Bissau na história do BNU (Banco Nacional Ultramarino)
Da capital em Bolama a Bissau, sede de negócios de toda a
Guiné
Mário Beja Santos
Resumo
O acervo dos relatórios das agências do BNU (Bolama e Bissau) conservados
no antigo Arquivo Histórico do BNU (neste momento encaixotados a aguardar
destino) permitem conhecer com maior acuidade a realidade política,
sociocultural, económica e financeira da colónia entre a I Guerra Mundial e a
criação do Estado da Guiné-Bissau. Nenhuma outra fonte não-oficial é tão rica
em informação. São documentos por vezes desconcertantes, pela franqueza dos
responsáveis das agências, dão-se informações confidenciais, denunciam-se
corrupções, revelam-se falências, expõem-se, por vezes com contundência,
imoralidades ao mais alto nível. Mal criada a delegação de Bissau, em 1917, os
relatórios de Bolama desencadeiam uma feroz hostilidade a Bissau; decresce a
importância de Bolama, Bissau, gradualmente, prospera, o seu porto é mais
apetecível para as exportações, a terceira campanha de Teixeira Pinto
assegurara uma atmosfera mais propícia aos negócios, tanto na ilha como através
do rio Geba. Têm grande significado as exposições em que a agência de Bolama
pretende mostrar as vantagens da manutenção da capital naquela região dos
Bijagós. Os relatórios são minuciosos a descrever campanhas para pacificar
subversões, nomeadamente nos Bijagós. Enfim, fontes documentais jamais
utilizadas na historiografia da colónia.
Bissau vai ganhando preponderância no início da década de 1930, com o
desenvolvimento da agricultura os relatórios vão refletir a nova realidade
económica e espelharão o impacto da II Guerra Mundial na região. A era de
Sarmento Rodrigues irá pôr a colónia no mapa. Na segunda metade da década de 1950
haverá a perceção de grandes mudanças. É nesse contexto que é do maior
significado o relatório de 1957 sobre a situação da Guiné feito pelo
administrador do BNU Castro Fernandes, figura de proa do Estado Novo e antigo
Ministro da Economia. São também de grande importância os relatórios do BNU no
período crucial de 1962 a 1964, narram minuciosamente a evolução da luta
armada.
Por ser uma instituição bancária sem qualquer competidor, o BNU detinha uma
informação primordial sobre o estado da agricultura e os negócios que se
efetuavam por toda a colónia e os dados que revelam permitirão a que os
historiadores possam dispor de factos documentais até hoje inexplorados para
uma grande angular da economia da Guiné no século XX, até à independência.
As fontes consultadas foram constituídas por relatórios saídos do punho dos
responsáveis das agências, uma imensa documentação avulsa, que em certas
circunstâncias se revelou do maior interesse e o acervo das atas das reuniões
do Conselho de Administração do BNU referentes ao pós 25 de Abril, mostrando a
evolução das negociações entre o Estado Português e o Governo da Guiné-Bissau,
que se saldou na integração do património do BNU no Banco Central da
Guiné-Bissau. Sem surpresas, Bissau está no centro dos acontecimentos do
eclodir da subversão e em Bissau se encerra o processo de transferência do BNU
para o Banco Nacional da Guiné-Bissau.
O pano de fundo, Bolama em decadência, Bissau em ascensão: o conflito
Tenha-se
em consideração o que escreveu a arquiteta Ana Milheiro em “Construir em
África, 1944-1974, A Arquitetura do Gabinete de Urbanização Colonial em Cabo
Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique”, ISCTE-IUL, 2013:
“A nova capital cresce e desenvolve-se a partir do Plano para a Nova Cidade de
Bissau desenhado, ainda durante a I República, pelo engenheiro-chefe da Direção
de Agrimensura, José Guedes Quinhones, em 1919. Este plano assentava num
traçado geométrico e em uma malha ortogonal de ruas largas, marcando claramente
duas avenidas: a Avenida de Cintura, que atuava como limite da urbe existente e
dividia a ‘cidade branca’ das povoações locais, e a futura Avenida da
República, que ligava a zona baixa do porto da cidade à Praça do Império,
culminando no Palácio do Governo”.
Voltando
muito atrás, a história de Bissau aparece associada a um entreposto, só no
século XVIII surge uma fortaleza que pouco durou, houve que reconstruir o que é
hoje a Amura, a partir de 1753, aí se constituiu o núcleo duro de administração
colonial em torno de muralhas defensivas. É bastante extensa a bibliografia
constante dos arquivos de relatos sobre esta pequena Bissau que ia do
Pidjiquiti até à Amura, a S. José de Bissau, vivia-se desconfortavelmente, com
tropas amotinadas, andrajosas, instalações degradadas, uma falta de higiene
gritante, é uma documentação inequívoca que revela claramente a hostilidade da
população envolvente na ilha. A situação alterar-se-á substancialmente a partir
da terceira campanha do capitão Teixeira Pinto, com a submissão dos principais
régulos da região de Bissau. O governador Carlos Pereira dera o mote, em 1910,
fazendo derrubar as muralhas, procurando a aproximação, fica para trás a
história da agitação permanente em que houve necessidade de pedir até à Marinha
estrangeira ou ao governador de Cabo Verde de enviar tropas para intimidar
sublevados ou agressores da pequena Bissau.
Estamos
a ultrapassar a fase da Guiné das praças, entrepostos e presídios, a viragem
dá-se com a criação da capital em Bolama, quando a Guiné se autonomiza de Cabo
Verde. Do século XIX para o século XX, é em Bolama que está a administração,
Bissau vai-se constituindo como o cais de acostagem mais apetecido pela Marinha
de Comércio, nacional e internacional. Basta ver as estatísticas do início do
século XX para perceber que é fundamentalmente em Bissau que se dão as cargas e
descargas.
A
investigação a que procedi sobre a história do BNU revela que os acontecimentos
socioeconómicos e políticos, designadamente no período da I Guerra Mundial,
estão centrados em Bolama. Mas o primeiro documento que encontrei no Arquivo
Histórico do BNU tem data de junho de 1915, é classificado como reservado e
fala da guerra em Bissau. Ali se diz que em 3 de junho, os Papéis e os Grumetes
de Bissau tinham atacado a vila com a intenção de massacrar os habitantes,
saquear os estabelecimentos e depois oferecer a ilha ao governo inglês ou
francês. Quem irá resolver o diferendo é João Teixeira Pinto, com uma pequena
força e tropa regular e cerca de 1 500 auxiliares. O responsável pela agência
do BNU em Bolama irá escrever textualmente que “foi principalmente devido à
valentia deste oficial que hoje não há a lamentar um enormíssimo desastre. O
inimigo, munido com armas boas e muito modernas, sustentou um combate violento
durante cerca de duas horas junto do mercado de Bissau, acabando por retirar
perseguido pelos nossos. As nossas forças avançaram para o interior da ilha
onde têm tido rijas pelejas, mas não há dúvida que desaparecerá de vez a lenda
de que os Papéis são invencíveis”. A administração em Lisboa agradece em 13 de
julho: “Excelentes são as notícias que Vossa Senhoria nos dá sobre a sujeição
dos Papéis, da qual resultará a pacificação da Guiné, factos que, certamente,
vão ter decisiva influência no progresso desta colónia”. Mas havia escaramuças
nos Bijagós, o que trazia transtornos para os negócios da mancarra. Tudo era
difícil naquele período da guerra, no movimento comercial de 1916 tinham-se
registado aumentos na exportação do coconote e diminuições na exportação da
mancarra. Havia também carestia de artigos importados. O responsável pela
agência deplora a situação de Bolama, a qualidade dos transportes marítimos, a
má organização do serviço alfandegário, a falta de comodidades dos munícipes.
1917
é o ano em que abriu a agência do BNU em Bissau, vão arrancar as guerras de
afirmação entre Bolama e Bissau. Não propriamente logo em 1917, a agência de
Bissau vai funcionar num andar arrendado, com mobiliário emprestado. Em
setembro de 1918 será autorizada a compra do terreno e a construção do edifício
da agência. O gerente de Bissau insistia na solução de se fazerem as obras na
época seca de 1918-1919, dá preços de salários, de pintores e serventes, de
materiais a cal de casca de ostra. Tece novas referências à guerra dos Bijagós.
O surto da gripe espanhola eclodira na Guiné, e o gerente de Bolama comenta: “O
Serviço de Saúde está numa lástima; tudo falta, remédios, desinfetantes,
aparelhos e instrumentos, etc. À data em que escrevemos, a vida em Bolama está
por assim dizer paralisada; a população aterrada com a grande quantidade de
óbitos que ultimamente tem havido, não só devido à época mas porque também
desde a última estadia aqui dos vapores vindos de Lisboa a epidemia da gripe
infeciosa deu entrada na Província e por ela alastrou com grande rapidez,
causando, principalmente em Bolama, grandes estragos na população, tanto
europeia como indígena”.
A I
Guerra Mundial deixara marcas profundas na vida guineense, a carestia de vida
era por demais evidente, todos viviam uma vida difícil. Nesse ano do fim da
guerra, logo em janeiro, o gerente de Bolama informa Lisboa: “Os indígenas de
Canhambaque renderam-se pela fome. Vieram os régulos a Bolama prestar
vassalagem”. Alguém, na administração em Lisboa, escreve a lápis: “Muito
folgamos com a notícia”.
Já
despontou a rivalidade entre as agências de Bolama e Bissau, é o momento
propício para o gerente de Bolama querer mostrar a Lisboa que o futuro está em
Bolama e daqui para o interior da Província. É um documento espantoso que
iremos seguidamente apreciar.
Doravante,
vão ganhar destaque os sinais de competição entre as agências do BNU da Guiné.
No seu relatório do pós-guerra, o gerente de Bolama agarra-se com unhas e
dentes à tese de que o futuro da Província tem o seu farol naquela capital
criada em 1879, dali irradiará irrevogavelmente o desenvolvimento. É da maior
pertinência ler a sua argumentação, prevendo um futuro que não aconteceu:
“Se
hoje o comércio procura de preferência Bissau, se ali acorre a navegação de
longo curso, se se traça a planta de uma grande cidade, tudo isso pode sofrer
profundas alterações desde que o porto de Bissau deixe de ter a importância que
hoje tem.
Não
há razões senão transitórias para que ali hoje se centralize o mais importante
comércio da colónia. O seu porto desabrigado, batido no tempo das chuvas por
violentos tornados, a violenta corrente do rio Geba que, certamente na opinião
dos entendidos, provocaria enormes assoreamentos se se fizessem muralhas e
aterros para atracações de grandes navios e para projetadas gares marítimas, e
a ideia de ali fazer a testa de um caminho-de-ferro de penetração que teria de
atravessar extensas regiões alagadiças, estão em contraposição com o porto de
Bolama: abrigado, com fraca corrente, gabado pelos capitães de navios
estrangeiros que conhecem um e outro porto e com a circunstância de mesmo em
frente de Bolama ficar o continente e onde poderia ser a testa de um
caminho-de-ferro que subindo pela margem esquerda do rio Geba pusesse o
interior em comunicação com o porto de Bolama.
A
realização desse melhoramento derivaria a maior parte do movimento para Bolama.
Para saída da Província, o próprio canal de Orango, direto a Bolama, daria
melhor navegação, no dizer dos náuticos, depois de balizado, que o Canal do
Geba hoje usado.
