seu auto-retrato, possivelmente da década de 1950.[2]
 


 
Como combatente monárquico, esteve envolvido na Monarquia do Norte, em 1919, após o que se exilou em Espanha. Regressado a Portugal em 1921, foi jornalista do diário católico e monárquico A Época, passando depois para o Diário de Notícias, onde ascenderia a chefe de redacção, não sem antes ter colaborado no lançamento do Diário da Manhã (1931), órgão da União Nacional. Como repórter internacional do Diário de Notícias, entrevistou, entre outros, Mussolini (1925), Hitler (1935) e Franco (1936). Sabemos que António Ferro, igualmente com prática de repórter internacional, entrevistou Mussolini (1923, 1926 e 1934) e Hitler (1930), mas não Franco. Dado o entusiástico apoio de Armando Boaventura às hostes nacionalistas durante a guerra civil de Espanha, onde foi correspondente de guerra, pôde entrevistar Franco uma segunda vez em 1938, desta vez para O Século. Boaventura deixara o Diário de Notícias em 1937, assumindo as funções de "agente" do governo de Salazar junto das hostes franquistas e, em 1939, de adido de imprensa da embaixada portuguesa em Madrid. Publicou, nesse período, o livro Madrid-Moscovo: da Ditadura à República e à Guerra Civil de Espanha (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1937), espelhando toda a sua devoção por Franco e também, obviamente, por Salazar.
Um episódio ainda praticamente desconhecido, de que aqui se dá conta, é o do conflito havido no princípio do ano de 1936 entre Armando Boaventura e António Ferro, antigos colegas do Diário de Notícias. Boaventura ainda se mantinha então como chefe de redação do jornal lisboeta, enquanto Ferro era, desde 1933, director do Secretariado de Propaganda Nacional, acumulando insolitamente esse cargo, desde 1934, com a presidência da direcção do Sindicato Nacional dos Jornalistas – criado ao abrigo das leis corporativistas, após a dissolução imposta ao Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa. Ora, Armando Boaventura recusou aderir ao novo sindicato, que, na sua opinião, fora organizado "sem a classe ser ouvida nem achada". O sindicato era uma "mentira" que não representava os "jornalistas de verdade". E contestava Ferro pessoalmente, acusando-o de ser presidente do sindicato apenas com 22 votos e com o fito de, por inerência, vir a ser procurador à Câmara Corporativa. Uma tal posição, expressa privadamente, mas vinda do chefe de redacção do primeiro diário do país, não podia deixar de causar forte abalo a António Ferro – tanto mais que o conflito foi seguido de perto pelo chefe do governo, que pôde ler a correspondência mutuamente acusatória trocada entre ambos, de que eles próprios lhe fizeram chegar cópias[3].
É possível que estas e outras posições de Armando Boaventura tenham contribuído para o facto de Salazar nunca mais lhe ter concedido entrevistas. Numa carta que em 1936 António Ferro enviou a Armando Boaventura, fazendo chegar cópia dela a Salazar, o director do SPN não se esqueceu de lembrar ao seu ex-colega do Diário de Notícias que em 1935 ele tinha subscrito uma petição de 200 jornalistas e escritores, endereçada ao presidente da Assembleia Nacional, pedindo o fim da censura, alinhando assim o seu nome com o de numerosos intelectuais oposicionistas. Perante essa posição colectiva dos intelectuais, António Ferro, na sua dupla qualidade de director da propaganda do regime e de líder sindical dos jornalistas, veio a terreiro defender a manutenção da censura, com um discurso violento pronunciado num jantar de 150 “intelectuais nacionalistas”, em 24 de Fevereiro de 1935, na Estufa Fria. As relações entre Boaventura e Ferro seriam de algum modo apaziguadas ainda em 1936, como parece testemunhar o facto de o director do SPN ter intercedido junto do general Franco para que este concedesse a Armando Boaventura a entrevista realizada em fins de Dezembro desse ano[4]. Anos mais tarde, quando em Julho de 1941 foi colocado como adido de imprensa na embaixada do Rio de Janeiro, Boaventura viajou para o Brasil acompanhado por Ferro, que iniciava então um périplo pelo continente americano[5]. Nenhum destes factos prova, naturalmente, que as relações entre os dois fossem já boas, ainda que estivessem normalizadas. Contestado por jornalistas de várias tendências, Ferro tinha abandonado a presidência do Sindicato Nacional dos Jornalistas em Março de 1937. Quanto a Armando Boaventura, parece ter-se mantido fiel à sua recusa de aderir à “mentira” do Sindicato Nacional dos Jornalistas. Pelo menos, nunca fez parte de qualquer dos seus corpos directivos.
 
