segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Sapatos Vermelhos.






Tenho pensado muito nos sapatos do Papa. Talvez resida aí a explicação dos pontificados de Bento e Francisco, não sei; como se tudo se resumisse, afinal, a uma questão pedestre. Vamos a factos, vamos a eles: o Papa Bento XVI foi o primeiro Papa a envergar o camauro – isto é, o gorro papal vermelho, orlado de arminho. Mas, atenção, antes dele, o último Papa a usar o camauro foi João XXIII, muito louvado como il papa buono, o “bom João XXIII”, que tantas esperanças abriu à Igreja, que promoveu o Concílio, etc., etc. (e teve um papel importante, caso não saibam, na crise dos mísseis de Cuba). Mas João XXIII, também importa dizê-lo, era um cultor da opulência das vestes pontifícias, mas esse é um aspecto menos focado na avaliação do seu pontificado. Já quanto a Ratzinger, quando decidiu reintroduzir o camauro, para mais orlado de arminho (o que, em tempos de animal rights, é de uma tremenda incorrecção política), caiu-lhe tudo em cima. Era um sinal de tradicionalismo, uma mensagem que queria transmitir de retorno à tradição, um sintoma de apreço bimbo e vaidoso pela magnificência do cargo. Estava feito o retrato de um homem, e do seu pontificado, por causa de um chapeuzinho vermelho… plamor de Deus, amigos.
 
Isto é um camauro (por baixo, o Papa Bento XVI)

 
 
 

          Depois, o Papa ficou celebrizado por usar múleos. E o que são múleos? Perguntais bem, irmãos. São os red shoes dos santos padres, cuja cor vermelha simboliza o sangue dos mártires. Para quem quiser saber mais, aqui tendes o link para Dona Wikipedia. João XXIII, sempre ele, o fashion addict de São Pedro, mandou colocar fivelas de ouro – sim, fivelas de ouro – nas sandálias do pescador. O papa buono, o homem do Concílio renovador... Paulo VI mandou retirar as fivelas de ouro e, de caminho, como sabem, abandonou o uso da tiara papal, que ofereceu aos pobres. Portanto, em matéria de styling, um Papa muito modesto. Se a avaliação de um pontificado fosse feita apenas a partir daí, pontos e aplausos para Paulo VI, o Frugal. Acontece que Paulo VI foi também o homem da Humanae Vitae, a encíclica que veio dar uma cacetada valente na pílula anticoncepcional e nos folguedos que esta proporciona. Ao que dizem as biografias do Papa, ou memórias escritas pelos seus próximos (o cardeal Poupard e outros), Paulo VI ficou horrorizado ao ver as imagens na TV do Maio de 68 em Paris, com aquela estudantada toda em polvorosa. Vai daí, zumba com uma encíclica bué conservadora e reaccionária. Caiu-lhe tudo em cima, ou quase tudo (e talvez bem, não vou opinar). Emmanuele Arsan (sim, a do filme erótico), ou alguém por ela, chegou a escrever uma carta ao Papa em que começava assim, ou parecido: “Senhor Papa, estou a ler a sua encíclica numa varanda em Paris… nua”. Portanto, o Papa frugal e modesto em matéria de vestidos era, em matéria de despidos, um senhor conservador, retrógrado até mai não.

          No ramo da sapataria, João Paulo optou por alternar o vermelho-sangue, evocativo dos mártires, com um vermelho mais escuro, evocativo de nada. Quer dizer, uns dias mais mártires e flagelados, outros dias nem por isso.

          Ratzinger não alterou nada, nem para conservador, nem para progressista: continuou a usar os múleos, da cor evocativa dos mártires, mais nada, nada de nada. E o que aconteceu? Tudo a bater no calçado do homem. A revista Esquire, em 2007, chegou a nomeá-lo, quiçá por gozo, “accessorizer of the year”. E até o Washington Post, vejam lá onde vai a doideira, a nossa doideira, e a frivolidade idiota (incluindo deste meu post...), até o Washington Post, dizia, dedicou um artigo inteiro aos sapatos papais na hora em que Bento renunciou. Parece que anda tudo mais interessado no calçado de Bento do que o próprio Bento, o qual, como qualquer um de nós, tem de usar qualquer coisinha nos pés, para se agasalhar e, portanto, ou portantos, usou o que estava mais à mão, ou ao pé (ao pé dele), e que era da tradição: todos mas todos os antecessores tinham usado SS (sapatitos sanguíneos), em tamanhos variáveis, claro está. Andaram até a dizer, para mostrar que o senhor gostava do luxo e era um deslumbrado, que usava sapatos Prada. Saltou logo a brincadeira “o diabo veste Prada” e etc. e tal e até eu acreditava nisso até me pôr, como convém, a estudar o tema e a não confiar no que dizem os jornais. Amigos: o Papa nunca usou Prada. É mentira, falsidade, aleivosia, fake news. Se lerem “Papa Prada” é mentira. É mentira, catano, mentira. À semelhança dos seus antecessores, o Papa usou calçado feito no sapateiro papal, Adriano Stefanelli, de Novara. Os mais resistentes ainda dirão que o Papa devia mas era dar o exemplo, aviar-se na Sapataria Oliveira (que «calça Lisboa inteira») ou no Mundo do Calçado. Está certo, talvez, é Papa, devia dar o exemplo aos pobres. Mas o Papa, sendo Papa, é igualmente chefe de Estado. E quem se calçava também no Adriano Stefanelli, sabeis? Além de João Paulo II, claro está, os presidentes George W. Bush e… Barack Obama.