Se a
proposta que o Governo da colónia fez já ao Ministro para balizagem daquele
canal e para início do estudo do caminho-de-ferro de S. João (em frente a
Bolama) fora avante e dela resultara a convicção de que razão têm ou não técnicos,
mas conhecedores do terreno, que o traçado natural deve ser de S. João a
Bafatá, mais que certo será o declínio de Bissau e consequentemente a transição
da importância do comércio de Bissau para Bolama.
Daí
resultará também o repovoamento da vasta e rica região do Rio Grande, tendo-se
já com esse fim deixado essa área com uma taxa de imposto de palhota menos
elevada que a de outras regiões da colónia, tentando ali fazer convergir a
população que outrora foi batida e escorraçada para outros pontos pelos
Beafadas, hoje sem poderio.
Enquanto
porém esse plano e projeto não for realizado e dele resultem consequências
benéficas para Bolama, os lucros desta Filial serão variáveis”.
A Guiné recentra-se em Bissau, Bolama parte para a luta
Na
sequência dos anos difíceis do pós-guerra, em maio de 1922 são tomadas medidas
para que o BNU em Bissau tenha instalações próprias. Nesse tempo foi adquirido
um prédio cujo rés-do-chão ficou destinado a escritórios e o primeiro andar à
habitação do gerente. Em 1925, de acordo com uma certidão da Repartição da
Fazenda do Concelho de Bissau, fica-se a saber que no novo bairro da cidade o
BNU tem mais espaço, há uma casa em alvenaria e três dependências isoladas.
Enquanto
o gerente da filial de Bolama, nesse mesmo ano de 1925 volta a informar Lisboa
de indícios de revolta na ilha de Canhambaque, chegam a Bolama dois aviadores e
um sargento mecânico que serão muito bem recebidos e até acabarão envolvidos a
bombardear nos Bijagós.
Mais
adiante, em 1925, é dado à estampa uma “Memória da Província da Guiné”, é seu
autor Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, funcionário colonial. É um
homem esperançado, deslumbrado e não o esconde no prefácio do seu escrito:
“Falar
da Guiné é falar da colónia portuguesa que mais caráter possui de terra
africana; é falar, dentre as possessões que constituem o nosso domínio
colonial, daquela que melhor situação financeira desfruta, daquela que tem mais
personalidade, sem mistelas equívocas, sem arremedos bacocos.
A
Guiné é, de facto, a mais rica das nossas províncias africanas, nas
possibilidades de produção agrícola.
Quem
for ativo e inteligente, quem entender que os seus braços devem servir para
mais alguma coisa do que roçar malandramente pelo mármore rachado dos cafés,
quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio, aqui
encontrará o El Dourado das suas legítimas ambições.
Porque
a Guiné, com a quermesse bizarra e multicolorida das suas onze raças, e
diversas subraças, formando um bloco notável de aproximadamente 800 mil
habitantes; com a maravilha pessoalíssima da sua fauna; com a sua ornitologia,
opulenta e variada, em que as cores das aves dir-se-iam fugidas de uma paleta
de pintor impressionista, pela diversidade ofuscante dos tons; com a abundância
da sua herpetologia (parte da zoologia que trata dos répteis); com a variedade
dos seus espécimes entomológicos; com a riqueza da sua concheologia; a Guiné
com a sua flora variegada até ao impossível; com o sensível incremento que está
sendo dado à sua agricultura, transformando em fontes de riqueza o que era até
há bem pouco uma desoladora extensão de solo inaproveitado…”.
Chegou-se
ao período da Ditadura Nacional e a documentação enviada para Lisboa refere
agravamento das condições de vida na Guiné.
Antes
de chegar o governador Leite de Magalhães que ficará na Guiné até 1931, vários
acontecimentos ganham peso, com realce para a preponderância de Bissau sobre
Bolama, há empreendimentos agrícolas que vão caindo por terra, nos Bijagós, mas
também no continente. Já se referiu que aumentaram as estradas e as linhas
telegráficas, mas as finanças locais mantêm-se anémicas e instáveis. No período
da Ditadura Nacional assiste-se a uma redução de despesas: diminuição de
efetivos militares, menos administração. É nesta altura que os agentes
económicos de Bolama reagem, endereçam ao Ministro das Colónias uma farta
exposição em 15 de agosto de 1927, vêm fazer uma defesa histórica de Bolama, é
um documento sem precedentes, feito propositadamente para neutralizar a transferência
da capital para Bissau:
“Não
nos animam mesquinhos propósitos de bairrismo. Para nós esta questão não é uma
questão de duas cidades disputando-se a primazia, a honra ou a vantagem de
serem a cidade principal da colónia. Procuramos ver o problema através do alto
interesse da colónia, pois ele não pode nem deve ser considerado apenas do
ponto de vista limitado, embora respeitável e atendível, das conveniências
desta ou daquela cidade, deste ou daquele centro de população.
Para
isso temos de considerá-lo à face da história, da situação geográfica,
económica, financeira e sanitária da província e até da política internacional.
No estudo do problema da capital não se pode pôr de parte o ponto de vista
histórico”.
E
dão seguimento a essa lógica de uma maneira bem curiosa.
Enumeram-se
elementos sobre a colonização da região, fala-se em missionários, em Cacheu, no
período filipino, na fundação de Bissau, cita-se o trabalho de Travassos
Valdez, a velha obra de Francisco de Azevedo Coelho, tudo para chegar à
ocupação militar da ilha de Bolama em 1830, não sem o protesto veemente do
governador de Serra Leoa, segue-se o conflito com a Grã-Bretanha e a sentença
arbitral do presidente Ulysses Grant. E como se estivesse a dar uma lição de
História ao Ministro das Colónias, diz apologeticamente:
“Não
foi portanto uma necessidade de ocupação que nos levou a fixarmos a capital em
Bolama. Quando se transferiu a sede do Governo para Bolama já ninguém nos podia
contestar a sua posse. Antes o que se vê é que a capital em Bolama surge com a
criação da Província Autónoma, é a maioridade”.
Agora
os argumentos são arremessados com outro peso e textura:
“Sob
o aspeto geográfico é erro dizer-se que Bolama fica distante de todos os postos
da Província, por isso não está indicada para ser a sede de governo.
Confrontando a sua situação com a de Bissau o que podemos dizer com verdade é
que tanto esta cidade como Bolama encontram-se relativamente longe de
determinadas circunscrições mas que de ambas se pode ir hoje com toda a
facilidade a qualquer ponto da Guiné porque possuímos uma rede de estradas
magnífica cortando-a em todos os sentidos (…) A ilha de Bissau está separada do
continente por um rio, o Impernal, na região dos Balantas. A ilha de Bolama
encontra-se separada do continente pelo mar. Mas é uma distância pequeníssima:
de Bolama a S. João, no continente, há uma distância menor que a do Terreiro do
Paço a Cacilhas. Quer dizer que quem estiver em S. João, defronte da cidade de
Bolama, está em toda a parte do continente. A situação de Bolama permite
comunicações rápidas com os principais pontos da colónia, tendo até o
governador Caroço projetado com a construção de uma ponte no rio Corubal a mais
importante rede de estradas na parte do continente que fica fronteira a Bolama.
Rigorosamente estão a grande distância de Bolama as regiões de S. Domingos e
Cacheu, apenas. Como, também, ficam a grande distância de Bissau as regiões de
Cacine e Gabu.
Entre
Bolama e Bissau, o mais importante centro comercial da colónia, pode também
haver comunicações rápidas. A experiência foi feita também pelo governador
Caroço, mandando abrir a estrada que de S. João conduz a Enchudé, povoação
fronteira a Bissau. Entre Bolama e S. João, desta povoação a Enchudé e daqui a
Bissau havia então um serviço combinado de transportes marítimos e terrestres,
gastando-se na viagem duas ou três horas. Estes serviços tornavam mais rápidas
e frequentes as comunicações Bolama-Bissau, sabido como é que os vapores da
capitania estão sujeitos a marés.
Uma
das regiões mais ricas da Guiné é Cacine, no Extremo Sul da Guiné, e Cacine,
hoje infelizmente despovoada, está a seis horas de Bolama. E o rico e fértil
arquipélago dos Bijagós está longe de Bissau e a dois passos de Bolama.
Sob
o ponto de vista económico-financeiro, não se pode sustentar, com verdade, a
vantagem da capital em Bissau. Nem a economia da colónia nem a situação do
Tesouro Público, a essa economia tão estreitamente ligada, lucrariam com a
transferência que se pede, antes a riqueza pública sofreria uma diminuição
sensível e as despesas orçamentais em nada seriam comprimidas. Bissau é
realmente o grande centro comercial da Província. Ninguém o nega e os
signatários são os primeiros que desejam o progresso dessa importante e cada
vez mais prometedora cidade. Mas o movimento burocrático em nada contribuiria
para o seu desenvolvimento.
Que
pode ganhar a economia da Província com as repartições públicas em Bissau? E
não será ao menos justo, como se pretende alegar, afirmando que Bissau é que
paga as despesas públicas? Não, pois a verdade é que não é Bolama ou Bissau que
preenche o orçamento, mas sim toda a Província ou, para sermos inteiramente
justos, o indígena, a grande, a suprema riqueza da colónia”.
E os
agentes económicos que apelam ao Ministro das Colónias falam no orçamento,
desmontam as despesas da Administração no intuito de concluir que “da
transferência da capital resultava inevitavelmente a desvalorização da riqueza
pública, desvalorização que se refletia também no orçamento da Província. É má,
hoje, é difícil e quase acabrunhante a situação financeira da Guiné. Pois bem,
o Estado que tem edifícios seus em Bolama no valor de sete mil contos – e
alguns que honram já a cidade colonial – abandonava simplesmente esses prédios,
esses valores, essa riqueza, retirava-se amuado para Bissau e a fantasia desse
amuo custava-lhe dez mil contos. Quem poderá dizer que isso é sensato?
Há
toda a conveniência em estabelecer as capitais das províncias ultramarinas nos
pontos mais salubres, mais tranquilos até. Os funcionários, incluindo o
governador, devem viver nos pontos onde a salubridade seja maior, rodeados do
conforto material e moral que só a família proporciona. Colocar a capital num
mau clima – e Bissau é incontestavelmente um mau clima – é fazer inversamente a
seleção do funcionalismo. Para um mau clima, só podem ir os maus funcionários,
os inferiores, os falhados, porque os funcionários competentes têm outras
colónias que lhes abrem as portas e onde se encontram sob o ponto de vista
sanitário e sob o ponto de vista social melhor instalados.
Bolama,
com o seu ar de velho burgo, docemente ensombrada pelas árvores, que dir-se-ia
estender-nos, ao chegarmos, os seus braços verdes e aconchegantes, com a sua
fisionomia de velha cidade da província portuguesa, é inclusivamente pela
atmosfera de quietude, de paz e de tranquilidade que nela se respira, a cidade
mais indicada para a capital política da colónia.
As
colónias para o tratado de Versalhes existem com um alto objetivo de
civilização. Não para os países incapazes as conservarem abandonadas,
desprezadas, desvalorizadas, em nome de um frágil direito histórico. Não se
pode abandoná-las, nem abandonar ou desprezar uma colónia ou qualquer porção do
seu território. Portugal sobretudo não deve perder de vista este princípio,
conhecidas as cobiças que de todos os lados sofregamente espreitam o nosso
império colonial.
É
possível até que seja escusada e supérflua a nossa defesa de Bolama, porque o
primeiro e o mais ilustre defensor da capital nesta cidade é o senhor major
Leite de Magalhães, distinto governador da colónia, e não é com o seu
assentimento decerto que a sede do Governo se fixa em qualquer outro ponto.
