quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

conversas com suecas à beira-mar do algarve (década de 1970)

 
 


 
 
Além dos sapatos do Papa, tenho pensado muito no tema Conversas com Suecas à Beira-Mar do Algarve. Para quem, como eu, entra na idade meia e só ouve dizerem que isto são os novos 30 mas que os sente na pele como os seus 90, é sempre bom regressar ao tema conversas com suecas à beira-mar do Algarve (década de 1970). Poderia falar doutros temas do meu actual interesse, como As Minhas Filhas Deram-me Um Belo Presente de Natal Que Eu Paguei, mas hoje o assunto é mesmo conversas com suecas à beira-mar do Algarve.
Entre as vantagens da idade meia, ter passado férias no Barlavento dos anos 1970 é uma delas, ainda que dessa altura se recorde não mais do que imaginárias e cálidas cenas do sol ao sal do sul, em coloração esbatida de polaroid, que é sempre a forma desbotada (e, no meu caso, prestes a desvanecer-se) que arquivamos as coisas – as «vivências» J na nossa memória causticada por décadas de benzodiazepinas. Não tive muitas conversas com suecas no Algarve, mas tive as suficientes para perceber o alcance desse empreendimento a um tempo cultural e estético, do qual nunca, posso jurar, retirei frutos no imediato (nem elas, as suecas), tendo os dividendos sido diferidos para a idade média em que agora me encontro, em tranquilo mas pesaroso  estágio para a Academia de Alcochete da Eternidade. As conversas com suecas à beira-mar do Algarve, pelo menos no meu caso (e penso que no caso de 90% dos galifões que se gabavam de ter comido quatro loiras à vez nas traseiras da discoteca Kiss), nunca proporcionaram o objectivo imediato a que se destinavam, mas tiveram uma importância formativa muito grande, quiçá enorme, ao abrir espaço, que não perna, a momentos cruciais de sexo mental que adiante passarei a explicar e cuja relevância só agora, à distância de muitas décadas, alcancei na plenitude, quando me barbeava esta manhã ao espelho. Em rigor, nem eu sei, nem se sabe, se as suecas eram mesmo suecas ou moças ruças de Alcabideche, com um sotaque IKEA, sendo essa uma outra vantagem, e grande, dos contactos interculturais de jovens de diferentes países (ou «pontos do planeta», forma moderna de actualizar o arcaico «sete partidas do mundo»).
Para quem, como eu, teve também o suado privilégio de trabalhar vários verões na helvética Suíça (e que gloriosos os tempos em que se dormia num albergue nuclear de Genebra, quatro pisos abaixo do solo, o que agora nos permite olhar com desgastado desdém esta canalha dos erasmus superprotegidos a 300 sms/dia  e dos mochilões vietnamitas pagos pelos paizinhos só para que a canalha ganhe «autonomia» e «sentido de responsabilidade»), para quem, como eu, teve o privilégio de acartar na Suíça e aí levar das boas no lombo, sabe bem a dinâmica dos contactos internacionais. Rumo à Suíça, de camionete (sim, de camionete). Passado Vilar Formoso, cada qual assumia a identidade que queria. Vi e ouvi muito marau falar achim, num beirão cerrado, e ter o desplante de me jurar que era «de Lisboa», ainda que não soubesse dizer a rua onde morava ou sequer onde ficava a Avenida da Liberdade (quase todos diziam que moravam perto do Intendente, o único troço da capital que eles, ou os pais ou os tios, porventura conheciam, ou tinham ouvido falar como sítio «imperdível» de Lisboa, como agora se diz). Como dizia o meu companheiro dessas andanças, o grande Pedro Franco, «isto aqui é tudo de Lisboa!» O conceito de área metropolitana era, de facto, muito vasto, amplíssimo, e tudo que era menino de Almada ou Corroios, até mesmo rapaziada dos arredores de Leiria, respondia «Lisboa» quando perguntado sobre o local de origem. De imediato, a pergunta seguinte, desconfiada e pidesca: «Lisboa, mesmo de Lisboa?». O interrogado na esquadra, evasivo: «perto de Lisboa». Pronto, ok, tá certo. Claro que era tudo também licenciado, doutorado em Física e em Ovnis (um tema muito anos 70, hoje perdido, é pena), tudo com carros e vivendas na Linha do Estoril, pais que conheceram o Mick Jagger numa festa louca em Londres nos anos 60, estrelas estrangeiras dos rallies de Portugal muito visitas lá de casa (houve um que me tratava o lendário finlandês Markku Alen pelo muito familiar «o Marco»), e assim enfim. Na nossa Suíça, tudo era possível. Um dia, conto.
