sábado, 12 de setembro de 2020

Redacção # 3

 





Como é? Disfarço.

 

Por exemplo. Vi um frigorífico lindo, encarnado vivo e brilhante, puxadores das portas iguais as espadas dos anos 50, boas dimensões,  cabia onde está o que vai para a reforma. Metade do preço original. Promoção. Enfim quase metade. Prémio de não sei quê em 2018. Amor ao primeiro relance. Tomei nota das medidas. Fui conferir em casa.

 

Voltei no dia seguinte com uma caneta de ponta de feltro do encarnado igual ao da porta da máquina de lavar a loiça, porque os únicos encarnados da cozinha  não se podiam chatear um com o outro. Foi ideia de uma amiga à distância, a da caneta. Os encarnados eram iguais! Mandei fotografia à minha amiga e ela: Compra!

 

Fui falar com a empregada da loja. Quero aquele! Deixe-me ver se temos em armazém.  Olhe, não temos, é mesmo só aquele. Não tem mal, é aquele que eu quero! Espere, vamos ver se está bom. Ajudei-a a deslocar o frigorifico lindo. Para se ver as laterais. Duas mossas! Uma em baixo, outra em cima! Pois é, tem que se ver os lados. Aí é que costumam estar as mossas. A empregada,  competentíssima.

 

Não comprei o encarnado.Também não comprei daqueles inox com bolsa marsupial de onde sai água e gelo. Comprei um normal, branco, monótono. Fiquei triste e chateado? Fiquei. Mas disfarcei. Amanhã trazem-mo, o branco. Não estou com entusiasmo nenhum.

 

Por exemplo. Aspiro a casa toda obssessivamente,  arrasto móveis com esforço, as almofadas dos sofás não escapam, mais de uma hora naquilo. O corpo cansado. Arrumo o chupa-pó que é um bocado bisarma, aspira com força, até engole canetas, se me distraio. Faço vistoria ao chão, a admirar o resultado,  e encontro migalhas, coisinhas pequenas que não sei como sobreviveram à aspiração.  Fico lixado! Comigo, claro. Furioso! Mas disfarço. Deixo de olhar para a migalha, ou vou buscar a vassoura e a pá. 

 

Por exemplo. Ontem estava a comer a sopa do jantar, depois de ter feito asneira a descongelá-la (não conto porque tenho vergonha) vem um mosquito e ferra-me duas vezes no braço. Apanhei-o e  esmaguei-o convictamente  com a mão. Mas ficaram-.me duas bolhas no braço. Nunca me tinha acontecido. Fiquei a espiar o seu crescimento. Se aquilo me invadia o braço todo, o peito, me afogava? Telefonei para a Saúde 24? Não.  Disfarcei. Fui buscar um metro e media os quarto de milímetro que as bolhas cresciam em cada 10 minutos. Quando deixariam de crescer? Sempre a disfarçar. Não  telefonei aos filhos, a ninguém. Fui disfarçando.  Que não havia de ser nada. E não foi.

 

Por exemplo. Esta merda em LVTJ  não há meio de abrandar. Está tudo na mesma há imenso tempo. Os especialistas não se entendem, não têm nenhuma explicação em que todos concordem. Ora, eu habituei-me aos especialistas. Apareceram imensos, vindos de sítios que não sabia que existiam,  que sabem tudo sobte epidemias (acho que nunca tinham visto nenhuma a sério e ao vivo): médicos,  matemáticos,  epidemiologistas, sociólogos,  sei lá eu! Os políticos diziam, fazemos assim porque os especialistas  dizem que é assim. E há imensos estudos e números (como toda a gente sabe, os números não mentem) que sustentam as decisões. A coisa estava a andar bem, eu todo contente, até fui várias vezes  à  baixa de metro. Mas agora, com o descrédito dos especialistas,  fico aflito. Digo alguma coisa? Não.  Disfarço. Fé nos homens, que eu não posso fazer nada. Faço de conta que vai passar. Para a semana, ou assim. Disfarço. 

 

Por exemplo. Ela ficou de me dizer alguma coisa. Não,  não  combinámos.  Mas convenci-me que me ia mandar uma mensagem. Olá! Estás bom? Então que tal o teu dia? Olha, a mim telefonou-me aquela, estivemos um bom bocado ao telefone, contou- me isto e aquilo e tal. Seria o início de uma conversa que espantava a solidão e me consolava a noite.  Só que não houve conversa nenhuma porque ela se esqueceu, teve imenso que  fazer, quando pôde já era tarde, não quis incomodar. Fiquei triste? Fiquei. Até com um aperto no estômago. Disse-lhe alguma coisa? Não. Não servia para nada. Não fez por mal. Disfarcei. 

 

Por exemplo. Então,  Miguel, estás  bom? E eu, péssimo, com estas preocupações,  estes medos, a ver o tempo a passar,  a vida a passar e nada se resolve, e daqui a pouco nem para fazer a cama de lavado tenho força, sempre a descobrir umas dores, umas articulações que rangem, um fôlego que falta, uma coisa qualquer que prenuncia o fim próximo,  eu, o que faço? Disfarço. 

 

E agora escrevo redacções.

 

Miguel Lobo Antunes






1 comentário: