(o tema desta redação
foi-me sugerido, quase imposto, pela Senhora Professora Cristina Almeida;
caneta de tinta permanente, era o mote. Se isto pega, com tantos senhores
professores e professoras por aqui, como é que tenho tempo de estudar as outras
disciplinas?)
A CANETA DE TINTA
PERMANENTE
Fui presente do menino
Daniel, quando ele passou para o liceu, depois do exame da 4.ª classe e do de
admissão ao liceu. O Daniel recebeu dois presentes. Eu própria, como já disse,
só não disse que sou uma caneta de tinta permanente, e um relógio de pulso,
daqueles a que se dá corda, que é preciso acertar de vez em quando,
aproveitando o pip da telefonia, o sinal horário. São 20 horas em Potugal
continetal, mais uma que nos Açores.
Sou uma Pelikan verde
escuro no corpo, com um aro dourado um bocadinho antes de uma ponta, outro ao
pé do aparo. A tampa é preta, com aquela peça que dá para agarrar ao bolso do
casaco, dourada também. Se se desatarrachar a carrapeta da tampa, essa peça
cai. O Daniel descobriu isso uma vez, mas teve sempre a preocupação de não me
estragar.
O Daniel era bom aluno
e tinha muitos cuidados comigo. Também, se não tivesse eu sujava-lhe as
pontas dos dedos e ele via-se aflito para lavar. Gostava de aparos macios e que
escrevessem grosso. De maneira que fazia muitos riscos no papel, forçando o
aparo, a ver se ele ficava um bocadinho deformado e gasto. Só fiquei assim ao
fim de muito tempo, que eu não sou uma oferecida. Cedo, mas dou luta. E o
menino Daniel teve de me tratar muito bem. Fiquei a escrever grosso e
corria bem no papel.
Enchia-me de tinta
Quick, com um azul muito bonito, como o pai dele fazia com a sua Parker. Essa
só tinha à vista a ponta do aparo, o resto devia estar dentro dela. Não sei
porque nunca nos apresentaram, de modo que nunca nos falámos, que não falo com
desconhecidos, mesmo vivendo na mesma casa. Há imensos desconhecidos dentro da
mesma casa como todas as canetas e demais objetos sabem.
Para me encher, o
menino tinha que desenroscar a parte de cima, o meu corpo, mergulhar o aparo no
tinteiro e apertar e largar várias vezes a borracha do reservatório com a ajuda
de uma espécie de mola que envolvia a borracha. Demorava algum tempo e depois a
parte ao pé do aparo tinha de ser limpa com um mata-borrão. O mata-borrão passava
a vida a secar a tinta quando ela estava no papel e demorava a secar. Às vezes
até se percebia em espelho a palavra que ele matara.
O menino Daniel, à
tmedida que crescia, ia fazendo assinaturas, à procura de uma que parecesse de
pessoa crescida e rivalissse com a do pai e se distinguisse facilmente, pela
sua virilidade, da da assinatura redonda da mãe. Experimentou inclinadas para a
esquerda, que lhe parecia muito original mas não dava jeito nenhum. Verticais,
com o D inicial com vários enfeites, como que a tomar balanço, acabando por se
fixar numa inclinada para a direita com um D que de tão simplificado que era se
tornou implícito. Já tinha uns desassete anos quando ficou satisfeito com
a assinatura. Também arranjou uma rubrica, baseada na assinatura. Um
rabisco que não se parece com nada.
Acompanhei todo esse
progresso, como também acompanhei as fases da sua caligrafia. Era um bocado
trapalhão a escrever, demorou tempo a dominar o movimento da mão, muitas vezes
não se percebia o que escrevia. De tal modo que uma vez a Professora de
Português se recusou a classificar um ponto por não conseguir decifrar a letra.
A professora de Ciências também não tinha muita paciência para os gatafunhos do
Daniel.
Eu bem tentava
ajudá-lo, resistindo quando ele me queria levar para onde não devia, mas sou
apenas uma caneta. Tinha de me sujeitar.
Um dia, já o Daniel
tinha uns 16, 17 anos, influenciado por anúncios na televisão, por ver em
amigos, porque os pais estavam fartos de comprar tinteiros e mata-borrões,
enfim, por um motivo qualquer, apareceu na mão, na casa, na pasta do Daniel,
uma outra caneta muito diferente de mim. Enquanto eu era (e ainda sou, porque
graça a Deus me tenho poupado, arranjo-me, não me desleixo) bojuda, com curvas,
anéis de ouro brilhantes, uma tampa em que a peça que agarra ao bolso terminava
em ponta de seta, uma espécie de promessa, duas cores, sem contar com os
dourados, a que o Daniel agora tinha era de cristal, isto é, de plástico
transparente, tinha um aparo esquisito, com uma esfera lá dentro que regulava a
saída da tinta, e um reservatório pegado ao aparo muito fininho, com uma tinta
que demorava a gastar-se. Chamava-se, chama-se, Bic Cristal.
Devo dizer que a
princípio a achei muito feia, um bocado reles, os riscos que fazia tinham
sempre a mesma espessura, a letra ficava toda parecida, sem expressão.
Reconheço que era prática. Quando a tinta se aproximava do fim o Daniel tirava
o aparo com o tubo e soprava nele para que o bocadinho de tinta que ainda lá
estava lhe acabasse o trabalho. Depois comprava recargas.