       As entrevistas de Salazar a Armando Boaventura (1932)
 
 
As duas entrevistas concedidas em Julho de 1932 pelo novo chefe de governo ao chefe de redacção do Diário de Notícias – não reproduzidas desde então em qualquer publicação e que adiante se transcrevem integralmente – têm manifesto interesse histórico, tanto pelas matérias abordadas como pelo momento em que ocorreram.
Ao tomar posse como presidente do ministério, no dia 5 desse mês, Salazar tinha pronunciado um curto discurso de circunstância, falando em termos muito vagos dos propósitos do seu governo[6].  Optara por não fazer uma “declaração ministerial à moda antiga”, pretendendo sobretudo passar a ideia de que “os homens são outros, mas o governo é o mesmo”. Era importante declarar essa ideia de continuidade, porque o processo de formação do seu governo fora tudo menos pacífico ou consensual entre as facções apoiantes da ditadura. Comparadas com o discurso da tomada de posse, as declarações ou “entrevistas” de Salazar a Armando Boaventura, muito especialmente as publicadas a 12 de Julho, foram incomparavelmente mais esclarecedoras das suas intenções relativamente a questões políticas concretas e essenciais.
Formalmente, essas entrevistas (assim designadas pelo jornal) enfermam ainda do antigo figurino que Salazar impunha às suas relações com os jornalistas, lendo-lhes declarações previamente escritas. Todavia, Armando Boaventura decidiu publicar essas declarações no jornal dando-lhes a forma de diálogo, que de facto não existiu. O resultado dessa operação de copy desk foi bastante medíocre, como se poderá constatar.
 
Salazar discursando na tomada de posse do seu governo, a 5 de Julho de 1932.
 
A primeira entrevista, publicada a 12 de Julho (anexo 2), dedicou-a Salazar a esclarecer os pontos cruciais da política que o governo que chefiava ia pôr em prática, bem como a tentar desfazer "confusões" que ainda sobreviveriam, alimentadas mesmo em sectores apoiantes da Ditadura Militar. Uma dessas alegadas confusões relacionava-se com o processo de constitucionalização do regime. Salazar e um grupo de próximos colaboradores tinham elaborado nesse ano de 1932, com o general Domingos Oliveira ainda como presidente do ministério, um projecto de Constituição que, depois de debatido pelo governo e pelo Conselho Político Nacional, foi publicado a 28 de Maio, para "debate público" (a versão final, a submeter a plebiscito, só seria publicada no Diário do Governo de 22 de Fevereiro de 1933)[7]. Na sua primeira entrevista, Salazar quis transmitir a Armando Boaventura a ideia de que a constitucionalização da Ditadura, dando origem ao Estado Novo, não iria ser, como "muitos" pensariam ou desejariam, um regresso à "normalidade constitucional" do passado, mas sim a entrada num período completamente novo, incompatível com o sistema de partidos. O estado de excepção instaurado pelos militares em 28 de Maio de 1926 estava, pois, a chegar ao seu termo, mas a Ditadura – que, na opinião de Salazar, havia "banido" definitivamente a política partidária – estava para ficar, ainda que sob uma forma constitucionalizada.
Outro ponto a destacar da primeira entrevista relacionava-se com o futuro papel político dos "chefes militares". O governo em que Salazar foi empossado em Julho de 1932 era o primeiro, desde 1926, chefiado por um civil, e com apenas dois militares, nas pastas da Guerra e Marinha, enquanto o governo imediatamente anterior contava seis militares. Com a constitucionalização da Ditadura, os chefes militares iriam pois ficar mais arredados da "política activa", a qual, segundo Salazar, não era a sua "função própria". Excepção notória era o caso do chefe de Estado, o general Óscar Carmona, vértice formal do organigrama do poder ditatorial. Em todo o caso, advertia Salazar, a "disciplina militar" deveria continuar na base do Estado, garantindo os militares, com a sua "vigilância e firmeza" o "renascimento pátrio". Por detrás destas considerações, entreveem-se as grandes dificuldades que Salazar teve de enfrentar na primeira semana de Julho, quando formava o seu governo, num processo em que foi submetido a fortes pressões e até ameaças por parte de alguns sectores militares. Foi-lhe particularmente difícil afastar da pasta da Guerra o anterior ministro, coronel Lopes Mateus, que fazia finca-pé em continuar no governo, apoiado por comandantes de várias unidades e por um grupo de oficiais de baixa patente, tenentes e capitães já conhecidos pela sua indisciplina e pelo seu papel central em sucessivas crises da Ditadura Militar[8]. Nos dias que antecederam a tomada de posse do governo, perante a "crise" que se desenhava nos meios militares descontentes com o elenco governamental que se preparava, Salazar e até Carmona chegaram a ameaçar repetidamente com a sua própria demissão. O novo ministro da Guerra, general Daniel Rodrigues de Sousa, acabou, ainda assim, por ser praticamente imposto a Salazar pelos chefes militares de Lisboa, concertados com o ministro deposto[9]. Um outro "conjurado", o major Luís Alberto de Oliveira, sucederia como ministro da Guerra em 1933. E o regresso dos militares aos quartéis foi lento: em 1933-1936, o capitão Antonino Gomes Pereira e o tenente-coronel Henrique Linhares de Lima sucederam ao civil Albino dos Reis na pasta do Interior.
Sabe-se que o texto desta primeira "entrevista" a Armando Boaventura foi redigido conjuntamente por Salazar e o seu chefe de gabinete, Antero Leal Marques[10], ao longo do dia 9 de Julho e na manhã seguinte. Apesar das interrupções a que foram forçados, a demora espelha o extremo cuidado posto na preparação do texto. Na opinião do chefe de gabinete, de pouco lhes tinham servido umas notas escritas e fornecidas para aquele efeito por Quirino de Jesus, dado o "tom irritante" e as "inclinações ultraconservadoras" do seu autor, um conselheiro que começava a cair em desgraça junto do ditador[11]. Destas circunstâncias ressalta a imagem de alguma insegurança ou dependência de Salazar nos seus primeiros anos de governo, que de futuro desaparecerá.   
A segunda entrevista concedida por Salazar a Armando Boaventura, publicada a 25 de Julho (anexo 3), foi suscitada pela questão da trasladação para Portugal dos restos mortais de D. Manuel de Bragança, que vivera exilado em Inglaterra desde 1910. A tão curta distância da primeira, apenas 13 dias, esta segunda entrevista só poderia ter sido motivada por fortes razões, ainda que circunstanciais.
A morte do último rei português, sem descendência, dera-se inesperadamente a 2 de Julho, quando ainda estavam em curso os preparativos para a posse de Salazar como chefe do governo, cargo para o qual fora indigitado por Carmona a 28 de Junho. A coincidência da morte do rei exilado com a ascensão de Salazar à chefia do governo proporcionava a este a oportunidade de, no início da sua governação, ter um gesto apaziguador para com as impacientes hostes monárquicas, que estavam a ver as suas esperanças restauracionistas defraudadas pelo projecto constitucional. Mais recentemente, os monárquicos haviam constatado, com visível desgosto, que no elenco governamental de Salazar dominavam em absoluto os elementos republicanos. Por outro lado, com a morte de D. Manuel, também a questão do destino a dar aos bens da Casa de Bragança passara para primeiro plano, com um debate sobre esse tema a iniciar-se dias depois na imprensa[12] – ocasião para alguns relembrarem a extinção dos vínculos da Monarquia pela República e para defenderem que os bens da coroa pertenciam à nação. Com a questão dos bens relacionava-se ainda a posição do novo pretendente, D. Duarte Nuno de Bragança, que continuava impedido de entrar no país e para quem os monárquicos esperavam agora um gesto de reconhecimento por parte do poder.  
Tomando, nessa conjuntura, a decisão de proceder à trasladação para Portugal do corpo de D. Manuel e à realização de exéquias nacionais, Salazar optou por um gesto simbólico que não podia deixar de agradar aos monárquicos, sem ter de lhes fazer qualquer cedência em matéria propriamente política, deixando também a delicada questão dos bens da Casa de Bragança para ulterior resolução[13]. As palavras elogiosas do ditador, na sua entrevista ao Diário de Notícias, para com o monarca defunto serviram-lhe para reforçar esse gesto simbólico, mas não deixou também de tentar tranquilizar os republicanos quanto a hipotéticos "intuitos reservados" da homenagem fúnebre ao rei deposto – um acto que, segundo disse, visaria apenas contribuir para sarar a "ferida" aberta em 1910 no seio da "família portuguesa".
Diga-se que a primeira proposta no sentido da trasladação dos restos mortais de D. Manuel e da deposição dos mesmos no Panteão de S. Vicente surgira, logo no dia 3 de Julho, da pena republicana de Joaquim Manso, director do Diário de Lisboa, em editorial ocupando toda a primeira página do jornal (imagem seguinte).
 
