58.
Como
seria de esperar, a imagem de A Grande
Onda tem sido utilizada, em versões mais realistas ou mais estilizadas,
como motivo de tatuagens em todo o mundo, especialmente no Japão e nos Estados
Unidos da América, apresentando-se aqui alguns exemplos:
Mais interessante do que isso é saber que a moderna tatuagem japonesa, tal como a conhecemos desde meados e finais do século XIX, muito ficou a dever aos artistas do «mundo flutuante» (ukiyo-e) e, entre eles, a Katsushika Hokusai.
Na
verdade, e sem pretender apresentar nesta Nota uma história desenvolvida da
tatuagem no Japão, cujas origens remontam ao Paleolítico, interessa ter
presente que esse país tem uma tradição muito antiga na «arte do corpo», que em
meados do século XX – e especialmente por acção do marinheiro Norman Keith Collins (1911-1973), mais conhecido por Sailor Jerry
– se projectou em larga escala no Ocidente (sobre a história das tatuagens
japonesas, cf. Brian Ashcraft e Hori Benny, Japanese Tatoos. History, Culture, Design,
Tuttle Publishing, North Clarendon, 2016; Sando Fellman e D. M. Thomas, The Japanese Tatoo,
Abbeville Press, Nova Iorque, 1987;
Takahiro Tikamura e Katie M. Kitamura, Bushido: Legacies of the Japanese Tatoo,
Atglen, Schiffer Publishing Ltd., 2001; Yori Moriarty, Irezumi Itai. Tatuaje tradicional japonês, Gijón, Satori Ediciones,
2015, obra que se seguirá de perto nesta Nota).
Kamura Settai (1887-1940), Irezumi no oden
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A
prática do irezumi (= inserir tinta
no corpo) começou por ser uma forma de punição, aplicada a criminosos em várias
partes do corpo, inclusive na cara, que através de alguns sinais, como o inu (= cão, 犬) ou o aku (= mau, inferior, 悪) ficavam assim marcados – e estigmatizados –
para toda a vida, o mesmo sucedendo aos membros de castas ou classes
inferiores. A prática foi abolida em 1720 por Yoshimune Tokugawa e, desde
então, o termo irezumi, dada a sua conotação
pejorativa, foi substituído: os tatuadores passaram a usar a expressão horishi, do verbo horu («talhar ou gravar em madeira»), e horimono («objecto talhado»), precisamente os mesmos que se
utilizavam na arte das gravuras do «mundo flutuante» ou ukiyo-e.
Como
se refere aqui, existem as
mais diversas teorias sobre que classes ou grupos utilizavam as tatuagens nos
alvores e meados do século XIX, dizendo-se que as mesmas eram prática corrente
entre as classes trabalhadoras ou, pelo contrário, que eram usadas sobretudo
por pessoas que, por imposição legal, não podiam ostentar a riqueza que tinham,
optando por fazê-lo através de ornamentos corporais elaborados e opulentos.
Diz-se, por outro lado, que eram prática corrente nos que trabalhavam nas casas
de jogo e nas prostitutas ou «mulheres de prazer», que marcavam no corpo os
nomes ou sinais identificadores dos seus amantes favoritos ou dos seus melhores
ou mais favoritos clientes. Afirma-se ainda que muitos criminosos recorriam a
tatuagens artísticas para camuflar as tatuagens que lhes tinham sido impostas
como castigo ou que as tatuagens foram – ou começaram a ser – um traço
identitário de pertença a um grupo criminoso. Ao que parece, também eram usadas
frequentemente por bombeiros (hikeshi ou
tobi), uma corporação numerosa e com
um estatuto especial, dado o número e a gravidade dos incêndios que deflagravam
nas principais cidades, especialmente Edo/Tóquio, com as suas construções em
madeira. O uso de tatuagens pelo bombeiros correspondia à heroicização de que
eram alvo por parte das populações mas também a um apelo à protecção divina,
não sendo por acaso que os motivos usados eram sobretudo dragões e águas,
símbolos da luta contra o fogo (pensava-se, inclusivamente, que através da dor
da tatuagem, uma oferenda ao dragão, o único animal resistente ao fogo, este
conceder-lhes-ia protecção e segurança nos incêndios).