Pois bem, com as suecas das conversas do Algarve passava-se a mesma coisa, e os diálogos na areia beira-mar ou à mesa da cerveja, num inglês perfeito (do lado de lá) e sofrível de ensino primário marcelista (do lado de cá), constituíam agora, observados à distância, um prodígio de imaginação literária, próxima do realismo mágico. Eram elas a aldrabar, naquilo que os limites da sua moral calvinista e luterana lhes permitia aldrabar (limites algo latos e lassos, em que se incluía sexo desbragado simultâneo com vários homens, pensávamos nós, e fartos pêlos nas axilas, exibiam elas), e éramos nós a aldrabar, e muito, na nossa inocência de infância catolicamente castrada, no Portugal pré-Abril, em que a educação sentimental, à la Flaubert, fora feita à conta de revistas Gina ou doutros magazines à mão (e quando os havia). Que elas aldrabavam, não sei. Que nós aldrabávamos, garanto. Aquilo a que se chama engate, e que no meu caso nunca medrou nem passou da areia, e morreu na praia, não era mais do que um embate, um embate hormonal luso-sueco, com a testosterona a borbulhar no acne, em erupção vulco-cutânea, e, do outro lado, a indiferença gélida, própria e peculiar do país natal de Greta Garbo (o que, não raro, nos fazia pensar que aquelas gajas, no fundo no fundo, se não prestavam para aquilo, também não prestavam para mais nada). Gerava-se então, com a lentidão das tardes de adolescência, um brainstorm trovejante em que cada qual compunha a sua persona da forma que mais lhe conviesse e tivesse por ajustada ao fim primordial em vista: comer a sueca. Havia os sensíveis, introspectivos, os extrovertidos estrelejantes, conhecidos por «barraqueiros» ou, poucos anos depois, por «gandas malucos». Havia os que exibiam os músculos, os cavalinhos na mota ou a crina surfista e os que, como era o meu caso, não tinham nada de nada para exibir. Quase sempre, o feliz contemplado, dos poucos que o foram, não correspondia a qualquer padrão predefinido e até, horror!, corria a fama da promíscua preferência daquelas cabras por indivíduos de baixa extracção social, tisnados pelo sol agreste, o que nos fazia imaginá-los a todos como pescadores analfabetos, criados de mesa mais que precários, trolhas da construção civil, e a elas, claro, umas vacas, quiçá mesmo putas, só por não quererem deitar-se na palha com quem era asseado por banho diário e já tinha concluído com aproveitamento o 8º ano de escolaridade.  
   Vestindo cada um o fatinho domingueiro de «gajo interessante» (ou «com ganda lábia»), convertia-se o areal em oficina de língua criativa ou actor’s studio em que cada qual encarnava o melhor de si, de uma forma instintiva, infantil e selvagem, pois ninguém lera até então o The Presentation of Self in Everyday Life, do Erving Goffman (à excepção, claro, do Zé do Café e de um ou outro trolha mais letrado). No final, a academia instalada era mais platónica do que esta descrição permite fazer crer e o que daí resultava eram não mais do que sessões de sexo mental, como se disse, em que cada qual passeava à beira-mar o que julgavam serem os seus recursos estilísticos (v.g., flexões, entrada no mar em mortal de costas, ar de «gajo profundo») ou projectava para cima da sueca as suas fantasias. Não fantasias eróticas, que disso não se tratava, já que o recontro raramente tinha desenlace carnal, ou qualquer outro, e quase sempre terminava, do lado luso, com uma passagem didáctica pela colecção privada de revistas Gina, ao entardecer dos mágicos cansaços. Falo, isso sim, das fantasias sobre o que cada um fazia de si próprio, e nada há de melhor do que uma sueca, ou de uma sueca com pêlos nas axilas e buço loitrito a despontar nos beiços, incapaz de entender uma única palavra da língua portuguesa, ou sequer lambê-la, completa ignorante da nossa cultura e dos códigos e signos sociais, nada melhor do que uma rapariga dessas, dizia, para extravasarmos nela o que podíamos