Além de escrever, a
caneta tinha outras utilidades. Por exemplo, com a tampa, com, como eu lhe
hei-de chamar, aquela parte da tampa que prende aos bolsos ou bolsinhas, o
Daniel escaranfunchava o ouvido a tirar cera lá de dentro. Também o ajudava a
limpar as unhas. Enfim, servia de instrumento de limpeza.
Não, não foi amor à
primeira vista. Nem ela por mim, nem eu por ela. O que me começou a encantar
foi a sua simplicidade e transparência. Uma virilidade franca, sem
subterfúgios. Depois descobri-lhe um sentido de humor que só se revelou ao fim
de uns tempos, ao fim de muitos encontros às escuras na mala do Daniel, em que
ficávamos muito juntas. Disse uma primeira piada, eu ri, disse outra, continuei
a rir, e ao fim de uns tempos tembém me armei em engraçada, e ao fim de mais
tempos passávamos horas a rir uma com a outra.
(E agora? Que volta
vou eu dar à redação para isto acabar? Carambitas!)
De início o Daniel
tirava-nos da pasta sempre às duas. E escrevia com uma ou com outra conforme.
Mas a pouco e pouco começou a esquecer-se de mim, de me encher o depósito, e
deixava-me no escuro da mala enquanto a Bic andava ao serviço. A trabalhar. Eu
entristecia. E foi nessa tristeza que comecei a apaixonar-me, a criar uma
dependência, a só ser feliz quando a Bic voltava para a pasta, ficávamos muito
juntinhas, me contava tudo o que se tinha passado, brincava comigo, dizia
coisas para eu ficar alegre e conseguia. Uma vez, já eu o desejava há muito,
mas não tinha lata, não podia tomar a iniciativa, deu-me um beijo. Juntou o seu
aparo ao meu.
O dela não é lá muito
macio, pica um bocadinho, mas é saboroso. O meu é mais cheio de tinta, mais
molhado. Enfim, completamo-nos. O primeiro beijo não foi grande coisa, com o
tempo requintámos. O amor foi crescedo, em mim e nela. Já não importava se uma
trabalhava e a outra ficava em casa sem fazer nada. Quando estávamos juntas,
que era a maior parte do tempo, éramos tão felizes, sempre aos beijos e às
risadas. As pessoas não podem saber o que isso é porque as pessoas são muito
instáveis. Estão sempre a mudar. Um dia gostam, outro dia não gostam, ou
começam a embirrar, ou ficam cansadas umas das outras, ou dizem desculpa lá,
mas hoje não me apetece, ou dizem, caramba, estás a ficar melga, ou dizem tens
a mania que tens graça mas não tens graça nenhuma, estás sempre a repetir as
mesmas coisas, estás velho, é o que é. Coitadas delas. Nós não.
Uns anos deste amor
sempre constante, sempre igual, sempre intenso, e a certa altura
reparámos que o Daniel se esquecia da Bic. Ficávamos mais horas juntas. A gente
não se importava, porque o que mais gostávamos era de estar juntas. Só
quando ele nos tirou da pasta para nos pôr numa caixa de lata é que percebemos
que passara a escrever através de uma máquina complicada com uma parte luminosa
onde apareciam as letras com diversas caligrafias.
Nós ficávamos na caixa
de lata de onde ele nos tirava em momento especiais, quando queria tomar uma
nota ou fazer uma assinatura. Eu era mais para a assinatura, a Bic para as
notas. Mas a tinta foi rareando, apareceram muitas outras canetas e o Daniel
deixou-nos ficar na caixa de lata.
Só tenho a dizer bem
do Daniel. Teve sempre muito cuidado connosco. Nunca nos partiu, nem deitou
fora. Guardou-nos. Deixou-nos estar. Suspeito que ele percebeu o nosso amor.
Que uma vez nos apanhou aos beijos, o que não era muito difícil, porque
estávamos sempre nisso, nos intervalos dos risos.
Vamos levando assim a
vida. Eu sei que já estamos velhotes. Eu mais do que ela. Continuo mais
vistosa, mais arranjada, com mais curvas, ela com a secura de corpo de sempre,
não criou barriga, está igual ao que era. O cristal menos transparente, a carga
já não tem tinta, eu também não, nisso os beijos sofreram, já não são húmidos,
mas a gente não se importa. Gostamos na mesma. As piadas também são diferentes,
a vida está sempre a mudar. Sinto que o corpo dela já não é tão quentinho, o
meu também não, mas na caixa havia uma camurça de limpar óculos e
agasalhamo-nos com ela.
Não nos importamos que
se esqueçam de nós ali. Estamos bem. Às vezes temos medo que quando o Daniel
morrer os filhos deem connosco, achem que somos uma porcaria que não serve para
nada e nos deitem para o caixote do lixo e pronto. Acabou-se.
Mas a vida é assim,
não é? Tem um princípio, um meio e um fim. E nem o amor é capaz de mudar
isso.
Daniel, 85 anos
Miguel Lobo Antunes
Que delícia!
ResponderEliminarmagistral.
ResponderEliminarHaja imaginação. Formidável, sem dúvida!
ResponderEliminarGostei muito, até porque foi também a minha prenda pela passagem da 4.ª classe e admissão... Ainda tenho essa caneta comigo.
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