 
 
No dia seguinte à morte de D. Manuel II, o Diário de Lisboa (3 de Julho de 1932, p. 1) propôs a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão de S. Vicente, acreditando que isso não repugnaria ao "espírito republicano da Nação". (Fonte: Fundação Mário Soares.)
 
Dias depois, o próprio jornal República declarou nada ter a opor a tal proposta[14]. A 8 de Julho, o presidente Carmona, consultado por Salazar, disse-lhe que achava a trasladação um "gesto magnânimo", de que nada haveria a recear[15]. Nesse mesmo dia, o conselho de ministros, o primeiro reunido sob a chefia de Salazar, decidiu pela trasladação, transpirando essa informação para a imprensa do dia seguinte (jornal O Século), que a Censura deixou passar. Enfim, a 3 de Agosto de 1932, pôde ver-se o governo em peso na igreja de S. Vicente de Fora, com o presidente Carmona e o cardeal Cerejeira a dominarem a cerimónia dos seus cadeirões, prestando solene homenagem ao monarca deposto pela República, sem que a maioria dos republicanos visse nisso motivo para alarme (imagem seguinte).  

 



 
Exéquias de D. Manuel II em S. Vicente de Fora, a 3 de Agosto de 1932. Assistiram o presidente Carmona, o cardeal Cerejeira e Salazar com todo o seu governo. (Foto: Arquivo Municipal de Lisboa).

 
APÊNDICES
 
1. Entrevista de Oliveira Salazar a jornalista anónimo do Diário de Lisboa (12 de Junho de 1926, p. 8), no dia em que tomou posse como ministro das Finanças.
 


Fonte: Fundação Mário Soares.


