58.
Como se referiu na 1ª Parte desta Nota,
existe uma ligação profunda entre a arte japonesa da tatuagem (irezumi) e as xilogravuras do «mundo
flutuante» (ukiyo-e).
De acordo com Yori Moriarty (ob. cit., p. 16), a grande difusão do irezumi deu-se após a publicação da
célebre Suikoden, adaptação japonesa
de uma popular novela chinesa do século XVI, a qual foi ilustrada por
Katsushika Hokusai e, depois, por Utawa Koniyoshi.
A
ambos coube fixar, de uma forma quase canónica, as figuras e a aparência das
principais personagens dessa novela, tendo Hokusai desenhado quatro dos 108
heróis da saga, os «108 heróis de Liangshan»: Shishin, tatuado com nove
dragões; Rochsin, tatuado com flores de cerejeira (sakuras); Chojun, tatuado com flores de cerejeira e ramos de
pinheiro; e Ensei, tatuado com peónias. Seria Koniyoshi, no entanto, quem
acabou por ilustrar as 108 personagens, numa publicação de tremendo sucesso.
Utagawa Kuniyoshi, Kyumonryu Shishin, 1827-1830
Museu Britânico, 2008,3037.10039
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Esta era, todavia, uma versão popular
de difusão das tatuagens, praticamente circunscrita às classes baixas ou a
grupos marginais. Entre eles, os bandos de jovens das periferias das grandes
cidades que se figuravam como «cavaleiros andantes» que, além do vandalismo,
afirmavam praticar a justiça, saqueando os ricos para dar aos pobres. A par
deste grupo, designado otokodate,
emergiram na época os bandos kumi ou gumi que faziam incursões pelo pequeno
comércio urbano, saqueando e consumindo os produtos à venda. Muitos dos membros
destes grupos tatuavam-se com as imagens que Kuniyoshi fizeram para ilustrar a
novela Suikoden, o mesmo sucedendo
com os carregadores e transportadores de palanquins, que andavam em tronco nu,
com os pescadores (que tatuavam peixes nos antebraços), com as gueixas ou com
os jogadores e alcoólicos, que inscreviam no seu corpo imagens de cartas de
jogar ou de garrafas ou copos de saqué.
Além destes grupos marginais, o irezumi teve uma enorme divulgação no
mundo do teatro kabuki e, como é sabido, entre os membros das associações
criminosas, com destaque para a yakuza.
Em finais do século XIX – ou seja, numa
fase muito posterior à Grande Onda de
Hokusai –, as tatuagens japonesas cativaram de uma forma extraordinária a
realeza e a aristocracia europeias. Tendo aportado a Yokohama em 1882, o duque
de York (mais tarde, Jorge V) conheceu o famoso tatuador Horichiyo e,
juntamente com outros membros da tripulação do navio H.M.S. Baccante, incluindo
o seu irmão, o duque de Clarence, fez-se tatuar pelo mestre japonês. O futuro
monarca fez gravar no seu antebraço um dragão de grandes proporções e, mais
tarde, já em Inglaterra, tatuou largas extensões do seu corpo pela mão dos artistas
Tom Riley e Sutherland Macdonalds.
A instância dos duques de York e de Clarence,
Horichiyo viajou até à Europa e, depois, para a América, onde permaneceu na
região da Nova Inglaterra. Na Europa, segundo se diz aqui, terá tatuado Nicolau
II, da Rússia, Frederico VIII, da Dinamarca, o duque de Edimburgo, a rainha
Olga da Grécia (cf. Beauty and Violence, Horichiyo Ambassador of the Japanese Tatoo, State of Grace Inc.,
2008).
A técnica tradicional de aplicação do irezumi, intitulada tebori, era feita com um estilete de bambu (hari), usando-se tinta preta e cinzenta (sumi), bem como azul índigo, amarelo, verde e vermelho, sendo este
último aplicado apenas em pequenas parcelas da pele, dado ser composto por
sulfato de ferro, uma substância tóxica. Note-se que os pigmentos usados na
tatuagem tebori eram exactamente os
mesmos que os gravadores utilizavam na elaboração das gravuras do ukiyo-e.
A partir de finais do século XIX, mesmo
no Japão começou a preferir-se, por ser mais precisa do que as linhas feitas
pelo método tebori, a tatuagem por
processos mecânicos, graças à caneta ou máquina de tatuar que, segundo se diz,
terá sido inventada por Thomas Edison (outras versões atribuem a paternidade da
máquina de tatuar a Samuel O’Reilly, em 1891; na verdade, como se explica aqui,
a versão de O’Reilly, de 1891, foi um melhoramento da máquina criada por Edison
em 1876).
Para o ponto que interessa no contexto
da presente Nota, importa salientar a popularidade daquilo que, no mundo da
tatuagem (e não só), é conhecido como fingerwaves,
um motivo muito semelhante à Grande Onda
de Kanagawa da xilogravura de Hokusai.
Utagawa Kunisada, Asahina Fuji Hyoe, 1854
Metropolitan Museum of Art
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Detalhe das fingerwaves
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De acordo com Yori Moriarty (ob. cit., pp. 39ss), às águas do mar e
as cascatas, muito presentes na obra de Hokusai, são dois dos principais
motivos das tatuagens: «Na arte e na tatuagem japonesa, a água é representada
com base em linhas estilizadas, não como uma massa colorida à maneira ocidental.
Para representar o mar e as ondas usa-se uma combinação de linhas que
reproduzem o movimento da água e as ondas e os característicos salpicos das
ondas, comumente conhecidos no âmbito da tatuagem como fingerwaves (…). A importância da água como ele básico da tatuagem
japonesa é enorme. Devido àquelas características estéticas, o movimento da
água e o dinamismo das ondas adaptam-se perfeitamente às formas do corpo. (…)
Actualmente, podem distinguir-se três estilos: o japonês, o europeu e o
americano. No japonês, as ondas são curtas, rígidas, terminando em pontas finas,
e tomam a sua forma directamente das nuvens do céu; no europeu, são maiores e
arredondadas, mais expressivas; no americano são ainda mais arredondadas, com
muito movimento e expressão, com as pontas curvas».
Os animais em que a presença das águas
é mais evocada, nomeadamente como pano de fundo, são as carpas (koi) e os dragões, apresentando Moriarty
como um dos exemplos da influência do elemento aquático nas tatuagens japonesas
a xilogravura A Grande Onda, de
Katsushika Hokusai.
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