Quando eu era pequeno, volta e meia a nossa mãe ia a Lisboa. Fazer compras.
Arranjava-se, um vestido mais bonito, ou saia casaco, baton, Chanel n.° 5, um jeito no cabelo, mirava-se ao espelho. Verificava se tinha o cartão do Automóvel Clube Português da Tia Maria João. Dava direito a descontos nalgumas lojas. A Tia Maria João tinha quase a idade da sobrinha e os empregados das lojas não olhavam muito para a fotografia.
Tinha medo que a minha
mãe fosse apanhada. Ela, não.
Era nova. Teria trinta
e tal. Baixinha. Muito bonita.
Seguia no elétrico de Benfica para os Restauradores. Devia ir com a irmã ou uma cunhada. Disso já não sei.
Hoje fui à baixa. Meti-me no metro nas Laranjeiras. Estava um bocadinho nervoso. Com miúfa. Foi a primeira vez...
Levei um casaco cheio de bolsos com duas máscaras, não fosse alguma estragar-se, gel desinfectante, telemóvel, carteira dos cartões, chaves, lenço, notas, se o multibanco não funcionasse. Esta tralha toda não me cabia nos bolsos dos jeans.
Comprei um cartão com umas 8 viagens, não vale a pena o passe, não vou sair muitas vezes. A máscara que a junta de freguesia me deixou na caixa do correio é boa. É fácil pôr os óculos sem embaciarem. Macia.
O metro tinha pessoas. Mas foi fácil encontrar um lugar sentado sem ninguém à volta. Também saí nos Restauradores. As escadas que davam para a luz. Ainda nervoso com a aventura. Como um menino.
Na rua, a beleza de Lisboa, do Avenida Palace, da entrada no Rossio. Já tinha arrumado a máscara no saco de plástico. Olhava para tudo. As lojas abertas, as lojas fechadas, as esplanadas com pouca gente. Atravessava as ruas fora da passadeira, o trânsito era pouco.
Fui direito à loja dos tecidos que só descobri aqui no FB. Para mim continuava a ser a loja do Diário de Notícias. Pausa para tirar a máscara do saco de plástico do bolso e colocá-la.
Estava gente. Mulheres. Um rapaz e eu. Tudo mascarado. Uma rapariga linda. Elegante, esbelta. Como seriam a boca, o nariz? Olhei muito para ela, quando ela não podia reparar, agradecido pela sua beleza. Cruzámo-nos várias vezes. Apetecia-me dizer-lhe que bonita que é. Mas não disse.
Encontrei o que queria. Bicha para pagar. Distanciados. Saí para a Rua Áurea. Tira máscara, arruma máscara. Desinfeta mãos. Da próxima levo mochila. Estava calor, casaco no braço. Já não estava nervoso. Já não tinha medo. Era a vida, tímida.
À procura da Pollux. Acertei na rua. Da Victoria, da Rádio Victória.
Manhã linda, já disse, pouca gente, também já disse, sem pressa, a gozar tudo. A reparar em tudo. A respirar um ar que só quando eu era novo devia estar tão lavado.
A Pollux fecha às 2as. Duas senhoras baixinhas, da minha idade, também deram com o nariz na porta, já de máscaras. Paciência, dissemos os três, a sorrir por baixo das máscaras.
Plástico, loja, baixa, Lisboa, escrevi no Google. Havia uma na Rua de São Nicolau. Não sei os nomes daquelas ruas, não sei situá-las. Sabia que era uma transversal a caminho do Terreiro do Paço. Com calma. Tão bom não haver trânsito, não esbarrarmos com pessoas. Vemo-las. Podia reparar em cada uma. E reparava.
Encontrei a loja. O senhor que me atendeu estava mal disposto, brusco. Percebi, cheio de dores nas costas. Hérnia? Não, é uma dor lombar. Pela porta da dor amoleceu. Éramos só os dois. Está a tomar um relaxante muscular? Não, fui ao hospital, estou medicado, um remédio para as dores. Comprei o que quis, paguei por multibanco, gel da casa. Já simpatizávamos. Então, muito obrigado, e as melhoras, isso deve ser grande incómodo. Ah, um bocado, sim. Muito obrigado nós. Uma boa semana para o senhor. Há uma fraternidade entre as pessoas. Como somos poucos, deve ser por isso.
Tinha tempo. Agora almoço tarde e o almoço era resto do lombo de porco. Estava feito. Fui ao Terreiro do Paço. Entrei pelo lado da Rua da Alfândega.
Que bem que se estava ali. Passeei um bocadinho, poucos, muito poucos turistas, Rua Augusta acima. Quando passava por esplanadas uns empregados faziam o seu melhor para me convencerem a sentar-me ali. Se pudesse, sentava-me em todas. Não tinha fome, mas eles, coitados, calculo a aflição.
A caminho do metro espreitei a Igreja de São Nicolau. Havia missa. Estava sem máscara, já esquecido do vírus. Desculpe! Pus máscara. Espreitei outra vez. Saí, tirei máscara mas fiquei com ela na mão. O metro é mesmo ali. Pus máscara. No metro estive a ler as notícias.
Cheguei a casa, libertei-me das compras. Lavei as mãos, tirei a máscara, lavei-a num alguidar pequeno com sabão azul. Deixei-a de molho. Depois do almoço passei-a por água e está ali a secar. Amanhã volto à baixa. Ainda não decidi que máscara levo. Mas mochila vai de certeza.
Miguel Lobo Antunes
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