2. Entrevista de Salazar ao Diário de Notícias, 12 de Julho de 1932, p. 1.
 
A PRIMEIRA ENTREVISTA
A ORIENTAÇÃO POLÍTICA DO NOVO GOVERNO
exposta pelo presidente do Ministério, sr. Dr. Oliveira Salazar
 
Confusões e perturbações... – Dos objectivos da Ditadura – A União Nacional – O projecto de Constituição – O Exército e a atitude política – Plano de realizações – Mudança radical do regime de trabalho – Confiança no País
 
Logo que foi encarregado pelo Chefe de Estado de organizar o actual Ministério, o sr. dr. Oliveira Salazar, procurado pelo redactor do Diário de Notícias, fez-lhe esta promessa:
– A primeira entrevista reservá-la-ei para o seu jornal.
Vão decorridos mais de oito dias e, de facto, o ilustre chefe do Governo, pois só agora se proporcionou ensejo – num parêntese aberto às múltiplas ocupações que o assoberbam – convida-nos pelo telefone a irmos a sua casa.
– Prometi-lhe – diz-nos – uma entrevista, mas não sei se entrevista poderá e deverá chamar-se a uma exposição que, por intermédio do Diário de Notícias, entendo dever fazer ao País.
E logo acrescenta:
– Estou acostumado a escrever tudo quanto destino a público. Por isso, não faço discursos de improviso, nem exponho os meus pensamentos pela palavra falada. Redijo o que quero dizer e leio. Através da minha vida pública tem sido este o meu sistema.
– Quer V. Ex.ª significar?
– Que o que vou dizer-lhe consta duma exposição escrita que vou ler-lhe...
– O nosso interesse, sr. presidente – acudimos pressurosos – é reproduzir as declarações de V. Ex.ª.
– Oiça então.
E fielmente reproduzimos:
– No decurso dos últimos meses, têm-se estabelecido grandes confusões a respeito das ideias do Governo da Ditadura, da sua finalidade, da sua evolução e da preparação da futura ordem constitucional. Sucumbiu principalmente a essas confusões o Ministério anterior e formou-se um pouco no meio delas o actual Governo. No fundo, tudo tem girado à volta de interpretações erróneas dadas por muitos a certos factos políticos. Daqui têm resultado, pelas circunstâncias especiais da política portuguesa, perturbações graves.
Tenho, como chefe do Governo, necessidade de esclarecer, se não de fixar, por uma vez, todos os pontos a respeito dos quais possa haver qualquer dúvida no espírito dos amigos da situação.
 
O movimento de 28 de Maio e os seus objectivos
 
– Esclarecimentos de carácter político?...
– Evidentemente.
E expõe:
– O programa político geral da Ditadura, no qual se deve integrar o deste governo, já tem sido por mais duma vez claramente definido. São os seguintes os seus pontos fundamentais:
1.º O movimento do 28 de Maio, que implantou a Ditadura Nacional, teve por fim levantar as condições materiais e morais de Portugal e garantir a este o seu destino histórico, pela reorganização política, económica e social e pela constituição dum Estado forte que assegure a realização daqueles fins, respeitando a tradição, a ordem e as liberdades naturalmente reconhecidas aos indivíduos e grupos sociais.
2.º Nessa ordem de ideias e em inteira subordinação a esses princípios, a Ditadura realizou muitas das suas reformas, publicou o Acto Colonial, fundou e difundiu pelo País a União Nacional e elaborou o projecto de Constituição que tem estado sendo discutido.
3.º A União Nacional, como força civil que se criou para apoiar a Ditadura e a sucessão que esta prepare, é uma associação independente do Estado e sem carácter de partido, destinada a assegurar pela colaboração dos seus filiados, sem distinção de confissão religiosa ou de escola política, mas com pleno respeito e acatamento das instituições vigentes, que aqueles por isso não poderão hostilizar, a realização e a defesa dos princípios consignados nos seus estatutos, princípios que são essencialmente os de direito público e de ponderado nacionalismo desenvolvidos na Constituição projectada.
4.º A União Nacional é incompatível com o espírito de partido e de facção política, julgando-se esse espírito contrário ao princípio da unidade moral da Nação e à natureza e fins do Estado.
5.º Como foi sempre afirmado, é norma superior da política da Ditadura serem aproveitados, no máximo possível e do modo mais conveniente, os melhores valores nacionais, por motivo de salvação pública.
 