Basta atentar em todos os seus atos desde que chegou a esta colónia, para se
concluir que Sua Excelência só deseja o progresso de Bolama. E não é necessário
referirmo-nos a muitos desses atos como a construção de um casino, que Sua
Excelência patrocina e o novo Palácio do Governo que quer edificado. Logo que
tomou posse do Governo, o senhor major Leite de Magalhães propôs ao Ministério
das Colónias a extinção da comarca judicial em Bissau e a criação de uma
comarca única em Bolama, o que só significa, por parte de Sua Excelência o
desejo de alevantar e engradecer esta cidade. E embora neste ponto nos
permitamos discordar de Sua Excelência, temos a concluir que a significação da
sua atitude é bem eloquente.
É
lícito abandonar esta velha terra portuguesa?”.
Mas
a decisão de mudança só ocorreria mais tarde, a despeito de que na exposição
enviada pela direção da Associação Comercial da Guiné com a Comissão Urbana de
Bolama, a transferência será decidida no final dos anos de 1930 e concretizada
em 1941, já começara, e de forma acentuada, a decadência de Bolama.
No
seu relatório de 1927, o gerente de Bolama de novo alerta Lisboa sobre a
questão da mudança da capital para Bissau, tece o seguinte comentário:
“Se
com essa mudança se fizerem todas as economias em pessoal que a transferência
torna possível, certamente que, apesar daqueles aumentos, apesar da paralisação
do desenvolvimento agrícola, larga margem ficaria para o fomento indispensável
da colónia.
Este
projeto, posto em discussão pública por uma mensagem da Associação Comercial e
Comissão Urbana de Bissau, já o conhecem V. Ex.as nos seus fundamentos, nos
seus processos e nos seus objetivos, pois em devido tempo vos enviámos a
mensagem citada.
Não
pode deixar de notar-se que, se a transferência da capital se tivesse feito,
acompanhada das respetivas economias, se se tivessem distribuído 500 toneladas
de mancarra e se se tivesse deixado o comércio livre de mais encargos no
momento decisivo da solução da sua crise, a transição do estado económico e
financeiro da colónia teria sido quase resolvida. Se a situação não é isenta de
cuidados, também não é isenta de esperanças. Oxalá estas se confirmem”.
Mas
o comércio de Bolama definha, imensuravelmente, é um dado claro no relatório de
1929, ao falar da situação da praça:
“Carateriza-se
por acentuada a falta de dinheiro no mercado, a par da manifesta frouxidão nas
transações de caráter mercantil.
Os
estabelecimentos comerciais estão repletos de mercadorias, mas estas não têm
saída.
O
indígena, a quem outrora serviam todas as bugigangas e artefactos que se lhe
punham diante dos olhos, começou já a descrer da sua própria solvabilidade,
capacitado que apenas lhe resta o mínimo de existência, o que aliás é
rigorosamente exato.
O
fenómeno que se regista em Bolama é o mesmo que se observa em todos os demais
pontos da colónia.
Avizinha-se
a campanha da mancarra, época de maior movimento comercial, mas não havendo até
agora fundada esperança nas cotações que têm vindo do estrangeiro, o comércio
está receoso de que este ano seja o de mais um desengano, no que respeita aos
afamados lucros da mancarra. De facto, se este vaticínio se confirmar, mais se
agravará a crise que está atravessando o comércio local”.
1931
é o ano em que a Guiné é sacudida por uma revolta republicana que deixará
marcas. Os azedumes entre as agências vão crescendo de tom. Em maio desse ano,
Bissau reponta com Bolama que não se devem duplicar as despesas, Bolama devia
enviar tudo para Bissau, era dali que os telegramas seguiam para Lisboa. Porque
Bissau ia progressivamente ganhando autonomia e desafetando-se de Bolama. Em
novembro desse ano, Bissau pede a Lisboa para fazer despesas com móveis e
utensílios:
“Dentro
em pouco será necessário mobilar, sem luxo mas com decência, o primeiro andar
do edifício da agência. A mobília existente não corresponde às necessidades,
embora mandemos restaurar, como é lógico, toda a que possa ser aproveitada.
Nestas condições pedimos e agradecemos a V. Exa. a fineza de autorizar a compra
e remessa da seguinte mobília:
-
Uma mobília de sala completa com o mínimo de doze cadeiras;
-
Uma mobília de sala de jantar com doze cadeiras;
-
Uma mobília de quarto;
-
Dois tapetes grandes para sala;
- Um
dito, para sofá;
-
Seis ditos para camas.
A
necessidade destes tapetes é flagrante, porque o pavimento é de mosaico. As
mobílias terão de ser também grandes, dado o espaço dos aposentos a mobilar.
Não podemos deixar de frisar a V. Exa. que ao pedirmos estes artigos de mobília
não temos em vista rodearmo-nos de luxo – que bem dispensamos – mas tão-somente
prover o edifício com aquilo que julgamos indispensável”.
A
partir de agora, ambas as filiais não perdem oportunidade para dar informações
de diferente índole, como idas e vindas e até psicodramas. É o que acontece em
outubro de 1932 quando Bissau comunica para Lisboa que o diretor dos Serviços
das Obras Públicas, engenheiro Ferreira Chaves, feriu mortalmente com um tiro
de pistola, em Bolama, no dia 24 de agosto findo, o capitão reformado António Augusto
Parreira, chefe da repartição de Agrimensura e Cadastro, depois do que se
entregou à prisão do Sr. Dr. Juiz. Constava que o engenheiro Chaves e o capitão
Parreira, ambos da Comissão Urbana de Bolama depois de uma troca de ofícios em
termos ásperos tinham cortado as relações. Surgira um diploma legislativo que o
capitão Parreira julgava obra do engenheiro Chaves para o ferir. Parreira foi a
casa de Chaves para ter com ele um desforço:
“Diz-se
que este dormia a sesta quando o capitão Parreira lhe entrou pela casa adentro
numa atitude desvairada, e o agrediu.
Depois
de uma breve luta entre ambos, no quarto de cama, junto ao toilete onde o
engenheiro Chaves tinha a pistola, parecendo-lhe, declara o arguido, que o
capitão Parreira pretendia deitar a mão à arma ou com receio desse gesto, o
engenheiro Chaves teria pegado nela para a arremessar para longe e, nessa
altura, segurando-lhe a mão o capitão Parreira obrigou-o a disparar sendo este
atingido na cabeça, falecendo horas depois. Deste facto não há testemunhas e
nós limitamo-nos a reproduzir, em síntese, o que nos têm contado. O engenheiro
Chaves já foi pronunciado sem fiança e suspenso do exercício das suas funções”.
Em
1934 a perda de importância da filial de Bolama já não se pode iludir, o
gerente desta escreve no seu relatório:
“Esta
Filial continua com o seu movimento bastante reduzido e em regime de prejuízo
anual, suportado pela agência de Bissau. É gerida diretamente pelo seu antigo
guarda-livros, Sr. Fernando Coelho de Mendonça, com procuração subestabelecida
pelo signatário, com poderes reduzidos, assinando conjuntamente todos os
documentos, com a exceção da correspondência reservada. O movimento geral
quotidiano limita-se à cobrança de letras a receber, alguns empréstimos sobre
penhores, um reduzido desconto de letras descontadas sobre a praça, movimento
de depósitos à ordem e cobrança de saques ordinários ou telegráficos, cuja
emissão é feita pela agência de Bissau, visto o encarregado da Filial não ter
poderes para sacar. Periodicamente, pelo menos uma vez por mês ou sempre que o
serviço da agência o permite, deve ser a Filial visitada pelo gerente-geral,
como está determinado, para conferência de valores e verificação de serviços. A
Filial, por nossa determinação, remete também a esta gerência segundo as vias
da correspondência reservada dirigida à sede. Esta, a nosso pedido, costuma
também enviar-nos duplicados da mesma correspondência dirigida à Filial. Desta
forma, fica esta gerência ao facto do principal movimento da Filial,
completando a fiscalização com visitas periódicas do gerente-geral”.
A Filial de Bissau torna-se na Wall Street e central de eventos local
Já
não restam dúvidas que a filial de Bolama era uma amostra do passado, Bissau
passa a polarizar a informação até de peripécias e denúncias de comportamentos
irregulares de funcionários da administração colonial. Veja-se um exemplo
elucidativo.
Em
abril desse ano, o gerente de Bissau responde ao governador do BNU sobre uma
queixa apresentada pelo médico José Vitorino Pinto que se queixara por não lhe
terem dado uma avença médica:
“Conhecemos
razoavelmente o Dr. Pinto; mas, com franqueza o dizemos a V. Exa., não o
julgávamos capaz de mentir tanto. O Sr. Dr. Pinto, chefe da repartição de Saúde
desta colónia, médico e major, mentiu a V. Exa., julgando que, mentindo, lhe
seria fácil auferir mais 800 escudos por mês. Todo o mundo sabe na colónia que
o Sr. Dr. Pinto por dinheiro é capaz de ir até ao impossível. Nós, apesar de
tudo, não o julgávamos capaz de torcer tanto a verdade, por 800 escudos.
Calculávamos, é certo, que o Sr. Dr. Pinto se dirigisse a V. Exa., pedindo que
lhe fosse dada a avença médica, invocando fundamentos extraordinários, porque
sabemos que ele é capaz; que mesmo que se queixasse magoadamente de nós, embora
sem dizer a razão por que não demos a avença ainda o compreendíamos; mas que
mentisse com tal descaro e por 800 escudos, é que nos deixou surpreendidos, por
se tratar de um indivíduo que, além de ser médico e chefe de uma repartiçãousa
galões de major.
Nunca
nesta agência e nas que temos gerido se guardaram lugares a médicos do quadro,
avençados. Os médicos do quadro estão sujeitos a transferências por
conveniência de serviço, e era desprestigiante para o médico substituinte e
melindroso para o gerente dizer-lhe que quando o substituído regressasse a
avença lhe seria entregue. Era de presumir que ela não fosse aceite nestas
condições e o prejudicado seria o banco por ter de pagar mais caro o seu
serviço clínico durante a ausência indefinida do privilegiado. Mas, mesmo que
assim não fosse, o Sr. Dr. Pinto embarcou para a metrópole, pela Junta, como
gravemente doente, sem o estar – todos o sabem –, com o propósito firme de não
voltar à colónia, e encaixar-se no lugar de chefe de serviços de Saúde do
Ministério das Colónias, ficando ali anichado à espera do tempo que lhe falta
para a reforma.
Chegou
a Lisboa e, para conseguir os seus fins, obteve da Junta apenas 30 dias para se
tratar, apesar de ter saído da colónia em estado grave…
Fez
o que lhe foi possível, mas como em Portugal o regime de compadrio vai
acabando, o Sr. Dr. Pinto não conseguiu o nicho almejado e teve de embarcar,
não o fazendo no primeiro vapor após a licença porque na véspera do embarque
adoeceu. O Sr. Dr. Pinto quando embarcou da Guiné já sabia que a avença do
banco tinha sido dada ao Sr. Dr. Pereira Brandão, que o substituiu em todos os
serviços. Foi para a metrópole e nada nos disse de lá sobre o seu regresso e
nem sequer avisou disso o colega que o substituiu nos serviços públicos. Desde
que ele regressasse, dava-se fatalmente movimento no quadro: o Dr. Brandão iria
para Bolama, como de facto foi, e em Bissau ficariam o Dr. Pinto e o Dr. Leite
de Noronha, como delegado de Saúde. Este, avisado pelo chefe interino, Dr.
Brandão, veio ao banco pedir a avença no caso de ser deslocado o seu colega.
Como o Sr. Dr. Pinto nada nos tinha dito nem escrito, dissemos ao Sr. Dr.