          Quer dizer, além de outras afinidades que porventura tenham, Bento XVI e Barack Obama aviavam-se no mesmo fabricante de calçado. O conservador e reaça Ratzinger e o democrata e progressista Obama. Um leva na tromba por calçar italiano Stefanelli e ser amigo do luxo, do outros nem se fala do que leva nos pés. Portanto, é assim: o pessoal ou a imprensa não gosta do Ratzinger e até anda a ver o que traz calçado, só para bater, e até inventam que veste Prada; o mesmo pessoal e a mesmíssima imprensa gostam do Obama e nem se perguntam se os sapatinhos que traz são da Prada, do Stefanelli ou da Sapataria Sóprópé (sim, que ela também existe, e com esse fantástico branding). É o Papa que gosta de calçar assim ou assado ou é a gente que não grama do Papa e anda a espiolhar o que traz nos pés? Bento, coitadito, decidiu aviar-se na mesmíssima loja do seu antecessor, aquela que é usada pelo Bush e pelo Obama. Assim que subiu ao trono de Pedro, perguntou decerto aos seus camareiros: e o outro que cá estava antes de mim, gastava de onde? Stefanelli? OK, comprem Stefanelli. Se calhar, como é um (grande) intelectual e, convenhamos, tinha mais em que se preocupar, nem pensou nisso, calçou o que lhe deram, o que estava mais à mão para o seu pé. Em poucas palavras: esteve-se marimbando para o calçado. Quem se preocupa somos nós, fomos nós. Sou eu, que estou a escrever estas parvoíces. Podia e devia Bento ter sido mais cuidadoso, escolher calçado mais modesto, pois não é o Obama dos States mas o chefe da Católica Romana? Talvez, talvez, mas esse é o assunto central da vida da Igreja, com a pedofilia e outros males piores? Se, no meio do caso dos abusos, o Papa estivesse a pensar que devia calçar mais frugal não seria tonto e fashion addict? Como se vê, Bento apanhou pancada por ser um vaidosão e querer sapatos delicados, todos em carneira de primeira, mas se calhar não foi vaidosão nenhum, é tudo uma coisa dos jornais para alimentar a nossa tonta friovolidade. Os tontos somos nós, não ele. Nós que fazemos a avaliação de um pontificado inteiro e de um homem a partir da marca de calçado e que deixamos de lado até crimes horríveis como a pedofilia para andar a escarafunchar o que um Papa calça, ou não calça. Doentio, não? Não é doentio que um jornal como o Washington Post – sim, o Washington Post, o do Watergate e o camandro – faça uma reportagem inteira sobre os sapatinhos do Papa no momento em que este resigna? Já agora, informa-se que o Papa largou todo calçado na hora da despedida, ficou lá todo, todinho, nos closets do Vaticano (agora há um livro chamado Nos Armários do Vaticano, penso que não trata disto, mas não li).

          Por último, Francisco. Para quem goste, e são muitos, milhões que gostam, um exemplo de modéstia. Continuou a calçar o que calçava, fora com os sapatos opulentos, Francisco é o maior, um exemplo para todos (para os detractores: um bocadito entalado entre a Malala e a Greta, mas a fazer bem o seu caminho ao estrelato planetário). O caso do sapato franciscano é tão importante que até é referido no filme de Meirelles, Dois Papas, sublinhado como o pequeno-grande gesto com que o Papa abriu o seu pontificado. Para quem não goste de Bergoglio, isto é uma demagogia do caraças, uma pobreza de espírito grotesca começar um pontificado com uma questão tão pedestre, em transe de mostrar ao mundo que era «diferente» dos antecessores. No fundo, o que parece ser um sinal de modéstia pode configurar-se, se quisermos, como um sinal de orgulho e vaidade, de vaidade na exibição da modéstia, de vaidade ao contrário, se quiserem. Amigos: o actual Papa preocupou-se com os sapatinhos que usa. Os outros, talvez não. Não sabemos se João Paulo ou Bento se preocuparam, o que sabemos é que Francisco se preocupou – e o mundo ficou todo extasiado com isso, e muito maravilhado. O mesmíssimo mundo que andava ocupadíssimo, entretidíssimo, pelas páginas do Washington Post, a falar e a cascar nos sapatos do Ratzinger, a inventar que usava Prada. O mesmo mundo que exige a um Papa que calce modesto mas fala da moda como “criação”, que devora revistas com vestidos e acessórios, que discute as cuecas da princesa, e por aqui ficamos.