A União Nacional e sua organização – Recrutamento de valores nacionais
 
– Desses princípios fundamentais que V. Ex.ª acaba de expor?...
– Destes princípios fundamentais resulta, por imposição lógica e por necessidade política, que devem ser atraídos para o nosso campo os homens sérios e úteis, quer os sempre afastados de qualquer actuação política, quer mesmo os que hajam militado em partidos, desde que venham para nós com intenções rectas e aceitação sincera da nossa doutrina.
– Pessoalmente?...
– Pessoalmente, tenho a convicção de que a maior parte dos homens de valor que serviram as altas posições dos partidos políticos se devem considerar infelizmente perdidos para a obra de reconstrução nacional empreendida pela Ditadura. A educação das nossas escolas é demasiado abstracta para que as realidades da vida tenham sobre os homens que aderiram a um certo sistema uma acção eficaz. Nós ficamos, em geral, agarrados à doutrina política em que o nosso espírito se formou, e é raro aparecerem indivíduos que vão constantemente comparando, corrigindo ou rectificando, com o auxílio dos factos, a sua posição mental.
E acentua:
– O mundo atravessa um momento de grande transformação política, económica e social e não podem ter-se esperanças demasiadas de que venham trabalhar, nos quadros novos impostos pelas circunstâncias, muitos valores de antiga formação.
– Muitos valores... Não quer dizer todos os valores de antiga formação... – objectámos.
– Evidentemente, sendo certo, como é, que, entre os antigos homens públicos, se encontram muitos cujas afinidades doutrinais com o nacionalismo, que está na base do movimento de 28 de Maio, os poderão trazer francamente para a Ditadura.
E, completando o seu pensamento:
– Sentimos que, em relação a alguns, as condições do momento os convidarão naturalmente a fazê-lo, desde que se lhes não pede o sacrifício da sua opinião pessoal acerca da melhor forma de governo.
Prosseguindo:
– Seja, porém, como for, nós temos de, mais uma vez, declarar que a União Nacional é um organismo permanentemente aberto a todos os portugueses, não como um centro de reunião de mentalidades ou processos divergentes, mas como um ponto de convergência de todos os que estejam convencidos, ou venham a convencer-se, da superioridade dos nossos processos e da lisura dos fins que pretendemos atingir.
– Essas adesões?...
– É evidente que tais adesões não têm que ser promovidas com precipitação, de modo que alguma vez a nossa causa fique em perigo ou haja fundados receios de perturbações e atritos. Nem mesmo os que venham para a União Nacional podem ter a pretensão de ocupar, de entrada, os lugares de responsabilidade, de direcção ou de mando, sem que, através do tempo, hajam dado provas decisivas da sua adesão completa e da sua lealdade. Por sua vez, os que aceitem a sua nomeação ou eleição para cargos com funções dirigentes não podem mais dizer que não estão ou não ficam ligados à União Nacional e ao seu programa. Isso mesmo lhes é imposto pela sua dignidade moral.
E declara:
– Em qualquer caso, ainda que sejam bastantes os valores aproveitáveis estranhos à Ditadura e que nela ingressem, nem por isso se poderá dispensar a obra de preparação do pessoal necessário à administração do País e à governação pública. E deve ser esta uma das maiores preocupações do Governo. Felizmente nós estamos assistindo a uma verdadeira florescência nacionalista, nos meios de alta cultura, nas escolas, nas oficinas, e temos aí o viveiro para a formação e recrutamento dos novos quadros.
 
O projecto de Constituição e a chamada "normalidade constitucional"
 
– Sobre a futura Constituição, sr. presidente?
– Posta de lado pelo próprio facto revolucionário a Constituição de 1911, ao menos na parte que respeita à organização do Estado, todos compreendem que se impunha a necessidade de ir arquitectando essa organização, ou por meio de diplomas independentes emanados do Governo, ou por meio de um novo Estatuto Constitucional.
Foi nesta segunda ordem de ideias que o Governo anterior preparou o projecto de Constituição, que tem sido publicamente discutido. Este Governo recebeu uma espécie de mandato expresso de prosseguir na obra de constitucionalização, sem prejuízo das garantias ou cautelas que devessem rodear o funcionamento do Estado Novo.
– Na opinião e V. Ex.ª o referido projecto de Constituição?...
– Incluiu tudo o que na ordem política, administrativa, económica, moral, social e colonial é básico para a Ditadura, para a sucessão constitucional, que ela prepara e institui, e para a União Nacional na obra de transformação do estado e do País. Estão aí consubstanciados os objectivos fundamentais dos Governos da Ditadura e, portanto, do actual, porque afinal resumem os da Nação portuguesa.
E o chefe do Governo acrescenta:
– As circunstâncias políticas obrigam-nos a adiar por algum tempo a entrada em vigor desse diploma, que tem de ser precedido duma revisão cuidadosa de todos os pontos que têm merecido reparo maior da opinião pública. Aceitando o Governo este projecto e declarando a sua concordância com os princípios nele consignados, nada mais é preciso para se saberem as grandes linhas da sua orientação política.
Muita gente supõe erradamente que a entrada em vigor da nova Constituição quer dizer o mesmo que a chamada normalidade constitucional, no sentido de regresso ao statu quo ante e ao regime partidarista banido pela Ditadura. Não só há muitos trabalhos ainda a realizar para a execução integral do sistema, como é preciso esperar da previdência dos dirigentes que todas as leis complementares e inspiradas na Constituição evitem o regresso a uma ordem política diferente daquela a que se aspira.
E, a seguir:
– Além de dever dar andamento ao projecto de Constituição, o Governo tem, por consequência, de elaborar paralelamente o Código Administrativo, o Código Eleitoral, os decretos orgânicos das corporações e os restantes diplomas exigidos pelo novo direito público e de organizar, conforme os estatutos definitivos, a União Nacional, dando-lhe incremento, de modo que, quando for a hora própria, se proceda à eleição dos corpos administrativos e da Assembleia Nacional e à formação da Câmara Corporativa.
E mais declara:
– Além da defesa intransigente da Situação e da constitucionalização do Estado, vagarosa, bem entendido, mas progressiva, o Governo não fará na ordem interna nenhuma outra política. Parece que atravessamos um momento em que está outra vez em moda a exaltação dos factores políticos, e quem sabe se muitos dos que pedem agora política, sempre política, só política, política em todas as pastas, não são os mesmos que, anos atrás, pediam a neutralização de alguns ministérios, por não poder já o País comportar a política que neles se fazia...
 