Sustenta-se,
por outro lado, que a vulgarização da prática da tatuagem – e a perda das suas
conotações estigmatizantes – se deu entre os pares de namorados de Quioto e de
Osaca, que começaram a tatuar no corpo dokens,
ou «moedas de amor», em sinal de fidelidade e de amor, tendência conhecida como
irebokuro que alastrou às classes
altas de Edo e aos seus bairros de prostituição, em que as prostitutas
legalizadas (joro) e as gueixas
marcavam no corpo com o nome do seu amado, seguido do kanji inochi (= vida). Através destas
«tatuagens-oferenda» (kishobori), as
prostituas almejavam ser resgatadas dos bordéis pelos seus clientes predilectos
ou mais abastados, o que nem sempre conseguiam, obrigando-os os novos clientes
a retirarem as tatuagens dos seus corpos através de um doloroso processo de
combustão. Além de prostitutas famosas, um jovem monge, Sensaburo, tatuou no
corpo o nome do seu superior, Keisu, seguido dos kanjis de amor e de afecto, um
claro indício da relação homossexual que existia entre ambos. Noutros casos, as
tatuagens tinham um carácter religioso, com marcas como orações ou kanjis que
representavam divindades.
A
popularização das tatuagens também se baseou – e muito – no teatro kabuki, que
alcançou enorme notoriedade a partir do início do século XIX, sendo frequentes
as peças (como destaque para A Princesa Escarlate de Edo/Sakura hime azuma bunsho, de 1817) em que as personagens
apareciam em palco tatuadas. A maquilhagem dos actores criou também um tipo de
tatuagem específico, o kabuki kumadori
chirashi.
A
partir da década de 1820 e até sensivelmente 1870, acompanhando uma fase de
prosperidade económica, as tatuagens conheceram uma enorme expansão no Japão,
passando a ser utilizadas sem conotações pejorativas ou estigmatizantes, o
mesmo sucedendo com o termo irezumi,
de novo retomado. Tal não significa que as tatuagens fossem autorizadas; pelo
contrário, a sua proibição, reiterada em 1804, só seria formalmente levantada em
1946 (ou 1948, segundo outras fontes), após um oficial de McArthur ter visitado o estúdio do célebre tatuador Koruma
(ou «Horyoshi II», filho de outro famoso tatuador de Yokohama, Horiyoshi I) e
proposto que aquela proscrição fosse abolida, mantendo-se apenas para os
menores de 18 anos. A partir daí a arte japonesa da tatuagem conquistou o
Ocidente, muito por acção do já citado Norman Morris, ou Sailor Jerry, que em
1960 abriu o seu primeiro estúdio na Chinatown de Honolulu, do seu pupilo Don
Ed Harris e do escritor norte-americano Donald Richie
(1924-2013), que ao visitar pela primeira vez o Japão devastado pela guerra, em
1946, descobriu que, devido à penúria reinante, muitos japoneses andavam com
poucas ou quase nenhumas roupas, deixando entrever os seus corpos tatuados,
realidade que Harris relatou no seu primeiro artigo sobre o país, saído na
revista Stars and Stripes, tendo
posteriormente, com o auxílio do fotógrafo japonês Ichiro Morita, retratado
centenas de tatuagens. Donald Richie, autor de dezenas de livros sobre o Japão,
e Ichiro Morita publicaram em 1966 o livro Irezumi,
a primeira obra em língua inglesa dedicada à arte nipónica da tatuagem.
Comprovando
a popularização da tatuagem e a ausência de qualquer carga negativa a ela
associada, muitas fotografias de finais do século XIX e inícios do século XX
mostram japoneses de ambos os sexos tatuados, sem quaisquer constrangimentos.
Ainda que todas as imagens não sejam da sua autoria, destaca-se, neste
particular, a obra de dois fotógrafos, o japonês Kusakabe Kimbei
(1841-1934) e Adolfo Farsari
(1841-1898), ex-militar italiano que se alistou como voluntário nas tropas
nortistas na Guerra Civil Americana, tendo abandonado a família em 1873, rumo
ao Japão, onde abriu um célebre e muito popular estúdio de fotografia em
Yokohama. A par deles, o ítalo-britânico Felice (ou Felix) Beato
(1832-1909), um dos primeiros fotógrafos de guerra, que cobriu o conflito da
Crimeia, a Rebelião na Índia de 1857 e a Segunda Guerra do Ópio (1856-1860), na China,
tendo-se estabelecido em Yokohama, no Japão, em 1863, que deixou para cobrir a
campanha do general Charles Gordon no Sudão, indo mais tarde para Burma; pensava-se
que tinha morrido em Rangum, em 1905 ou 1906, mas a sua certidão de óbito,
descoberta apenas em 2009, atesta que faleceu em Florença, em 1909.
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