          Sabem o que adoro no Ratzinger? Está-se nas tintas (ou assim me parece). E isso é lindo, é maravilhoso. Está-se nas tintas para as revistas das cuecas das princesas, está-se nas tintas para que o sucessor lhe tenha dado uma (deselegante e escusada?) alfinetada por causa do calçado, está-se nas tintas. Não percebeis que Bergoglio, que pode ter muitas qualidades, ao decidir usar o 42 da Sapataria Pobretana, está um bocadito a alimentar a animosidade contra o seu predecessor, a carregar na tecla do Papa Prada? Não deveria ele ter mais cuidadinho e ponderação, na hora de escolher o calçado, em não ferir o antecessor e no que isso tudo transmite ao mundo? Uma Igreja bimilenar entretida nisto, plamor de Deus. Claro que há gestos simbólicos e que Francisco quis mostrar ruptura, sinalizar modéstia, dar um sinal de viragem, a começar por onde deve, a base, os pezinhos. Concedo que não o terá feito por vaidade, mas para serviço da Igreja. O problema é que, parece-me, este afã de mostrar a mudança em gestos simbólicos, mesmo aceitando a importância crucial dos símbolos para a Igreja romana, corre o risco de reduzir um pontificado a um problema de dress code. Claro que há a Laudatio Sí, etc. e tal, mas este sobreinvestimento no simbólico, nos sapatinhos e no automóvel carocha, não será, também ele, uma cedência à vulgaridade do mundo profano, uma concessão à obsessão mundana com as manas Kardashians e as lingerie principesca? Não sei. O que sei é que, cada qual com seus sapatos, Bento e Francisco trilharam caminhos diferentes: um, o da tradição (o boné com arminho) e o da continuidade (os sapatinhos vermelhos), parecendo importar-se pouco com a questão ou, pelo contrário, fazendo dela a mensagem de que há coisas mais importantes do que a roupinha. O outro, o que agora lá está, também se preocupou, e muito, com o guarda-roupa, fazendo dele um sinal (admirável, popular? ou demagógico, populista?) para o mundo – e para a imprensa, já agora.



          São caminhos diferentes, talvez expliquem dois pontificados ou talvez não devessem ter importância nenhuma nem merecer sequer um post de um blogue tão distinto e elevado como o Malomil. E talvez escrever este post seja uma cedência ao mundo frívolo das cuecas das Kardashians, etc. E talvez V. estar a lê-lo também seja uma frivolidade palerma. Portanto, caro leitor, vá mas é trabalhar, malandro (em caso de reformados e pensionistas: ide à pesca).     
 
 
António Araújo





Mais do que em tempo - ao contrário do que possa parecer, tenho uma admiração profundíssima, enorme, pelos dois papas. A gente olha a estatura intelectual de um Ratzinger e o percurso de vida de um Bergoglio e fica assim as modos que… muito, muito, muito pequenino. E depois vá de comparar com o que são os líderes actuais do mundo e ficamos um bocadinho mais grandes, nós, com os dois Papas a ficarem ainda maiores, maiores, maiores. Isto não é um Benfica/Sporting de um Papa contra o outro, mais uma perspectiva estúpida em que tendemos a cair. Cada um à sua maneira (e é difícil arranjar maneiras mais diferentes), ambos são grandes, enormes. Portanto, vamos lá everybody, crentes e não crentes: viva os Papas!  (e quem não saltar é parvo)
 
 


 

5 comentários:

  1. Não sobre o traje mas sobre a alimentação cristã e seus apetrechos, compôs Sua Santidade Leão XIII uma Encíclica a que Eça de Queirós chamou Encíclica Poética e cujos preceitos analisou à luz dos melhores exemplos de vida dos veneráveis Santos. Teria Sua Santidade cedido às tentações do Principe das Trevas ? É o que me inquieta ao ler os costumes ainda usados pelos Santos Papas.
    Pois tal estudo critico de Eça foi publicado na Revista Moderna e integra hoje o volume das Notas Contemporâneas. Aconselho a sua leitura .

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  2. Excelente reflexão Caro António!
    Obrigado por me ter deliciado de forma tão.... profunda e, ao mesmo tempo, em tom leve e livre.
    Bom 2020!
    Paulo Mendes Pinto

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  3. Sempre inspirador. Agora vou...
    Aquele abraço

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