Noronha que lhe daríamos a avença se fosse transferido o Sr. Dr. Brandão.
Muitos
dias depois do seu desembarque, o Sr. Dr. Pinto veio procurar-nos para nos
cumprimentar (!) e pedir a avença do banco. Se ele sabia que era costume
reservar-lhe a avença porque a veio ele pedir depois de chegar? Parece que
tendo a consciência de que a avença lhe estava ou deveria estar reservada, nada
mais tinha a fazer do que esperar que o chamássemos quando dos seus serviços
carecêssemos.
Dissemos
que por ignorarmos o seu regresso já a tínhamos dado ao Dr. Noronha, porque a
tinha pedido, como era costume. Esta entrevista decorreu o mais cordialmente
possível. Pela carta de V. Exa. depreendemos que os factos não foram assim
relatados na queixa magoadamente formulada pelo Sr. Dr. Pinto. Mentiu, pois,
convencido que V. Exa. imediatamente nos ordenava a entrega da avença, sem nos
ouvir, estalando-nos a castanha na boca. Enganou-se. V. Exa. entendeu que o seu
gerente – que se orgulha de ser correto, leal e verdadeiro, não deveria ser
desprestigiado e mandou-o ouvir. Bem-haja por isso e pela confiança com que
sempre nos tem honrado.
Dissemos
que o Sr. Dr. Pinto não convinha aos interesses do banco. Não convém porque é
chicaneiro, malcriado e pouco atencioso. Há tempos, o signatário passou um mês
a levantar-se e a deitar-se com impertinentes cólicas hepáticas. Coincidiu ter
de o mandar chamar, por duas vezes, às nove ou dez horas da noite, em noites
diferentes. Ao empregado que o foi chamar, respondeu com esta grosseria: “O Sr.
Machado parece que está à espera que eu me deite para me mandar chamar”. De uma
das vezes em que o signatário se contorcia com dores violentíssimas na cama
houve necessidade de dar uma injeção de morfina. Quis o referido médico ferver
a seringa, voltando-se para a esposa do gerente disse-lhe: “Vá buscar água!”,
num tom imperioso e malcriadamente. Só mais tarde teve o signatário
conhecimento destas grosserias, porque se na ocasião lhe fossem contadas, o Sr.
Dr. Pinto teria descido apressadamente as escadas da residência”. Já ia longa a
carta para o governador em Lisboa, e o gerente lança a estocada final sobre o
Dr. Pinto:
“Um
facto, dentre mil conhecidos, queremos ainda relatar que o definem como médico
na sua missão humanitária, a quem o Estado paga para prestar assistência aos
indígenas:
Um
alfaiate indígena enterrou uma agulha de croché grande, atravessando-a na unha,
de lado a lado. Correu ao hospital cheio de dores para lha extraírem. O Dr.
Pinto perguntou-lhe se levava dinheiro. Que não, que não tinha, que era pobre,
mas que estava cheio de dores, respondeu o indígena. Então, era necessária uma
guia da administração do concelho. Era domingo. A administração estava fechada.
O indígena foi-se sem tratamento. Um criado do Dr. Marques Mano, chamado
Bernardo, levou um tiro nas costas. Foi ao hospital para ser tratado. Pergunta
fundamental do Dr. Pinto: “Trazes dinheiro, trazes?”. Também este não levava
dinheiro. Uma pincelada de tintura de iodo na ferida e mandou-o embora. Mais
tarde, cicatrizou a ferida mas sentia dores horríveis. Foi ao hospital à
consulta, mandado pelo Dr. Marques Mano. O Dr. Pinto foi gentilíssimo com o
indígena porque já havia quem pagasse”.
Chegou
o momento de proceder a uma recapitulação, para benefício do leitor. O BNU abre
uma delegação em Bolama, capital da colónia, em 1903. No Arquivo Histórico do
BNU não existe qualquer documentação anterior a 1917, ano em que é constituída
outra delegação em Bissau. Daí a ausência de documentação sobre questões
fundamentais, como é o caso da entrada da colónia na I Guerra Mundial ou
referências às campanhas do capitão João Teixeira Pinto. Cedo se irá verificar
uma crescente rivalidade entre a delegação e a Filial, Lisboa ver-se-á obrigada
a delimitar as áreas de atuação. A generalidade dos comentários críticos ou
hipercríticos assinados pelos responsáveis do BNU em Bolama ou Bissau
transcendem o entendimento da comunicação hierárquica que era proverbial na
época, devia haver um protocolo discreto que autorizava os gerentes a contarem
com toda a minúcia o que julgavam de mais relevante de todos os aspetos da vida
socioeconómica e política da colónia. Daí a infinidade de verbetes a anunciar
partidas e chegadas, a comunicar o exílio de Abdul Indjai ou o que um gerente
em Bissau chama a vida imoral do governador Carvalho Viegas. Os gerentes não se
podiam imiscuir na política e a prova disso é uma carta enviada em 31 de março
de 1931 por Vieira Machado para o gerente de Bissau:
“A
propósito do incidente ultimamente ocorrido entre vossas senhorias e o senhor
intendente dessa cidade, de novo recomendamos que ponham de parte todas as suas
inimizades pessoais, sempre que se trate de assuntos que se prendam com o
banco, que não queremos ver envolvido, de longe ou de perto, em semelhantes
assuntos.
Também
mais uma vez – que esperamos que seja a última – proibimos vossas senhorias de
se imiscuírem na política local, a que devem ser de todo alheios, evitando,
assim, escusadas desinteligências ou conflitos com quem quer que seja.
Procurar
viver no melhor entendimento com todos, deve ser a constante preocupação de
vossas senhorias, deste modo se poupando e poupando o banco a quaisquer
dissabores”.
Por
esta época vai ganhar destaque a documentação expendida a partir de Bissau pelo
gerente Virgolino Pimenta, era como se de Bissau se visse à lupa tudo o que
podia ser entendido como mais destacável, para o bom e para o mau. Em 1938 este
gerente envia com o caráter de absolutamente confidencial um documento
explosivo ao presidente do Conselho de Administração do BNU, nada de mais
demolidor se podia escrever sobre o governador Luiz de Carvalho Viegas:
“A
imoralidade do seu viver particular é, positivamente, afrontosa para a vida
moral da colónia, pelo reflexo que tem na sua vida pública que é também
imoralíssima porque nela campeia a mentira e o embuste político, próprio de
indivíduo que serve por mero interesse uma situação política mas espera ficar
bem com outra que supõe poderá vir, pelo pior que seja, contanto que ele a
sirva e se sirva a si próprio”. E mais adiante diz que o governador está
rodeado da pior escumalha que há na colónia e que dela se serve para todos os
fins. “E ela serve-se dele para conseguir os seus fins também. Assim é o que
vai por esta pobre Guiné e se conhece bem, mas contra o que não pode haver
reação porque o honrado que a denunciar é esmagado pela matilha insaciável”.
Vejamos
os aspetos morais denunciados por Virgolino Pimenta.
Logo
o chefe de gabinete, Neves Ferreira, cujo estado normal é de permanente
embriaguez. “Vivendo publicamente com uma meretriz, em casa do Estado, fazia
falcatruas por onde podia. Dois dias depois de eu assumir a gerência desta
agência queria um crédito de dez contos alegando que pagaria com dinheiro que o
Estado lhe devia, o que era falso. É claro que não foi atendido”.
Agora,
o mais inconcebível atentado à moral. “No Hospital de Bolama, entra a amante do
senhor governador para o Dr. Eurico d’Almeida lhe fazer um aborto, conforme
ordem superior que recebeu. Sai-se mal. A mulher fica em perigo. Chama-se o
médico Pimentel que, com desassombro e para não ficar amarrado ao que de mal se
passar, grita alto e bom som que vai ali porque uma vida está em perigo e não porque
tenha nada a ver com o aborto. Até à data não deixou de ser perseguido pelo
governador Viegas. Mais tarde, uma desavença entre o médico abortador e o padre
de Bolama, um pobre homem de fraquíssima figura; aquele queixa-se ao senhor
governador que este lhe atira à cara o aborto. O senhor governador mandou o
médico esbofetear o padre e este cumpriu. O padre pediu justiça mas não a houve
de parte nenhuma”.
Para
o gerente, o governador é um dos homens mais vingativos do mundo, além de
lúbrico. O próximo atentado à moral vem do Gabu e diz o gerente sobre a região
dos Fulas: “raça esta que tem, segundo os entendidos, as mulheres mais esbeltas
da Guiné. Passava muito por lá o senhor governador Viegas e o administrador
parece que não era esquivo a forçar indígenas a prestar vassalagem total ao seu
senhor. Apareceu uma Fula, tipo estátua, e Sua Excelência mandou-a seguir para
o Palácio do Governo. Pouco depois, a Fula retirava-se fazendo agravos sérios
ao senhor governador e transmitindo-os ao administrador que fez deles eco.
Resultado, o administrativo foi perseguido como se fosse cão danado, esteve
meses e meses sem pão para a família e continua perseguido”.
A
próxima história passa-se em Bolama em que há um administrador crónico que é
sabedor e esperto. Obriga os indígenas da região a darem-lhe dinheiro. “É
público que no tempo da campanha de arroz persegue os indígenas obrigando-os a
irem vender o produto a comerciantes de quem recebe dinheiro. Ao homem que
vendia pólvora aos Canhambaques e que hoje é o herói “da pacificação” que nunca
existiu senão em informações ao senhor Ministro – falsas como judas – exigiu o
administrador de Bolama, só de uma vez, 13 a 14 contos para tapar um furto que
tinha no cofre a seu cargo. Depois, não lhe pagou e exigiu-lhe mais dinheiro,
que ele foi obrigado a passar, declarando que não lhe deve nada”.
Vem
agora à baila uma figura bastante conhecida na época, Landerset Simões: “Para
os Bijagós é enviado o chefe de posto Landerset Simões, com ordem de mandar
relatos em cima de relatos garantindo a pacificação dos Canhambaques. O homem
chega lá e quase não os vê. Não tem sequer quem lhe vá buscar uma bilha de
água. Não encontra respeito nem subordinação da parte dos indígenas. Castiga
severamente um, mais insubmisso e atrevido. Escreve claro, a dizer que, na
verdade, era mentira os Canhambaques estarem submissos. Processo feito, com
andamento rápido. Conselho disciplinar formado por gentes submissas a ordens
que, antes do julgamento, marcavam sentença. Reúne tal tribunal e porque um membro
se insurge a sentença não podia ser a que se ordenara. Lavra-se a sentença
esperada pelo ajudante do senhor governador que a leva urgentemente a Bolama e
volta com ordens terminantes para que os doutos juízes lavrem imediatamente
outra sentença à vontade do governador. Assim se fez”.
O
rol de imoralidades continua: “Nomeia-se chefe de posto interino um imoral de
nome Ruy Moutinho Teixeira que não merecera confiança numa interinidade que
fizera na alfândega. Chegado ao posto, veste-se de farda e sapato de polimento
e vai participar aos sobas o seu casamento, exigindo 500 escudos a cada um, sob
ameaças. Pouco depois, alia-se a um cadastrado mulato – Mário Lopes – e fazem
contrabando de pólvora, do chão francês para o nosso, obrigando os indígenas a
carregá-la e a distribuí-la. Um alfandegário descobre o crime – bem grave – e
denuncia-o. Querem calar a denúncia mas o funcionário não retira a queixa. O
criminoso é julgado por um tribunal especial – especialíssimo, cujo presidente
me disse horas antes da sessão principiar: ‘Venho salvar este coitadinho, por
ordem do senhor governador’. Devido a uma atitude de um dos componentes do
tribunal, o homem não pode ser absolvido e foi condenado numa pena leve e
ficou… preso a fingir até à extinção da pena. O registo criminal não acusa este
crime porque o senhor governador intimou o tribunal a não fazer o respetivo
boletim para o criminoso sair logo da colónia com um boletim limpo”.