O Exército e a política
 
Continuando, o sr. dr. Oliveira Salazar alude ao Exército, nestes termos:
– O Exército é, por sua natureza, a garantia da integridade nacional e da ordem pública. Nunca foi nem pode ser outra a sua função própria, e esta é, por definição, incompatível com a política activa. Não foi com prejuízo destas ideias, antes no cumprimento da alta missão que lhe está confiada, que o Exército, interpretando a vontade geral do País, interveio, em nome da salvação pública, para instituir uma Ditadura nacional que extinguisse as desordens das facções e a indisciplina geral, opostas à necessidade de reorganização de Portugal e do seu prestígio. Desde então, tem dominado todas as revoltas, garantiu a eleição do Presidente da República e a acção dos ministérios livremente nomeados por ele.
E acrescenta:
– Mas, cumprindo este dever, que assumiu carácter excepcional em virtude das circunstâncias, nem por isso o Exército deixou de ser o que é próprio da sua constituição.
O Presidente da República, através de todo este período, consultou, várias vezes e em momentos excepcionais, os chefes militares. Era natural o facto pela própria origem da Ditadura e pelos fins que pretende atingir. É mesmo possível que ainda o tenha de fazer, se necessidades públicas anormais acaso o indicarem. Mas, normalmente, as coisas passam-se e vão passar-se conforme as normas correntes da política. Quem decide e decidirá sempre é o Chefe do Estado e o Governo por ele nomeado livremente.
O Presidente da República tem, hoje, como auxiliar, o Conselho Político Nacional, que, amanhã, será substituído pelo Conselho de Estado. Quer isto dizer que pela evolução natural da Ditadura e da sua obra de reorganização política, vamos seguindo para o estabelecimento e funcionamento do Estado Novo, não se podendo perder de vista que está sempre na base do Estado a disciplina do Exército, que foi a fonte do movimento de 28 de Maio e tem de ser, pela sua vigilância e firmeza, a garantia forte e consciente do renascimento pátrio.
 
Situação clara – Mudança radical do sistema de trabalho
 
O chefe do Governo abre um parêntesis para nos dizer:
– Agora vou entrar no capítulo a que chamarei Situação clara.
E ditou:
– Depois de tudo o que fica dito, seria absolutamente incompreensível que persistissem ou voltassem as confusões a que no princípio me referi. Aos homens responsáveis pela direcção da Ditadura pertence cumprir as suas obrigações com lealdade. Sobre os que a acompanham e a defendem impende o dever de confiarem nos compromissos morais que os primeiros tomaram perante a Nação. Bem sei que nenhum Governo poderá fugir de todo à atmosfera viciosa de suspeitas e boatos contra as suas boas intenções na marcha prudente para a futura sucessão constitucional. Mas compete aos espíritos mais reflectidos impedir, pela sua ponderação, que esses males tomem proporções perturbadoras, concorrendo para que haja serenidade nos juízos e correcção nas atitudes.
Uma vez definidos com clareza a orientação e os princípios do Governo, que não podem deixar dúvidas nos homens de intenções rectas, teremos de empregar todos os meios ao nosso alcance para evitar não só as perturbações de ordem, venham de que lado vierem, mas também que perdure a confusão que se estabeleceu na política portuguesa e que se reputa prejudicial à Ditadura e ao País.
E acrescentando:
– É possível que se modifique radicalmente a maneira de trabalhar do Governo, substituindo-se à ânsia reformadora, de que somos vulgarmente atacados, a resolução ordenada dos maiores problemas, e substituindo-se os frequentes conselhos de ministros (certamente de futuro destinados apenas a definir orientações gerais), pelas reuniões do chefe do Governo com os ministros por cujas pastas devem ser tratadas as questões. Não deverá mesmo estranhar-se que, não sendo de facto razoável exigir responsabilidades aos ministros em obra legislativa, que não é da sua especialidade, os próprios decretos com força de lei venham mesmo a ter apenas a assinatura do presidente do Ministério e dos ministros efectivamente responsáveis por eles. Haverá, nesta forma de trabalhar, economia de tempo e mais perfeita harmonia com as realidades da governação pública.
E a concluir, o sr. presidente do Ministério afirma:
– O Ministério sabe muito bem como são graves as dificuldades que pelas circunstâncias do País, e hoje ainda mais pelas da Europa e do resto do mundo, vai ter na política, na administração e na economia pública. Mas tem a certeza de que poderá completar os alicerces do Estado Novo e da reconstituição geral, desde que todos os grandes órgãos da Nação e este povo laborioso, paciente e bom lhe dêem apoio, segundo os ditames do seu patriotismo.
 
 
[Entrevista não assinada, da autoria de Armando Boaventura, como se depreende da seguinte.]
3. Entrevista de Salazar ao Diário de Notícias, 25 de Julho de 1932, p. 1.
 
 
UM CICLO QUE FINDA...
A TRASLADAÇÃO DE D. MANUEL II PARA O PANTEÃO DE S. VICENTE
E AS EXÉQUIAS FÚNEBRES NACIONAIS ORDENADAS PELO GOVERNO
 
O cadáver deve chegar a Lisboa em 2 de Agosto, a bordo de um navio inglês
_________
Nobres, claras e patrióticas declarações do presidente do Ministério, sr. dr. Oliveira Salazar
 
