sábado, 11 de janeiro de 2020

Meghan, sic transit gloria mundi.

 
 
 
Naquela que era uma das tradições mais expressivas da cerimónia de coroação dos papas, o mestre-de-cerimónias punha-se de joelhos diante da sedia gestatoria, que se detinha. Segurando uma cana com uma estopa de linho a arder, proclamava então uma frase: Pater Sancte, sic transit gloria mundi! – “Santo Padre, assim passa a glória do mundo!” A cerimónia era repetida três vezes até o novo Papa chegar ao altar de São Pedro.
Na mais grandiosa e solene das cerimónias, ao Vigário de Cristo era recordado, por três vezes, que as glórias terrenas são passageiras e frágeis e vulneráveis como a estopa de linho, que ia ardendo, desaparecendo. Um apelo à humildade quando tudo em redor apelava à magnificência, ao poder e à glória.
 
 
Este apontamento terá sido iniciado nas coroações papais no início do século XV, mas seria uma reminiscência dos Triunfos Romanos, as cerimónias civis em que eram celebrados os sucessos militares. Ali, na Roma Antiga, um escravo ficava por trás do herói homenageado e tinha a função de lhe recordar, ao longo da cerimónia, a sua mortalidade, segredando-lhe: “Memento Mori”, que é como quem diz “recorda que és mortal!”
A última vez que se ouviu foi em 1963, na coroação do Papa Paulo VI, mas o sic transit gloria mundi ter-se-á feito apenas uma vez, em vez das tradicionais três. A cerimónia de coroação, antecedida por uma missa celebrada pela primeira vez na Praça de São Pedro e não no interior da Basílica, foi simplificada em vários pontos e veio a ser a última, porventura porque, como dizia a frase, era tudo terreno e passageiro. Mas, neste caso, também o bom significado desta frase se perdeu – e não é só nos dourados, nem nas sedias gestatorias que se encontram os deslumbres.
Faria bem a todos nós esta recordação da finitude das glórias, sobretudo quando, por algum motivo e até por mérito, nos possamos deslumbrar.
Lembrei-me do sic transit gloria mundi ao ler a notícia sobre a insólita comunicação dos Duques de Sussex transmitindo ao mundo que tinham decidido abandonar as suas funções a tempo inteiro, para irem viver para a América e ser financeiramente independentes. Em simultâneo e ainda no campo do insólito, os Duques de Sussex lançaram um website com um design apelativo em que anunciam a sua acção futura, a sua relação com os media e dão informações para esclarecer os leitores – algumas das quais foram sendo questionadas ao longo do dia seguinte. Abandonando o insólito e passando para o inaudito, fizeram a comunicação de alguma desta gravidade e ineditismo sem coordenar previamente com a Rainha e a Família Real, como se estivesse a ditar as regras de uma relação futura.
Não é a primeira vez que a Família Real britânica se vê enredada em problemas, claro. De quase todas as vezes que achou que tinha encontrado um filão mediático, saiu-se mal, possivelmente porque fora de pé tem mais dificuldade em controlar os danos colaterais. E, muito embora o papel que desempenham na sociedade vá muito além da frívola cor-de-rosice e da mera questão constitucional, muitos continuam a olhar para os Windsor apenas como um fábrica de contos de fada ou de problemas familiares.
A cerimónia do casamento dos Príncipes de Gales, pais de Henrique, em 29 de Julho de 1981, foi um dos acontecimentos mais emblemáticos do último quartel do século XX. Do ponto de vista cerimonial foi magnífica, perfeita, imbatível. Thatcher aproveitou o momento e fez dele um acontecimento de Estado, de alcance planetário, para projectar a imagem do país. A Família Real não se poupou a esforços e tudo foi feito com tal pompa e grandiosidade que não se viu – e provavelmente não se voltará a ver – uma cerimónia de tal envergadura. Dos arreios dos cavalos à música (com Kiri Te Kanawa a deslumbrar com o bright Seraphim de Händel), passando pela plateia recheada de chefes de Estado (entre os quais o Presidente Ramalho Eanes), tudo foi pensado ao pormenor para causar a maior impressão – e causou.
 