Em
tudo quanto à corrupção, Carvalho Viegas está presente, é o que diz o gerente
do BNU. E vem mais uma história:
“O
senhor governador é íntimo de um inspetor administrativo que veio fiscalizar os
serviços da Guiné. Chama-se capitão Salvação Barreto e eu conheço-o do tempo em
que, sendo ele administrador do concelho de S. Tomé, se locupletou
antecipadamente com as percentagens do imposto indígena e queria depois que eu,
como gerente do banco, lhe emprestasse esse dinheiro sem garantia e sem ninguém
saber (sic), por uns dias (?) a fim de se safar às malhas de um processo-crime.
Este homem é uma nulidade insanável. A sua incapacidade é notória. A sua
moralidade é duvidosa. Como inspetor, alojou-se na casa particular dos que
vinha inspecionar, bebendo e comendo à custa deles, para que a eles lhes ensinasse a fazer o serviço de inspeção. É
espantoso mas é assim mesmo. Caiu num ridículo tremendo. Íntimo do senhor
governador Viegas, era-lhe tão leal que me chegou a vir avisar de propósito que
aquele me andava a abrir o meu correio particular desde que eu tinha chegado à
colónia, porque se supunha que eu fosse um espião do Sr. Dr. Francisco
Machado”.
Seguem-se
mais denúncias que envolvem o secretário da Administração de Bolama que se
apropria de dinheiro à farta, ninguém se queixa, têm medo das perseguições. No
dizer do gerente de Bissau, até o capitão Velez Caroço, familiar do antigo
governador, secretário dos Negócios Indígenas, vende munições e carabinas, tal
como aconteceu na revolta dos Felupes. A podridão chega às obras públicas,
oiçamos Virgolino Pimenta:
“Nas
obras públicas é engenheiro diretor interino um celebérrimo Alambre. Rouba-se
por todos os lados. O secretário Leite de Magalhães denuncia o roubo, o ladrão
é preso. Era dos mais íntimos do senhor governador Viegas. Procede-se com todo
o vigor, para dar brado. Passa o tempo, o ladrão é solto, o processo não anda.
O gatuno volta à intimidade do senhor governador Viegas. Pronunciado ainda,
entregam-se-lhe as obras do Estado. As roubalheiras crescem então às
culminâncias. O ladrão ganha (?) centenas de contos fazendo as maiores
porcarias que pode. Na abundância de dinheiro, nasce a abundância de cerveja e
uísque – é tudo para o pessoal das obras públicas. Ao denunciante Magalhães, o
ladrão empresta alguns contos. Tudo se sabe mas nada se coíbe”.
É um
rol extensíssimo, vamos continuar. Quem estuda Carvalho Viegas e todos os
trabalhos que nos legou fica convencido que houve por ali um governador
íntegro. Virgolino Pimenta tinha o cargo em jogo, caso se lhe soltasse injúria
ou calúnia. É por isso que se deve atribuir muita atenção a este documento
carregado de vitríolo e trotil.
Continua-se
a dar espaço ao documento intitulado “Absolutamente Confidencial” que o gerente
do BNU em Bissau enviou em 10 de outubro de 1938 para o presidente do Conselho
Administrativo, em Lisboa. Nada, absolutamente nada, de toda a documentação
consultada no Arquivo Histórico do BNU, tem carga tão virulenta como este
documento, não sei se existe um libelo acusatório tão devastador sobre a
governação de Carvalho Viegas como este. O gerente não podia mentir nem
manifestar ressentimentos, seria o seu funeral profissional. E da leitura do
vasto documento também se pode inferir que ele sabia da poda, dos nomes
implicados, políticas, organização de serviços, como se vai ver adiante.
“Bissau
progride. O senhor governador Viegas faz tudo o que pode, à socapa, para
demorar a capital em Bolama visto Bissau ter altivez para não lhe prestar
vassalagem às suas indignidades e porque a amante – telegrafista do Estado –
quer estar em Bolama. Para despistar, mandam-se algumas repartições de Bolama
para Bissau, mas sem se curar de haver ou não haver alojamento para o pessoal.
Há chefes de serviços que vivem em casas-pocilgas. O senhor governador vai a
Lisboa, e manda que a amante o aguarde ao serviço em Bissau. Gastam-se seis
contos numa moradia dentro da própria repartição dos correios e lá se instala a
‘dama’ que entra a impor a sua qualidade de ‘governadora’.
Bissau
tem altivez e não aceita tais afrontas. A dama sente-se mal só com a
subordinação total dos funcionários pequenos e de um ou dois chefes de serviço.
Quer a subordinação geral. Não a tem e o senhor governador Viegas manda que
seja transferida de novo para Bolama. Mas manda em cartas para diversos
íntimos, pois o Encarregado de Governo é tão alta pessoa moral que ele nem se
atreve a tocar-lhe em tal miséria. Manda então a amante pedir-me que seja eu
porta-voz dos seus desejos junto do Encarregado de Governo. Finjo que não ouvi
nada. Tudo é público, tudo é vergonhoso. Sob o aspeto moral, haveria mais.
Nunca se acabaria. Mas o que está escrito chega”.
Virgolino
Pimenta é um perfeito conhecedor das alterações socioeconómicas que se estão a
operar no continente, vê-se que sabe do que fala a propósito de obras públicas,
evolução agrícola e tem noções firmes sobre os transportes dentro da Guiné,
como escreve:
“O
volume enorme dos transportes, na Guiné, é feito pelos rios e canais que a
retalham. No entanto, o tráfego pelas estradas é importantíssimo, do Interior
para o porto de Bissau, a cidade mais comercial e, na verdade, a verdadeira
capital da colónia. Centenas de automóveis e camiões afluem à passagem forçada,
por ser a única, no canal do Impernal, que liga o continente à ilha de Bissau.
Para
tal passagem há apenas uma pré-histórica jangada que em dias de festa pode
transportar dois automóveis – não sem perigo – ou uma camioneta pouco carregada.
Centenas
de metros abaixo desta passagem há um princípio de construção de uma ponte
metálica onde se gastaram milhares de contos que hoje estão perdidos por se ter
abandonado a obra.
Mais
centenas de metros acima, há um estreitamento de um canal cuja margem do lado
de Bissau forma um banco de lodo com sete ou oito metros de fundo e cuja margem
do lado do continente tem pouca lama e terra firme. Já está autorizada a verba
para a construção da ponte, utilíssima para a vida económica da colónia. Somente
as obras públicas da colónia são absolutamente incompetentes para fazer a
ponte. E o tempo passa, as formalidades legais farão sumir a verba e a ponte
ficará para as calendas gregas. E a economia da colónia continuará sofrendo.
Como
despesa inútil que afoga, sem recuperação, umas centenas de contos, as célebres
oficinas navais de Bolama ferem duramente a moralidade económica da colónia.
Não fazem quase nada de bom. Estragam materiais em reparações que nada duram,
se é que não destroem mais o que é reparado. É exemplo frisante o vergonhosos
estado em que se encontram os vaporinhos do governo que já levam seis e sete
horas a ir de Bolama a Bissau com perigo iminente para a vida de quem neles
anda. E tudo isto porquê, porque o senhor governador Viegas se serve das
oficinas navais para fazer guerra à indústria particular da Sociedade
Industrial Ultramarina, sem se importar com honestidade na governação nem na
economia da colónia.
E os
observatórios oceanográficos e meteorológicos? Onde estão? O que fazem? Nada,
mesmo nada. Apenas se sabe que há observadores a ganhar e despesas a correr.
Mas se dos elementos desses serviços se quer saber a que horas é a maré alta ou
baixa ou de que banda está o vento tem que se perguntar a um Manjaco o que há
de marés e tem que se deitar um papel ao ar, para ver que rumo leva. E sobre o
rebocador novo, que custou uns milhares de contos? Ainda está a fazer. Quando
cá chegar, pouco ou nada se fará com ele mas há anos e anos que da economia da
colónia saem contos para pagar ao seu comandante que leva os dias e os anos
encostado às janelas da capitania, sem ter nada, mesmo nada, que fazer.
E
uma oficina dos serviços de transportes terrestres que custa à economia da
colónia 292 contos? O que ali se estafa em material! Carro que lá entra, ou
fica pior ou morre de vez. Existem também para servirem de arma, na mão do
senhor governador Viegas, contra a indústria particular. Mas, mais alto, bem
mais alto do que tudo isto, estão as “granjas do Estado”.
Aproximamo-nos
da II Guerra Mundial. No limiar da guerra, o Governo de Lisboa determinou que a
Guiné tivesse três companhias de caçadores, uma companhia de engenhos (pequenos
veículos motorizados a lagartas, para todo-o-terreno, abertos e geralmente
armados de metralhadora) e uma bateria de artilharia. Nessa época aparece o
transporte aéreo, chegaram os hidroaviões da Pan-American Airways, usavam
Bolama para chegar e partir.
Um
dos aspetos mais relevantes de todo este acervo documental é o peso que os
gerentes dão a acontecimentos que escapavam ao tratamento oficial, são
inexistentes nos jornais ou outras publicações. Veja-se este caso curioso:
“Por
se tratar de factos passados, em parte, com gentio da nossa propriedade de
Bandim, damos conhecimento do que se segue.
Há
uns 10 dias, por uma circunstância do acaso, soube-se que tinha sido
assassinado perto de Bissau um indígena que andava a vender panos pelo mato.
Das averiguações, resultou conhecer-se que um outro indígena, ex-soldado do
Corpo de Polícia desta cidade, era o assassino mas, ao mesmo tempo, veio a
saber-se que além desta morte, já tinha praticado, pelo menos, umas oito mais.
Preso,
declarou então que procedia aos assassinatos por razões de ordem ritual, a
instigação do balobeiro, ou seja o feiticeiro, do régulo da nossa propriedade
de Bandim.
Declarou
que ele tinha que matar um cento de pessoas, pouco mais ou menos, de todas as
raças, incluindo quatro europeus. Com o sangue das vítimas, faziam então os
régulos e os seus súbditos, por intermédio do balobeiro, oferendas ao Irã, seu
Deus, para que este acabasse com o poder dos brancos na ilha de Bissau e
tornasse a dar o poderio antigo dos Papéis da referida ilha.
Implicados
em tudo, segundo o senhor administrador de Bissau nos informa, estavam o régulo
de Bandim e outro do Biombo e um chefe de Safim. Os dois primeiros foram presos
e levados para o posto de Safim. O de Safim cortou a garganta para não falar.
Está à morte. O de Bandim, no dia imediato à prisão, morreu. As autoridades
dizem que teve uma congestão. O filho e outros indígenas contam que foi
manducado (morto à paulada) pelos Mandingas do nosso ex-servente Borah, tenente
de segunda linha e auxiliar do senhor administrador na perseguição e prisão dos
culpados ou suspeitos. Vamos pela segunda versão”.
De
acordo com este documento, havia um conflito latente entre Papéis e Mandingas.