O chefe do governo é um homem – um homem novo – de atitudes claras e definidas, sabendo o que quer, qual o caminho a seguir, sem tergiversar, sem transigir, sem recuar. As suas declarações no acto de posse do Governo a que preside foram concretas – todo um plano de chefe de Governo, dum Governo constituído propositadamente para levar a cabo uma obra de reorganização política da sociedade portuguesa.
Quando fala ou escreve – e só fala para o público depois de reduzir a escrito o seu pensamento – não há uma palavra a mais ou a menos, mas, sim, as palavras precisas, que tudo dizem e tudo significam, quer se trate dum projecto de realizações, quer se trate duma solução de determinado problema...
Ouvimo-lo, há poucos dias, na sua primeira e sensacional entrevista – síntese perfeita do seu programa de Governo. E fomos, agora, de novo, ouvi-lo sobre um assunto palpitante., flagrante de oportunidade – a trasladação dos restos mortais do Sr. D. Manuel de Bragança, último rei de Portugal, a que se refere a nota oficiosa que adiante inserimos[16].
O sr. dr. Oliveira Salazar diz-nos:
– Sim. A trasladação dos restos mortais do Sr. D. Manuel está sendo tratada pelo Governo para data muito próxima.
– Ainda não fixada?
– É possível que esse acto e as exéquias nacionais se efectuem no próximo dia 2 de Agosto, trigésimo dia do falecimento.
 
A atitude da Inglaterra – As razões que determinaram o Governo a tomar a iniciativa da trasladação e de realizar as exéquias nacionais – D. Manuel de Bragança no exílio e o seu pensamento político
 
E o sr. dr. Oliveira Salazar esclarece:
– Precisamente agora, a Inglaterra, sabendo das intenções do Governo Português, acaba de pôr à nossa disposição um barco de guerra para transportar o cadáver até Lisboa. Traduz este oferecimento uma tal prova de amizade a Portugal e uma tão grande gentileza por parte do Governo inglês, que nós não vimos outra maneira de corresponder-lhes senão aceitando. Por esse motivo, não mandamos já a Inglaterra um navio nosso.
Inquirimos:
– As razões determinantes da iniciativa tomada pelo Governo da Ditadura sobre a trasladação do corpo do Sr. D. Manuel?
O ilustre chefe do Governo responde:
– Essas razões constam sucintamente da nota enviada, há dias, aos jornais, acerca da resolução tomada.
– Razões, aliás, muito sucintas, como V. Ex.ª confirma. Seria, pois, interessante dar maior desenvolvimento a essas razões...
O sr. dr. Oliveira Salazar anui, expondo:
– O Sr. D. Manuel pertence, de facto, à História e à Nação Portuguesa, e a não ser que a Família tivesse motivos para opor-se, qualquer Governo verdadeiramente nacional sentiria a obrigação de promover a trasladação do seu cadáver para a sua e nossa Pátria. Mas há mais...
– ?
– O Sr. D. Manuel reinou em Portugal quando muito novo ainda e em circunstâncias políticas extremamente desfavoráveis para que não contribuiu e de que veio a ser vítima. O maior interesse da sua personalidade está, precisamente, ligado ao seu tempo de exílio, como está ligada a esse período a sua mais benéfica acção a favor de Portugal.
E esta declaração:
– Pode, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, não haver documentação suficiente acerca dos altos serviços que o Sr. D. Manuel prestou à Pátria, mas não seria difícil, através da sua correspondência, reconstituir não só a história desses serviços, como o alto pensamento que os inspirava.
– Um alto pensamento político?...
O sr. Presidente do Ministério acode:
– Pelo pouco que eu pessoalmente conheço, o pensamento político do Sr. D. Manuel girou sempre à volta de três pontos fundamentais: 1.º a liberdade e a absoluta independência de Portugal; 2.º a aliança inglesa como base da nossa política externa; 3.º a unidade da Nação a sobrepor a todas as divisões e a todos os interesses, sendo caso disso, a própria Nação[17].
E a seguir:
– Ora, não por casualidade, mas pela mesma compreensão das necessidades políticas nacionais, a Ditadura tem justamente tomado idêntica posição. Julgando-a perfeitamente compatível com as melhores relações de amizade na península Ibérica, a Ditadura pretende manter bem viva na consciência de todos os portugueses a inequívoca independência da Nação, que é, sem dúvida, uma das maiores heranças que devemos aos nossos antepassados e um dos factos políticos mais salientes e mais bem vincados na história de todo o mundo. Por outro lado, todos os que têm reflectido maduramente na situação portuguesa metropolitana e colonial e no sistema de relações externas, que pode trazer maiores vantagens recíprocas para os estados em causa, têm chegado à conclusão de que a aliança inglesa, fora de toda a ideia sentimental ou de hábito historicamente adquirido, tem de ser o maior ponto de apoio da nossa política internacional.
E acentua:
– Uma política mesquinha suporia erradamente que a nossa desordem ou pobreza pode aproveitar a alguém. Mas toda a valorização que a Ditadura faça de Portugal, pela ordem, pela boa administração, pelo desenvolvimento económico, tenderá fatalmente a tornar mais útil essa aliança. Finalmente, os Governos da Ditadura, que receberam do Exército o mandato imperativo de fazer exclusivamente política nacional, pondo a Nação acima dos grupos e das facções, tiveram por parte do Sr. D. Manuel a actuação, porventura menos conveniente para os seus interesses de rei, mas altamente patriótica, no sentido da união de todos os portugueses.
 