ou éramos autorizados a poder. É que, em direitas contas, as suecas de monoquíni, ainda não chamado topless (e o Micanço de Mamas nas Falésias Vicentinas é um outro tema à parte, merecedor de dissertação autónoma com índice onomástico), eram as melhores ouvintes das aldrabices com que nos figurávamos, mais para nós mesmos do que para elas, as cabras. A coisa requeria algum investimento aldrabão, mas funcionava, não tinha como não funcionar, e, não podendo levá-las para a cama (ou para um banco de um automóvel nas traseiras da discoteca Kiss), deitávamo-las no divã, rectius, deitávamo-nos nós no divã, num jogo que pouco ou nada tinha de perverso. Se o nosso fétiche era carros, pois carros, e o pai lá aparecia às tantas da conversa como piloto de testes da Ferrari ou visita de casa do Niki Lauda. Se o tema era viagens vivenciais, pois acabáramos de chegar do Alasca, ou da Polinésia, em erasmus onírico (e, claro, íamos partir na manhã seguinte para o Nepal, pelo que, freguesa, era aproveitar agora, antes tarde que never). Entre os baixo-betos de Alvalade e Avenidas Novas, tão inseguros da sua virilidade quanto do seu posicionamento na escala  da pirâmide social, adolescentes dilacerados pela ansiedade do status e pela aspiração a, não sendo bem de «famílias bem», jamais deixarem transparecer essa sua burguesinha condição, para esses, os borbulhentos barulhentos da Suprema e do Vává, que se faziam passar pelo que não eram através de pullovers aos losangos (e gola em bico), para esses, catano que nunca mais lá chego, para esses, poças, o número do aristocrata era o que melhor satisfazia o ardor erótico-mental. Muita história levaram as suecas em cima sobre casas solarengas no Norte do País, mansões apalaçadas no coração de Sintra, caçadas alentejanas com os primos do rei de Espanha (o chato era saber dizer em inglês o nome das espécies venatórias). A gente não queria que elas percebessem, ou sequer ouvissem o que lhe dizíamos, queríamos mesmo era sentirmo-nos nós, à falta da loira na marquesa, filhos e netos de marqueses, primos de condes, com uma nórdica de mamas ao léu a olhar para nós, moderadamente interessada no que desfiávamos. Primava, pois, o orgasmo sócio-mental, que anos mais tarde e à conta da SIDA ganhou o epíteto de safe sex. Ontem deitei-me a ler a reler ou tresler A Loucura da Normalidade, do Arno Gruen, e comecei a manhã ao espelho a pensar nisto, conversas com suecas no Algarve, sendo óbvia a conexão temática entre as duas realidades, só à superfície distantes, pois aquela era a loucura da nossa normalidade, a loucura possível e casta da nossa maravilhosa normalidade, já que outras loucuras nos estavam vedadas pelo multissecular  bom senso nórdico, e pela consabida capacidade das habitantes de Estocolmo («isto aqui é tudo de Estocolmo!») para procederem uma análise fria e racional das situações em presença – e do mariola que lhes falava a partir da toalha da frente. Houve tardes inteiras em que ouvi meu M&M (Mano Manuel) a discorrer, num inglês oxfordiano de linguaphone e explicações em casa, sobre os vastíssimos latifúndios propriedade dos seus avós maternos, as ocupações comunistas, a graciosidade dos cavalos de raça das coudelarias da família, o esquadrão dos Bugattis, a antiguidade quase jurássica das nossas criadas de dentro (algumas das quais, se não me falham as contas, deveriam estar ao serviço da Casa para aí há uns 234 anos), tudo, enfim, o que o pudesse engrandecer aos olhos vesgos das suecas ou, sobretudo, que o pudesse engrandecer aos seus próprios olhos, por sinal bem lindos, mansos e lindos. Ao final da tarde, levantados os arraiais e a toalha, momentos de merecido repouso nos braços da Gina, em doce afago. Essa, a Gina, nunca falhava. Suspeito que alguns, mais afoitos, ganharam então a tara, ou inofensiva mania, de coloquiar longamente com revistas pornográficas, contando-lhes, no resguardo dos W.C.’s, histórias poderosas sobre os pergaminhos da família e suas genealogias remotas. Suspeito, não juro.
Depois, envelhecemos, a vida passou num instante. Mas, enquanto foi, foi assim. E foi bom, caraças, garanto que foi.
 