Mas outras surpresas estavam para vir, apareceram à porta do banco muitos
indígenas de Bandim a solicitar, visto ser o banco o proprietário das terras
onde moram, que se pedisse ao senhor administrador a entrega do corpo do régulo
para se fazer o ‘choro’. O gerente de Bissau ficou intrigado por alguns desses
Papéis estarem vestidos de camisas castanhas. Segue-se um episódio de uma quase
ópera bufa. Apareceu o administrador que trazia um pedido do governador, ao ver
aquela gente de camisas castanhas pensou que se tratavam de uma fação política,
excitou-se e quis prender todos, os Papéis fugiram. Ficou um preso que
esclareceu, estupefacto, que não havia nenhuma intenção de provocar motim pelo
facto de usarem camisas castanhas. Não deixa de surpreender as apreensões do
senhor administrador, sugerindo qualquer associação entre as camisas castanhas
dos Papéis e porventura a tropa de choque dos camisas castanhas nazis…
Bissau e a II Guerra Mundial
Entre
1940 e 1941 cruzam-se ainda relatórios de Bolama e Bissau, a agência e a
Filial, mesmo dispondo de um encarregado geral, pretendiam mostrar serviço a
Lisboa. Veja-se um curioso texto, alusivo à situação do mercado, saído de
Bolama, é a primeira parte do relatório de 1940:
“Arroz
– Abriu a campanha do mês de janeiro último. As chuvas faltaram em algumas
regiões de Tombali. Em Cubumba e Cabelol e para os lados de Caboxanque os
arrozais foram plantados já tarde.
Na
altura das colheitas, começou a aventar-se que era escassa a produção desse
ano, o que logo ao nosso regresso à colónia fomos verificar pessoalmente,
correndo algumas tabancas cuja produção conhecíamos dos outros anos. Realmente
os celeiros não tinham muito arroz mas quem quisesse ver encontraria as medas nas
bolanhas, à espera de condução e debulha.
O
indígena produtor de arroz, vendo o preço exagerado da mancarra, estava a
jogar, à espera que lhe fizessem preço relativo, sob o ponto de vista de
acréscimo, ao seu produto. O pequeno comerciante, o que compra diretamente ao
indígena, queria convencer também o industrial que havia muita falta de arroz,
para este lho pagar melhor, caso lhe quisesse comprar.
As
autoridades caladas, mas agradando-lhe este estado de coisas de onde poderia
resultar mais dinheiro na mão do indígena e este a poder pagar mais e melhor os seus impostos. O
Governo da colónia, confidencialmente nos foi dito, pediu ao Ministério das
Colónias notícias sobre futuros preços de arroz na metrópole. Se fossem mais
altos, obrigavam-se aqui os compradores a pagar mais caro.
Sobre
exportação, nada se sabe. O Senegal deve precisar de arroz porque lhe há de
faltar navegação que transporte o arroz da Indochina e que costuma ficar, em
Dacar, mais barato que o arroz da Guiné!!! A Gâmbia precisa de 6 a 7 mil
toneladas de arroz e já o pede mas quer barato porque o indígena não tem
dinheiro para pagar mais que no ano passado pagou o arroz das colónias
francesas e algum das inglesas que para lá ia”.
Não
deixa de ser elucidativo o relatório de Bolama referente a 1941. Descreve o
pessoal da Filial; fala da natureza e valor das importações e exportações, logo
adiantando que “Tendo sido transferida para Bissau a Repartição de Estatística
foi-nos impossível colher os elementos necessários ao desenvolvimento do movimento
geral de importação e exportação que transitou pelas alfândegas da Guiné;
quanto a transportes, relativamente à via marítima, havia dois vapores do
Estado, já velhos, para passageiros e carga, lanchas à vela e motor das casas
exportadoras e a ligação de Bolama para Bissau e algumas circunscrições é feita
por pequenos vapores, o ‘Geba’ e o ‘Bolama’”. Falando da via aérea, crê-se ser
do maior interesse reproduzir a informação do gerente da Filial:
“Um
pequeno avião que liga a colónia em serviço de governador, servindo oficiais e
alguns particulares, quando urgente e de extrema necessidade. A Pan-Am liga
esta colónia com a metrópole pelo porto de Lisboa e com as Américas do Sul e o
Norte, pelo porto de Natal e Belém, no Brasil. Dá-nos esta empresa oportunidade
para dizer a V. Exas., depois de ouvir pessoas que de perto acompanham o seu
movimento, o seguinte.
A
esta importante sociedade norte-americana de navegação aérea concedeu já o
Governo português grandes facilidades para a utilização do aeroporto de Bolama.
A importância destas facilidades torna-se cada vez mais evidente pela posição
de Bolama em relação ao continente americano e as distâncias que a separam dos
aeroportos de Natal e Belém e ainda com escala para futuras ligações dentro do
continente africano. A mesma sociedade criou este ano mais algumas bases de
escala neste continente, entre elas uma no Lago Fischerman, na Libéria, e outra
no Congo Belga, prevendo-se para um futuro próximo grandes carreiras aéreas
transoceânicas.
Na
impossibilidade de conseguir que os capitais portugueses se arrisquem a
empresas desta natureza, é de louvar a atitude do Governo português,
facilitando à Pan-Am o estabelecimento destas carreiras.
Todas
as facilidades concedidas são poucas se considerarmos não só o desenvolvimento
que pode advir para Bolama, mas também que na Libéria, República criada pela
América do Norte, situado um pouco ao Sul da Guiné, tendo eles todas as
facilidades, só este aeroporto pode ser
preferido pelas condições naturais e pelo seu apetrechamento.
Não
devemos esquecer também que a ocasião é a mais própria para eles se
estabelecerem em Bolama, devido ao estado de guerra em que a maior parte das
nações estão envolvidas.
Um
pouco mais ao Norte da Guiné está o importante porto de Dacar, que já tirou a
navegação marítima a S. Vicente do Cabo Verde e não se poupariam os franceses a
esforços para tirarem a navegação aérea de Bolama, se não houvesse a guerra.
Portanto,
repetimos, todas as facilidades são poucas, dada a importância destas carreiras
e dos benefícios que delas pode vir a ter a Guiné”. E continua a exaltar Bolama
e o transporte aéreo:
“Antes
de terminar a guerra é que se deve intensificar o apetrechamento do aeroporto
de Bolama, onde já o Governo gastou milhares de contos apesar de pouco se ver
feito.
A
maior parte dos maquinismos e aparelhos para serviço do aeroporto encontram-se
ainda encaixotados e armazenados, por montar, nos armazéns da alfândega, embora
já despachados há mais de um ano.
Concluídas
as obras que faltam no aeroporto de Bolama, é de esperar que os americanos,
para não terem de gastar mais dinheiro na Libéria, escolham Bolama, não só para
escala, como para entroncamento das carreiras transoceânicas”.
Mas
a sorte da delegação de Bolama estava decidida, doravante é a delegação de
Bissau do BNU que vai estar no comando das informações para Lisboa. Haverá
eventos que obrigam o gerente de Bissau a ir a Bolama, é o caso da passagem por
Bolama de D. Duarte Nuno de Bragança, ia a caminho do Brasil, para se
consorciar com uma princesa brasileira, foi acolhido nas instalações do BNU. O
Ministério das Colónias não podia envolver-se diretamente. Deram-se ordens
confidenciais para que o gerente da agência de Bissau e a sua mulher fossem
receber D. Duarte Nuno na casa do BNU em Bolama. Chegado ao Rio de Janeiro, D.
Duarte Nuno agradeceu a hospitalidade recebida.
São
merecedores da melhor atenção os relatórios elaborados em plena II Guerra
Mundial, todos juntos dão-nos um quadro da vida económica, social e financeira
da colónia. Logo o relatório da agência de Bissau de 1942, no seu primeiro
semestre. Começa por dizer que a situação da praça é pouco mais ou menos a que
já se registava no fim do último semestre de 1941. Há especulação: “O comércio
nacional tem mostrado uma atividade interessante, animado, talvez, pelos preços
exorbitantes que está conseguindo mercê de uma ação fiscalizadora de fraca
intensidade, por parte do competente organismo regulador de preços. Daqui
resulta o registo de um aumento de custo de vida pouco compatível com os
vencimentos do funcionalismo e da classe comercial”. Aborda o comércio sírio:
“Pela natureza especial dos seus componentes e até pela sua localização por
essa colónia toda, são os comerciantes sírios quem estão em condições de melhor
trabalhar às claras ou em regime de contrabando com as vizinhas colónias
francesas”. Estas vendas de mercadorias feitas pelos comerciantes portugueses e
sírios saldam-se em bom dinheiro, o relatório refere quase 9 mil contos em
entradas de ouro. E deixa uma observação: “Atingiria este comércio proporções
dignas de registo não fora o entrave feroz que lhe opõe o consulado inglês. O
comerciante português ou sírio que viva apenas da compra dentro da colónia e
não importe diretamente, não era até há pouco grandemente afetado pelas ações
dos ingleses. Porém, a rede de espionagem destes é grande em toda a colónia e
vai apanhando todos os que vendem para o chão francês e apanhados ficam pouco
menos que liquidados pois que é imposta ao comerciante grande fornecedor
daquele, que não lhe forneça mais e este, seja português ou sírio, tem que se
subordinar prontamente. Não se subordinando, nem obtém licenças de importação
nem de exportação e vê os seus negócios locais paralisarem também, visto que os
outros comerciantes querem fugir à mesma direção do consulado britânico contra
si. E se algum dos renitentes precisa de embarcar para fora da colónia, mesmo
que seja português e mesmo que tenha todas as licenças do nosso governo para
embarque, este é terminantemente proibido pelo consulado britânico”.
O
relatório aponta agora, e uma vez mais, para os problemas da agricultura, o
gerente não escusa as suas considerações pessoais:
“Como
sempre, a colónia vive da sua agricultura. Mas vive da colheita do que o
indígena semeia e não da cultura que resulta de trabalho de europeus, nem da
orientação que estes deem àquele. Assim, o indígena vai suprindo com o viático
que lhe fornece a experiência e a rotina aquilo que o europeu não lhe fornece
em ciência, e este vai-se limitando à função única de comprador do que aquele
lhe vende. Cultura organizada é coisa que não existe na colónia. Em nosso
modesto entender, esta falta pode resultar, talvez e pelo menos pelos seguintes
fatores:
–
Nada há estudado sobre climas e sobre terra para melhor se ver o que mais
convém aos produtos e aos sistemas de produção e mesmo quanto à defesa das
culturas contra os seus principais inimigos. Se há, não conhecemos, nem vemos
que se pratica;
–
Não há mão-de-obra fácil, na educação do preto, por meio de uma sábia política
indígena, para este a fornecer no sentido de uma maior valorização económica da
colónia que automaticamente lhe traria a ele próprio um enriquecimento de que
poderia resultar até, como consequência imediata, a elevação do seu nível de
vida;
–
Não aparece capital a fomentar qualquer empreendimento que surja, já pelas duas
razões atrás indicadas, já pelos insucessos de experiências anteriores em que o
arrojo sobrelevou as outras caraterísticas desses insucessos.
Remediando-se
este males, e não vemos que seja impossível dar-lhe remédio, tanto mais que, o
maior deles, em nosso modesto entender, é o disciplinar o indígena quanto a
sistema de trabalho orientado por europeus, e o indígena é o fator supremo,
poderia a Guiné vir a ser uma das mais ricas colónias de Portugal.
Fala-se
em civilizar o indígena e está bem. Mas civilizá-lo fora do seu conceito de
civilização sem lhe dar a necessária riqueza e esta só ele a poder tirar do seu
trabalho, não será apenas uma ideia vaga, imprecisa de que não resultarão
finalidades práticas?
Não
carecemos exemplos de ninguém. Não nos precisa interessar o sistema inglês de
passagem da função colonizadora à função administrativa dos povos que submeteu.