Os exemplos da história – Uma ferida que vai sarar – A união de todos os portugueses em benefício da Pátria
 
Uma pequena interrogação e o sr. dr. Oliveira Salazar salienta:
– São numerosos, na história, os exemplos de grandes homens que, exilados por infelicidades políticas, chegaram a amaldiçoar a pátria que os baniu. Mas aqueles que, como o Sr. D. Manuel, foram expulsos, sem culpa, da sua pátria e, apesar disso, continuaram a amá-la e a prestar-lhe serviços, são ainda maiores do que os grandes.
E esta judiciosa observação que encerra um alto conceito:
– Se nós queremos fazer a reeducação deste povo com sentimentos dignos dele, não devemos furtar à sua consideração os maiores exemplos de civismo, de patriotismo e de elegância moral. Que grande exemplo, pois, para muitos de nós, a vida do rei defunto no seu exílio!...
– Foram, portanto, sr. presidente, todas estas considerações... – íamos a atalhar.
– Foram todas estas considerações, que lhe estou reproduzindo, que pesaram sobre o espírito do Governo e o levaram a promover a trasladação do Sr. D. Manuel opara a terra portuguesa, e as exéquias fúnebres nacionais, que hão-de realizar-se em S. Vicente...
– Onde o corpo do último rei de Portugal ficará depositado?...
– Evidentemente, pois é esse o lugar que lhe compete.
E, a concluir, o chefe do Governo, sem de algum modo alterar o ritmo da conversa – da conversa de que extraímos esta entrevista –, falando no mesmo tom, inalterável e imperturbável, sintetiza, assim, o seu próprio pensamento político – de política nacional:
– Em 1910 abriu-se uma ferida num sector da família portuguesa. A República era por essência incompatível com a pessoa do rei. Passaram já sobre o novo caminho, por onde a Nação foi conduzindo os seus destinos, mais de vinte anos. O cadáver do rei deposto volta agora, por nossas mãos, à Pátria comum.
E a rematar:
– Quem nos diz que este facto, que da nossa parte, da parte do Governo, não tem intuitos reservados, não sarará aquela ferida e não promoverá uma união mais íntima de todos os portugueses, fechando definitivamente o ciclo das convulsões, em benefício da Pátria?...
 
[Entrevista assinada por Armando Boaventura.]       
 
 






[1] Diário de Notícias de 19 a 24 de Dezembro de 1932. Na edição de 18 de Dezembro do mesmo jornal fora publicado o texto de António Ferro que serviu de introdução às entrevistas.


[2] Fonte: https://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt/219309.html

[3] As peças desta polémica de bastidores acham-se no Arquivo Salazar, CO/PC-10-A, pasta 2, 6ª subd.

[4] Alberto Pena Rodríguez, El Estado Novo de Oliveira Salazar y la Guerra Civil Española: Información, prensa y propaganda (1936-1939), Universidad Complutense de Madrid, 1997, p. 314-315.

[5] Diário da Noite (Rio de Janeiro), 4 de Agosto de 1941, p. 1. A notícia relatava essencialmente o facto de Armando Boaventura, chegado há oito dias ao Brasil na "embaixada de António Ferro" (sic), ter ganho a lotaria do Grande Prémio Brasil desse ano, no valor de mil contos de réis, uma fortuna na época.

[6] “Os homens são outros, o governo é o mesmo”, em A. O. Salazar, Discursos, Coimbra Editora, 1935, pp. 153-156.

[7] Sobre a génese da Constituição de 1933, ver António Araújo, A Lei de Salazar, Coimbra: Tenacitas, 2007.

[8] Vejam-se, a este propósito, vários episódios relatados no diário íntimo do então chefe de gabinete de Salazar, Antero Leal Marques (Fátima Patriarca, "«Diário» de Leal Marques sobre a formação do primeiro governo de Salazar – apresentação", Análise Social, n.º 178 (2006).

[9] Idem, pp. 199-204.

[10] Antero Leal Marques foi chefe de gabinete do ministro das Finanças, Salazar, de 1928 até 1935, passando então a exercer essas funções junto do presidente do ministério.

[11] Fátima Patriarca, op. cit., pp. 210-211. Avelino Quirino de Jesus (1865-1935) esteve envolvido na redacção do Acto Colonial (1930) e do projecto de Constituição (1932), cujos primeiros esboços foram da sua autoria.

[12] A primeira peça jornalística, uma entrevista com o conselheiro Martins de Carvalho, consultor jurídico do rei exilado, foi publicada logo a 3 de Julho no Diário de Lisboa (p. 6). Este mesmo jornal publicaria a 4 de Julho (p. 5) uma entrevista com o administrador dos bens da Casa de Bragança, Eduardo Fernandes de Oliveira e, nos dias e semanas seguintes, uma série de notícias, depoimentos e posições sobre o tema, inclusive a do próprio director do jornal.

[13] Em Novembro de 1933 um decreto-lei instituiu a Fundação da Casa de Bragança, que ficava detentora da maioria dos bens móveis e imóveis da dita Casa, aos quais a viúva e a mãe de D. Manuel declaravam renunciar, nos termos de um entendimento havido com o governo português. Certos meios monárquicos viram nessa solução um "confisco".

[14]  Informação dada pelo Diário de Lisboa de 7 de Julho de 1932, p. 5.

[15] Fátima Patriarca, op. cit., p. 210.


[16] Não reproduzida aqui.


[17] A última frase é pouco clara, o que pode resultar de uma gralha tipográfica.






José Barreto
 
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
 
 
 
 

1 comentário:

  1. Muito obrigada pela oportunidade de conhecer estes textos e pelos seus comentários.

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