António Araújo
 
 
Pós-escrito – Há um par de dias, revisitei de certa forma o tema Conversas com Suecas à Beira-Mar do Algarve num novo formato, próprio da minha idade média, em modo sénior Três Senhoras Irlandesas às Aranhas na Neblina de Alfama. Andava eu taciturno por uma destas manhãs a passear os meus pensamentos no bairro quando avistei ao perto, frente ao Mosteiro de São Vicente, três octogenárias amorosas, muito beijáveis, aflitas à roda de um mapa da cidade oferta El Corte Inglés (por sinal, uma porcaria de mapa, benzódeus). A medo, quase em jeito de engate parafílico, aproximei-me, balbuciei a habitual-hospitaleira oferta de ajuda topográfica. E elas, para meu espanto, aceitaram, aceitaram-me, aceitaram-me assim como sou, com todos os  meus defeitos de personalidade e o camião das falhas de carácter. Pelo que, feito o negócio, lá fomos em fila ordeira aos miradouros da praxe e das belas vistas, à nomeação das igrejas ao melhor estilo tuk-tuk («ali, Castle, ali, Saint Michael, acolá Panthéon»), ou respondendo à pergunta de uma delas, a mais afoita, sobre se, com tanta igreja escalabrada, éramos também uma nação católica (informei que sim). No final do périplo, esclarecidas que Portugal não era, não era mesmo, um dos países mais perigosos do mundo (contrariando o que lhes tinham dito os guias turísticos na Roménia), depositei-as às três à entrada do Castelo de São Jorge, todas elas com o sorriso aliviado das turistas que acabaram de ter um fugaz contacto com um nativo autóctone, gratas aos céus por não terem sido roubadas ou barbaramente violadas. Agradeceram-me em castelhano muchas gracías, mas antes quiseram tirar comigo uma fotografia. Posei, claro. E se um dia, por algum acaso, virem um retrato meu, ladeado de duas velhotas queridas, numa qualquer sala de estar de Dublin («é tudo de Dublin!»), não estranhem, foi mesmo assim – e foi bom, como foi bom as suecas à conversa no Algarve dos meus anos 1970 (os novos 40). Estive quase, quase à beirinha de dizer às irlandesas que era o marquis de San Vincent e que aquele mosteiro era a capela privada da família. Estive quase, quase, mesmo à beirinha rasinha de dizer isso, mas não disse. Não, não disse, juro que não disse. Ou antes: claro que disse, como é óbvio.  
 
Para a Susana Hansen Norton, a minha amiga sueca  






 
 
 
 
 
 

 

 

 

1 comentário:

  1. Sincronicidade? «Great minds think alike (and at the same time)»? Neste texto também se fala das «vantagens» de haver suecas a passar férias em Portugal:

    https://www.dn.pt/edicao-do-dia/14-dez-2019/o-sexo-das-inocentes-11611942.html

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