 
Resplandecente num pluvial novo, o Arcebispo de Cantuária, Robert Runcie, combatente da II Guerra Mundial,  começou o seu sermão com uma frase de efeito – “Here is the stuff of which fairy tales are made – the prince and princess on their wedding day.” As palavras ecoaram na belíssima cúpula da Catedral de São Paulo e foi logo ali, na primeira frase, que a imprensa deixou de ouvir. Estava dado o mote para as capas dos jornais – e provavelmente Harry e Meghan também não foram mais além na revisão da matéria dada. Mas o sermão de Runcie já antecipava problemas e sobretudo alertava para o facto de a vida conjugal ser muito mais do que as glórias do dia do casamento, mesmo quando as glórias se repetem frequentemente na vida de um casal, como seria aquele. Premonitório e, no fundo, não muito diferente do sic transit papal.
Ao ver a forma impertinente como decidiram anunciar a sua pretendida mudança de estatuto na Família Real, além de ouvir aquele sermão até ao fim, os Sussex deveriam ter ouvido atentamente um outro sermão, dado 31 anos depois, em Junho de 2012, na mesma Catedral de São Paulo.
Celebrava-se o Jubileu de Diamante de Isabel II, 60 anos no trono, a segunda vez que tal feito era alcançado, sendo a primeira o da sua trisavó, a Rainha Vitória. Rowan Williams, uma escolha de Blair, era então o Arcebispo de Cantuária prestes a terminar o seu mandato. Não evitando temas que lhe eram politicamente caros, Williams, meditando nas palavras de São Paulo sobre honrar o próximo não deixou de fazer um enorme elogio àquela que é a marca determinante do reinado de Isabel II, a sua dedicação e o seu serviço:
“We are marking today the anniversary of one historic and very public act of dedication – a dedication that has endured faithfully, calmly and generously through most of the adult lives of most of us here. We are marking six decades of living proof that public service is possible and that it is a place where happiness can be found.”
Por contraste, os Sussex parecem ter preferido o lucro que uma vida independente (resta ainda saber quanta independência estão dispostos a adquirir), sem as obrigações e constrangimentos inerentes à primeira linha da Família Real, lhes pode dar, mas sem perder a ligação à Casa Real e sem perder os títulos – o melhor dos dois mundos. Esquecendo-se, sobretudo Henrique, que os privilégios que teve ao longo da vida têm uma contrapartida e que essa é a essência da realeza – o serviço.
Quando se aproxima o ocaso do seu longo reinado, a Rainha, que entre os seus títulos tem o de Fonte da Honra, depois do choque inicial, deve estar já a ver os aspectos positivos da ideia e a oportunidade de se livrar de uma mais do que óbvia fonte de problemas.
Não obstante, a solução que vier a ser encontrada, além das implicações mediáticas e familiares, tem implicações institucionais e constitucionais. Afinal, se hoje é apenas neto da Rainha, no futuro Henrique (Harry por vontade de sua mãe) virá a ser filho do Rei de Inglaterra. Embora isso não o coloque significantemente perto do Trono, fará com que os seus filhos sejam automaticamente – a não ser que a lei seja mudada por vontade do monarca – Altezas Reais e Príncipes de Inglaterra. Além disso a hipótese de o filho do Rei andar pelas Américas a lucrar à custa do seu estatuto e em nome da sua independência financeira levantará certamente muitas sobrancelhas em Londres.
Tendo posto fim em 2013 à lei que os impedia de casar com católicos e perante as evidências desta maldição americana – ironicamente iniciada por duas mulheres, Bessie e Rachel, que não usam o seu primeiro nome –, não seria de admirar que os Windsor começassem entretanto a considerar uma lei que limite o casamento com americanos.
Ao contemplar a possibilidade deste exílio voluntário no Canadá, talvez seja prudente também que algum assessor recorde a Isabel II, também Rainha do Canadá, o exemplo brasileiro do nosso D. Pedro IV, que deixou uma parte da prole a reinar do outro lado do Atlântico. Não vá alguém ponderar a hipótese de criar a sua própria dinastia americana, para que as glórias durem por mais algum tempo.
Nem de propósito, no ano em que Harry nasceu e em que começou a vida privilegiada que agora quer trocar por outra melhor, era lançada (Bob Weir with Bobby & The Midnites, 1984) uma canção que calça como uma luva neste estado deslumbrado de quem apenas ouviu a parte do sermão que fala no conto de fadas e sonha em ir em busca do el dorado:
 
All this hometown history is slippin' away
Shattered by a miracle age
I'm gonna roar through the night on a fantasy flight
As soon as I come of age
When the dream ignites, there's a flame so bright
Burnin' in a young man's heart
Get your hands on the wheel of some Detroit steel
You can hear the music start
 
I'm telling you I want to live in America
I want to live in America
 
 
 
 
 
Ademar Vala Marques
 
 

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