Menos
nos pode interessar o sistema alemão que faz arrancar em poucos anos 5 mil
toneladas de cacau aos Camarões ou 20 mil toneladas de fibras ao Este Africano
(é provável que o relator estivesse a pensar no império alemão da África
Oriental constituído pelo Tanganica, Ruanda e Burundi, que se extinguiu com o
Tratado de Versalhes).
Temos
os nossos próprios métodos que servem de sobejo para o caso em questão e temos
aqui ao lado uma colónia onde se morre de fome de vez em quando e cujo excesso
populacional talvez visse até com agrado a sua transferência para aqui, onde a
terra lhe daria tudo e onde eles criariam riqueza que não existe agora (…)
Temos tido sempre em mira o fito de criar riquezas melhorando a condição de
tantos milhares de homens que nos estão sujeitos, livrando-os daquela
inferioridade económica que fatalmente arrasta a inferioridade moral.
Com
esta autoridade, que é preciso reforçar na Guiné, trabalhando mais e melhor,
temos fé em merecer o respeito alheio, no apuro final a que vai dar lugar o fim
da guerra quando chegar”.
E
postas estas cogitações sobre o modelo de colonização que se deve instituir na
Guiné, o relator passa aos aspetos práticos:
“A
cultura do arroz, intensificada, é certo de alguns anos a esta parte,
mostrou-se este ano insuficiente e Bissau tem assistido ao espetáculo
degradante de ver massas de indígenas, até debaixo de chuvas torrenciais, dias
e dias à espera de comprarem um quilo de arroz, base essencial da sua
alimentação. E, a maior parte, não o obtém.
Registou-se
fome. Teve de se recorrer a Angola para mandar milho que cobrisse um pouco esta
miséria.
Dois
factos positivamente anormais e filhos de uma desorganização de coisas que se
repetirá todos os anos se não se lhe acudir.
A
falta de arroz atribui-se à falta de chuvas. Mas atribui-se sem elementos
sérios.
Diz-se
que foi falta de chuvas e tudo fica bem.
Mas,
porque não se diz que não se semeou mais para mais se colher?
Mas,
porque não se diz que há terrenos e terrenos bons para a cultura do arroz e não
são encaminhadas para eles as populações indígenas que os podem cultivar?
Vir
milho de Angola para a Guiné!!!
Outra
irrisão. A Guiné pode dar todo o milho que se queira. Quando se reconheceu que
viria a haver fome por falta de arroz, era altura boa de se fazer semear milho.
Porque
assim não se fez?
Porque
não se cultiva a mandioca em larga escala se ela fornece uma excelente
alimentação ao indígena e pode ser, devidamente seca, um produto importante de
exportação?
Tudo
interrogações sem fácil resposta e que deixam de estar em equação no dia em
que, na colónia, apareçam homens cujo valor real, zelo, senso e boa vontade
ofereçam as suas aptidões para a realização que urge fazer da valorização
económica da colónia.
Existem
serviços agrícolas, dir-se-á.
Existem
mas é preciso reorganizá-los para lhes dar eficiência precisa para valorizarem
a colónia”.
No
relatório completo de 1942 retomam-se matérias do primeiro semestre e
adiantam-se novas informações.
Não
se esquecem os entraves postos pelas autoridades consulares inglesas e dá-se um
esclarecimento: “Todos os que trabalham com o Senegal estão na lista negra
inglesa porque os agentes consulares britânicos enquanto não entraram as tropas
americanas no continente africano tinham a convicção – não sabemos se com
fundamento ou sem ele – de que alguma parte dos nossos tecidos ia beneficiar as
tropas germano-italianas. Mas se não era assim, iam com certeza beneficiar as
colónias francesas, ao tempo em regime de franca hostilidade aos ingleses e
esta agravada depois do ataque a Dacar.
Apesar
de tudo isto, o negócio não parou.
Direta
ou indiretamente, o ex-guarda livros da Sociedade Comercial Ultramarina,
Henrique de Oliveira, a quem a inclusão na lista negra não produziu abalo
nenhum, passou a ser como que o agente direto dos negócios para o território
francês, ganhando, ao que se diz, uns 3 a 4 mil contos, em comissões,
transportes, etc.
Presentemente,
o governo francês deve ao comércio local cerca de 18 mil contos e procura fazer
o pagamento em francos, por nosso intermédio, o que não temos aceitado por ser
inconveniente aos nossos interesses, aos interesses dos comerciantes e aos da
própria colónia”.
Relata
que está a entrar muito ouro em barra, argolas e mesmo em pó. “Particularmente,
sabemos que algum desse ouro em pó já foi vendido em Lisboa a cerca de 30
escudos por grama de ouro bruto. Se o ouro que temos comprado por peso de ouro
fino, a preço até mais baixo que a cotação que a sede nos dá, pudesse ser
vendido àquele preço e por peso bruto, importantíssimo seria o lucro que esta
Filial teria obtido a favor dos interesses gerais do banco”.
A
África Ocidental francesa ganha acuidade durante a II Guerra Mundial. Veja-se
este apontamento constante do relatório da agência de Bissau referente ao
primeiro semestre de 1943:
“A vizinha
colónia do Senegal, por motivos de guerra, viu-se quase esquecida da sua
metrópole e sem possibilidades de se abastecer daquilo que mais necessitava.
Durante
largo período, foi-se bastando com os stocks que tinham quanto à fazenda e
recebendo auxílio de Marrocos, quanto a subsistências.
As
necessidades próprias da guerra esgotaram depressa as existências e o Senegal
recorreu à nossa Guiné. Principiaram as exportações daqui para lá com
fornecimentos de batatas; cebolas, algumas latarias; massa tomate, de que o
Senegal faz colossal consumo; queijos; manteiga e vinhos do Porto.
A
falta de alguns destes géneros, na nossa própria colónia, paralisou tais
exportações.
Veio
então a procura de tecidos em relativa quantidade para consumo indígena, mas em
quantidades enormes de zuartes e caquis destinados às tropas em luta.
Fizeram-se
grandes negócios e lucros e os comerciantes da Guiné, certos da continuação do
negócio, importaram maiores quantidades daqueles tecidos.
Dá-se
o desembarque anglo-americano e a posição do Senegal mudou.
Enquanto
as autoridades que aqui estavam viam com bons olhos os fornecedores da nossa
Guiné, as autoridades que vieram consideram as anteriores como negociadas com o
inimigo. E não só suspenderam as compras, como os ingleses e os americanos
passaram a trazer os seus tecidos para venda e fornecimento às tropas, como
também não pagaram os fornecimentos que já tinham recebido dos comerciantes da
Guiné. Dois males para estes ou, antes, para os fornecedores da metrópole.
Nem
se venderiam facilmente os stocks existentes na colónia, quantidades
invendáveis relativamente ao consumo próprio nem se saberia quando seriam pagos
os fornecimentos feitos anteriormente.
Daí
resultou uma parte grande do comércio da colónia não poder honrar os seus compromissos,
deixando protestar grande quantidade de letras. Na altura em que se ultima este
trabalho, há esperanças de que o atual Governo do Senegal se resolva a pagar o
que deve.
Já o
Governo da colónia começou a ter interferência, o Governo do Senegal tem aqui
um depósito de 6 mil contos para fazer face a tais pagamentos que, pelas
informações que dispomos, andarão pelos 12 mil contos.
Resolvido
este caso, será paga uma grande parte das dívidas em atraso. E como já se pensa
em exportar o excesso de tecidos existente na colónia, desde que tal suceda
ficará o assunto resolvido.
Nesta
barafunda toda, tem o banco ganho bom dinheiro, e graças à nossa prudência não
há um único real que se possa considerar comprometido”.
No
relatório anual desse mesmo ano de 1943 dá-se como notável o movimento de
protestos, 162 letras protestadas num montante próximo dos 13 milhões de
escudos, houve contudo liquidações, ajustamento de contas e o saldo do ano era
de 59 letras protestadas num montante de 5 milhões. A explicação decorre um
tanto do que acima se escreveu sobre as exportações para o Senegal e o comércio
com o Norte de África: “A razão de ser estes protestos foi só uma, a evolução
das coisas relativas à guerra, no Norte de África. Antes da evacuação total das
tropas alemãs e italianas, a África Ocidental francesa não tinha facilmente
outra fonte de abastecimentos senão a Guiné Portuguesa. O nosso comércio fez o
que era natural, aproveitando a oportunidade para vender muito e caro. Foi o
que se fez e, no final das contas, tirando aborrecimentos que já passaram, os
que o fizeram muito ganharam. As autoridades consulares inglesas mostraram
indecisão, no princípio, ou não compreenderam a tempo que as toneladas e mais
toneladas de tecidos que vinham da metrópole para a Guiné eram para se escoar
para o chão francês. Porém, quando viram começar aqui o escoamento,
lembraram-se de que os caquis e zuartes que iam para Dacar seriam destinados às
tropas inimigas. Foi então que recusaram certificados de navegação para a vinda
de mais fazendas da metrópole para a Guiné e entraram a fazer pressão sobre os
comerciantes para que não fossem mais fazendas para o Senegal. A Guiné é toda
cercada por terra francesa e a guarda-fiscal não chega à fronteira. Passou o
que pôde passar em contrabando, e muito passou regularmente. Foram alguns para
a lista negra e tiveram dificuldades momentâneas, mas estas, por assim dizer,
já lá vão. Subitamente, dá-se o desembarque americano no continente negro.
Surgem novas personalidades em Dacar e nova política. Os americanos trazem
consigo materiais, mercadorias e fazendas a preços melhores que os do comércio
português. A razão política faz hesitar os novos mandantes de Dacar na análise
dos negócios dos seus antecessores com o comércio da Guiné. Para uns, ausência
total de culpas por parte dos nossos vendedores que, a título nenhum, podiam
ser considerados como entendidos com os inimigos dos aliados, para lhes
venderem fazendas. Para outros, culpas carregadas tinham os comerciantes de
Bissau”.
A
partir de agora, Bissau está no centro das informações para Lisboa, todos os
pontos de situação da economia, a situação da praça, o relacionamento da
colónia com as colónias francesas limítrofes são documentos que saem do punho
de Virgolino Pimenta.
A era de Sarmento Rodrigues, até aos Estados independentes envolventes, o fim da colónia
É
neste contexto que se abre uma nova época, e que se traduz com a chegada do
comandante Sarmento Rodrigues que vai projetar a Guiné como uma colónia-modelo.
Há um arranque de prosperidade neste pós-guerra, as críticas ao funcionamento
da Casa Gouveia são contundentes, nomeadamente quanto à campanha do arroz:
“A
Casa Gouveia, que podia ser uma reguladora de preços, transforma-se numa
verdadeira desreguladora. Mal administrada, apesar de vir um inspetor ajudar a
gerência local, na época da campanha, não faz senão desequilibrar tudo e acaba
por fazer a triste figura de comprar muito menos que os outros. Os sírios, com
a rede das suas 120 casas espalhadas pela colónia, absorvem a maior parte da colheita,
pagando bem, o que podem fazer melhor que os outros porque têm uma organização
baratíssima e por estarem cheios de mercadorias bem escolhidas que vendem em
grande escala”.
Mas
também o comércio da mancarra não fica isento de críticas, como o gerente
escreve: “A loucura do comércio é de tal ordem que ninguém usa, nem quer usar,
as tararas onde a mancarra era limpa de cascas, terras e pedras, antes de ir à
balança e ser paga. Assim, conscientemente, o comerciante paga aquelas
sujidades por mancarra boa, talvez porque está certo de a embarcar no mesmo
estado e de lhe pagarem sem discussão. É claro, o exportador que vai buscar a
mancarra ao interior já se não livra das quebras próprias do transporte, cargas
e descargas, pois nestas andanças vai perdendo o peso da terra que se vai em
poeira ou se deposita no fundo dos barcos ou no chão dos ‘cercos’ e dos
armazéns.”
Faltam
alguns relatórios da década de 1940, houve mudança na gerência de Bissau e o
novo gerente quis logo dar um ar da sua competência, mostrando-se conhecedor
das realidades socioeconómicas:
Ao
assumirmos a gerência desta Filial, em 15 de agosto de 1949, viemos encontrar a
colónia no auge da segunda crise comercial que a atingira depois da última
guerra, ambas resultantes de ter cessado o avultado e rendoso comércio
praticado com os territórios vizinhos.
Da
primeira vez, ocorreu isso em 1944, quando, libertada a França do jugo alemão,
as suas colónias da África Ocidental passaram a importar tecidos americanos e
dispensaram os da indústria nacional, que o comércio da Guiné importou e lhes
forneceu, em grande escala, nos três anos anteriores; da segunda vez, em meados
de 1948, quando novamente cessou esse comércio, que se voltara a fazer em 1947,
porque as perturbações internas daquele país e a desvalorização da sua moeda
haviam dificultado a importação dos países de moeda forte, tanto de tecidos
como de muitas outras mercadorias.
Na
desmedida ânsia de auferir os excessivos lucros que dessa situação lhes
adivinha, só curou o comércio de importar o máximo possível e o resultado foi
ao falharem depois esses mercados, poucos serem os que não ficaram com
colocação imediata para os stocks que constituíram.
E a
isso, claro está, seguiu-se o sudário de letras protestadas e o consequente
descrédito da praça.
Ao
findar, porém, o ano de 1949, já a situação se havia desanuviado um pouco,
porque, nesse lapso de tempo, não só se verificou o aumento dos preços como da
produção dos principais produtos da colónia, o que veio elevar o poder
aquisitivo do indígena e possibilitar o escoamento de uma boa parte do
excedente importado, não sem que, todavia, o comércio o tivesse de fazer com
prejuízo, porque, entretanto também, mexeram os preços dos tecidos e houve que
sacrificar mercadorias para realizar dinheiro e satisfazer compromissos, tudo
isso nos levando a querer que alguns exportadores da metrópole terão ainda por
algum tempo os seus créditos em mãos do comércio da colónia, sobretudo no
libanês, se todos conseguirem reaver.
No
decurso do ano 1950, circunstâncias várias contribuíram para que essa melhoria
se acentuasse, pois, à regular campanha de produtos que nesse ano se verificou,
seguiu-se em consequência da guerra na Coreia uma razoável alta nos preços dos
tecidos e a procura da borracha desta colónia, que passou a ser extraída pelo
indígena em grandes quantidades e que tendo começada a ser vendida ao comércio
a 8 escudos o quilo, ao findar do ano já atingia 16 escudos, o que tudo
permitiu o completo escoamento desses tecidos.
E a
resolução que tomou o Governo Central, já no início de 1951, de providenciar o
aumento de 20 centavos na cotação da mancarra estabelecida pelos industriais da
metrópole, como também que fosse elevado para 40% o contingente da exportação
para o estrangeiro do coconote, onde se obtêm preços elevadíssimos em
comparação com os que se cotam na metrópole, permitirá certamente que o
comércio se refaça completamente dos prejuízos que sofreu.
No
que respeita à posição da Filial, com a prudência de que se tem rodeado, a
crise que afligiu o comércio nos últimos anos, embora não desejável, só lhe
trouxe benefícios, pois a excessiva importação que a originou em muito
contribuiu para os elevados resultados verificados nesse período”.
Em
relatórios subsequentes dará conta das obras nos portos e nas vias de
comunicação, caso da ponte-cais do Pidjiquiti, a ponte de Ensalmá, as
abundantes produções de arroz, mancarra e coconote. Um dado curioso surge no
relatório de 1953:
“Encontra-se
em execução o recenseamento agrícola, trabalho que constituiu uma realização
dos Serviços Agrícolas e Florestais, tendo sido encarregado de planificá-lo e
de dirigir a sua execução o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral. Visa a obtenção
de elementos essenciais, qualitativos e quantitativos, tanto a agricultura
indígena como a dos não indígenas. Acha-se quase finalizado o trabalho de campo
relativo ao recenseamento da agricultura indígena. É executado pelo método de
amostragem, através do estudo das explorações familiares em povoações tipo.
Assim, obter-se-á uma estimativa dos elementos essenciais da agricultura
indígena, aliás a única informação possível nas atuais condições económicas e
culturais do agricultor nativo.
O
apuramento dos elementos escolhidos será levado a efeito por todo este ano.
Entretanto, pode afirmar-se o seguinte:
De
uma maneira geral as porções são boas, tanto no que se refere às culturas
alimentares como às industriais.
No
Sul da Província as produções unitárias são geralmente superiores às
verificadas noutras regiões, em especial no que se refere ao arroz e à
mancarra.
Devido
à intensificação da cultura da mancarra, as queimadas atingem proporções
alarmantes, nomeadamente as praticadas pelos Fulas e pelos Mancanhas.
Alguns
parasitas prejudicam de maneira sensível as produções das espécies conhecidas
por “milho brasil”, “milho cavalo” e “milho preto”.
No
Quínara, principalmente a produção de arroz foi prejudicada pelas águas vivas.
No
ano findo, esteve nesta Província o senhor Jean David Bruce, de nacionalidade
holandesa, técnico de óleos, que, a convite do Ministério do Ultramar, se
deslocou à Guiné para estudar as possibilidades da Província nos novos métodos
de culturas e exportação, as espécies mais recomendáveis às condições
ecológicas, com o objetivo de uma produção dirigida mais consentânea com as
ricas possibilidades da Província.
Foi
feita a cultura, em grande escala, por toda a Província, de sementes de caju
importadas de Moçambique, que germinaram bem e em alguns pontos se
desenvolveram rapidamente. Essa sementeira foi precedida da vinda a esta
Província do professor do Instituto Superior de Agronomia Dr. Carlos Rebelo
Marques da Silva que, em missão do Ministério do Ultramar, veio estudar as suas
possibilidades económico-culturais”.
A
década de 1950 propiciou uma gradual aproximação do BNU com a Sociedade
Comercial Ultramarina, a grande rival da Casa Gouveia, são preciosos os dados
que o gerente regista para Lisboa, fazendo muitas vezes uso dos próprios
relatórios da Ultramarina.
Mas
há transformações em curso, em breve a Guiné vai estar envolvida por estados
independentes, o gerente escreve:
“Apesar
da ampliação das atividades comerciais da Província, com o aparecimento de
novas firmas, melhoramento das instalações e alargamento da rede de sucursais
de outras já existentes, o comércio não obteve a melhoria de situação a que
esse desenvolvimento deveria conduzir. E para isso contribuíram:
O
fraco índice do poder de compra das populações indígenas;
A
concorrência adveniente do número exagerado de comerciantes em relação à
população;
A
importância excessiva;
A
intromissão de caixeiros-viajantes da Metrópole, que não só vendem diretamente
aos comerciantes retalhistas os artigos das firmas suas representadas, como
ainda importam outros em nome de qualquer comerciante amigo, que vendem
ambulantemente pela Província a preços competidores, em virtude dos menores
encargos a que estão sujeitos;
Fatores
de ordem política: a independência da Guiné Francesa e o ingresso do Senegal na
Federação Mali. Estes vizinhos territórios absorviam grande parte dos artigos
importados por esta Província, contrabando esse que diminuiu grandemente.
Todas
estas circunstâncias se refletiram na liquidação dos compromissos, que se fez
mediante sucessivas prorrogações e amortizações”.
Estamos
no ano em que se começa a falar em bauxite e petróleo e enviam-se para Lisboa
dados minuciosos.
O
acervo documental que está na base desta comunicação divide-se em duas partes
distintas: os relatórios de execução e uma documentação avulsa a eles ligados;
e um conjunto de documentos avulsos que foram cronologicamente tratados e que
se vão revelar de grande significado, foi aqui que se encontrou um documento
histórico que saiu do punho do administrador Castro Fernandes, datado de 1957,
e encontramos depois as informações que preludiam a luta armada, e da luta
armada ao longo de 1963, decorrem de contatos íntimos entre o gerente do BNU e
a polícia política.
Adiante-se
que este conjunto de documentos tem uma lógica de funcionamento de todo o
sistema sociopolítico e económico, Bissau impôs-se como capital, os sonhos de
grandeza, mesmo no período da luta pela independência, acabam por estar
centrados em Bissau e arredores, é o caso da CICER e de um hotel que se previa
para a Praça do Império, isto para não falar já num projeto de novas
instalações para o BNU em Bissau e a criação de uma delegação em Bafatá.
Vamos
igualmente tendo conhecimento de empreendimentos agrícolas, aparentemente
grandiosos, e que se revelarão desastrosos, caso da Sociedade Agrícola do
Gambiel e da Estrela de Farim, essas informações irão sendo cedidas pelas
delegações de Bolama e Bissau. É igualmente uma correspondência que permite
visualizar como a Casa Gouveia entrara em rota de colisão com o BNU, são dados
altamente pertinentes comunicados para a sede do BNU em Lisboa.
Em
jeito de conclusão, considero que toda esta documentação que esteve albergada
no Arquivo Histórico do BNU (e hoje está encaixotada à espera que lhe seja
oferecida um novo destino) é um alfobre de importância indesmentível para a
vida da capital da colónia, permite ver em grande ecrã a competição entre
Bolama e Bissau, usaram-se os mais espantosos argumentos para alçapremar, em
jeito de análise SWAT, as oportunidades e desafios que se punham a Bolama e os
condicionalismos de Bissau, tudo será ultrapassado no decurso da II Guerra
Mundial com a instalação da nova capital; será em Bissau que aparecerão, logo
em fevereiro de 1960, panfletos anunciadores de que a subversão está em marcha
e não menor importância tem o apanhado de informações da filial de Bissau que
parece ter-se transformado num secreto correspondente de guerra desde essa data
até 1964, tanto quanto me é dado saber nenhuma outra entidade não-oficial
reportou os acontecimentos do segundo semestre de 1962, o desmantelamento da
vida económica e social da região Sul, a passagem da luta armada para a região
do Corubal e para o Morés em 1963, mês a mês o investigador interessado
encontra nestas informações dados reveladores da evolução da luta armada e do
cataclismo económico a ela associada; o antigo ministro da Economia e figura de
proa da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes, produz em 1957 um
documento valioso, uma autêntica radiografia da colónia e das potencialidades
que deviam ser rapidamente alavancadas, até porque o BNU, desde 1927, era um
proprietário agrícola com significado, possuía amplos terrenos sobretudo na
região de Fulacunda; e uma parte determinante da transição da colónia para
estado independente pode ler-se no Livro de Atas do Conselho de Administração e
do Conselho de Gestão do BNU entre 1974 e 1976. Afinal, tudo se vai passar em
Bissau, o BNU dará lugar ao Banco Nacional da Guiné-Bissau.
Bibliografia consultada
AMADO, Leopoldo, “ Guerra Colonial e Guerra de Libertação
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Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, Fronteira do Caos, 2014
Documento Histórico de excelência
ResponderEliminarSem dúvida!
ResponderEliminarAntónio Araújo
Caro Mario Beja Santos, gostaria de entrar urgentemente em contacto consigo. Diz-me como? vanessa rato
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