Durante os poucos
meses que mediaram entre a minha saída do seminário e a minha partida para os
Estados Unidos, como estudante, tive como amigo um ex-seminarista de uma ordem
religiosa diferente da minha. Conhecemo-nos casualmente por ambos tomarmos as refeições
numa pensão da Calçada da Estrela, em Lisboa. Uma vez que essa amizade se
prolongou por bastantes anos, no nosso primeiro encontro, por ocasião das
férias de Natal de 1972, dei-lhe um exemplar do número especial da revista
Ocidente, de Novembro de 1972, com as actas do Primeiro Congresso Internacional
para comemorar o 400.º aniversário da primeira edição de Os Lusíadas de Camões,
congresso por mim organizado na Universidade de Connecticut, como já foi
referido algures.
Como
esse meu amigo era nesse tempo funcionário do Banco de Portugal, concluiu
imediatamente que Dom António Luiz Gomes, que acumulava o cargo de
Administrador do Banco de Portugal com o de presidente do Conselho
Administrativo da Fundação da Casa de Bragança, certamente teria o maior prazer
em ver esse número especial da Ocidente. De maneira que me pediu que lhe desse
um outro exemplar para ele oferecer ao Sr. Administrador, com uma dedicatória
minha.
Dom
António ficou tão satisfeito e sensibilizado com a oferta, que disse ao meu
amigo e empregado dele que gostava de me conhecer pessoalmente, pelo que lhe
pediu que me levasse a tomar um café com ele, na primeira oportunidade. E foi
assim que, pela tarde do dia seguinte, estava eu a tomar café com António Luiz
Gomes, na sede do Banco de Portugal, na Rua do Comércio.
Depois
de me haver dito, a sorrir, que certamente eu devia saber que ele, monárquico,
tinha um irmão republicano, Ruy Luiz Gomes, exilado no Brasil, a ensinar
Matemática na Universidade Federal de Pernambuco, e depois de me haver dado os
parabéns pela organização do congresso camoniano internacional e de me
agradecer a oferta do número especial da Ocidente, com as actas desse
congresso, perguntou-me se eu sabia da existência da Camoniana do Rei Dom
Manuel II. Que sim, sabia, mas que, infelizmente, nunca a tinha visto. Então
Dom António disse-me que, ao ler esse número da revista, integralmente dedicado
a Camões, imaginara (e imaginou bem, em meu modesto entender) que eu teria
interesse em visitar a Camoniana do Rei Dom Manuel II, então em exposição na
Biblioteca do Palácio Ducal de Vila Viçosa. Eu, obviamente lisonjeado por uma
lembrança tão pertinente e tão simpática, fiz-lhe saber respeitosamente que
poder visitar essa Camoniana do excelente bibliófilo que foi o último Rei de
Portugal, D. Manuel II, seria para mim a realização de um sonho e uma subida
honra.
De
maneira que, dois dias depois, o meu amigo e eu saímos de manhã cedo de Lisboa,
a caminho de Vila Viçosa, num carro do Banco de Portugal, conduzido por um
motorista, fardado a rigor. Uma vez aí chegados, visitámos, com todo o vagar, a
famosa Camoniana do Rei D. Manuel II, o museu e parte do majestoso e opulento
Palácio Ducal, cuja riqueza do mármore esculpido e das decorações dos tectos e
das paredes de algumas salas me deslumbrou.
À noite fomos ambos opiparamente banqueteados na sala de jantar do Palácio, à luz mortiça de tochas douradas, servidos por um mordomo, vestido à maneira antiga, e ladeados por dois alabardeiros que se comportaram, durante todo o banquete, como se fossem estátuas.
Chegou a hora do repouso noturno e cada um de nós foi conduzido cerimoniosamente ao seu respectivo quarto pelo mordomo que nos servira o jantar.
Para
que o inesperado banho de realeza fosse completo, do programa constou também
uma noite dormida numa cama real, com almofadas, lençóis, cobertores e colchas
riquíssimos, e decorada com baldaquino.
No
dia seguinte, após o pequeno almoço, visitámos partes do Palácio que não tínhamos
podido ver no dia anterior, tais como a armaria e a cozinha, e visitámos também
os vastos e artísticos jardins.
Depois de nos haverem servido um almoço ducal, regressámos a Lisboa, no carro do Banco de Portugal, conduzido pelo mesmo motorista, fardado a rigor.
Não exagero se confessar que, pelo caminho fora, às vezes dava comigo as esfregar os olhos e a dar palmadas na testa, para me convencer a mim próprio que o que tinha acontecido no Palácio Ducal de Vila Viçosa não era um conto de fadas, mas uma coisa muito real. Uma daquelas coisas que, sem se saber como nem por quê, podem suceder uma vez na vida ao mais indigno dos mortais.
António
Cirurgião
Já tive a oportunidade de visitar o histórico Palácio de Vila Viçosa, obviamente não com as devidas honrarias e deferências a que só um príncipe (das letras) como o meu amigo Professor Cirurgião tem direito.
ResponderEliminarPessoalmente associo-o mais à última estadia do Senhor Pai do bibliófilo D.Manuel II