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A xilogravura A Grande Onda, de Katsushika Hokusai – ou, se quisermos, o estatuto
de «ícone global» que adquiriu no nosso tempo – suscita algumas questões em
torno daquilo que Walter Benjamin apelidou «a obra de arte na era da sua reprodutibilidade
técnica» (in Walter Benjamin, Sobre Arte,
Técnica, Linguagem e Política, trad. portuguesa, Lisboa, Relógio D’Água
Editores, 2012, pp. 59ss).
Benjamin começa por assinalar que «a
obra de arte sempre foi reprodutível», referindo como marcos desse processo a
xilogravura, a gravura em cobrem a água-forte e, a partir do início do século
XIX, a litografia. Será, no entanto, com a fotografia que, segundo Walter
Benjamin, se verifica a grande viragem neste domínio: «Pela primeira vez, com a
fotografia, a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no
processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber
unicamente ao olho que espreita por uma objectiva».
Num sentido algo diverso, André Malraux
salientou igualmente o papel da fotografia no tratamento – e na difusão das
obras de arte – quando escreveu: «A fotografia, que foi a princípio um modesto
meio de difusão destinado a dar a conhecer as obras-primas incontestadas
àqueles que não podiam adquirir uma gravura de reprodução, parecia dever
confirmar os valores adquiridos. Mas reproduz-se um número cada vez maior de
obras a um número sempre maior de exemplares, e a natureza dos processos de
reprodução actua sobre a escolha das obras reproduzidas. A difusão destas é
alimentada por uma propensão cada vez mais subtil e cada vez mais extensa.
Muitas vezes, ela substitui a obra-prima pela obra significativa e o prazer de
admirar pelo de conhecer; gravava-se Miguel Ângelo, fotografavam-se os petits maîtres, a pintura ingénua e as
artes desconhecidas – fotografava-se tudo o que se podia ordenar segundo um
estilo» (cf. André Malraux, As Vozes do
Silêncio, vol. I – O Museu
Imaginário. As Metamorfoses de Apolo, trad. portuguesa, Lisboa, Livros do
Brasil, s.d., p. 15).
A xilogravura de Hokusai – e, de resto,
outras obras do mesmo teor, quer no Oriente, quer a Ocidente – vem, porventura,
questionar a tese de Benjamin, nos termos da qual a reprodutibilidade técnica conduz
a uma perda de autenticidade e de «aura» da obra da arte («o domínio global da
autenticidade subtrai-se à reprodutibilidade técnica» ou «o que murcha na era
da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura», são algumas das observações
mais conhecidas de Benjamin).
Na
verdade, A Grande Onda foi concebida
desde o início com vista a ser reproduzida em larga escala, num processo que implica
a destruição do original, da obra-prima.
E,
ao invés do que se poderia supor, foi – e é – essa reprodutibilidade em massa
que conferiu à obra de Hokusai o seu carácter aurático (se admitirmos,
naturalmente, que A Grande Onda se
reveste desse carácter).
A
reprodutibilidade em larga escala, muito potenciada pela Internet, e a
reconhecibilidade imediata de A Grande
Onda são responsáveis pelo seu estatuto de «ícone global», que se desprende
do seu formato ou suporte originário para ser mimetizado e desdobrado em múltiplos
suportes e em infindas variações, de que se podem apresentar inúmeros exemplos:
(imagem enviada por Luís Caetano)
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(imagem enviada por Eduardo Cintra Torres)
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(imagem enviada por David Teles Pereira; obra de Keita Sagaki, aqui)
|
Por
muito que possam parecer uma cedência ao kitsch
e à vulgaridade, as recriações e os pastiches
de A Grande Onda converteram-se num
fenómeno cuja percepção é essencial para compreender, inclusivamente, o sentido
originário da obra de Hokusai.
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