Olhos nos olhos
As execuções capitais ofendem a sensibilidade
contemporânea nas democracias ocidentais, e não só. O acto de matar deve ser
realizado administrativamente, intra muros, nas instituições
judiciais. Como pena judicial, é um momento previsto oficialmente, a ser
resguardado dos olhares públicos. Além dos carrascos, podem assistir, por
vezes, a família do criminoso ou as vítimas dele. Uma coisa é certa, não se
aceita a execução como espectáculo social, nem momentâneo para o qual se alugavam
janela em casas privadas ou se levavam crianças, muito menos como essas quase
procissões que eram os autos da fé, pormenorizadamente organizados pela
Inquisição, com a sua etiqueta solene e precedências rigorosas; tudo pontuado
por uma sólida sucessão de episódios dramáticos. Não se pretende, em tais
casos, morigerar; faz parte da execução dar o exemplo, sem dúvida. Mas o
essencial não reside nisso. O castigo reabilita o criminoso, confere-lhe um
lugar na comunidade cujas leis ofendeu. A solidão da morte é uma solidão com os
outros. Está entre os seus, que são dele testemunhas. Não se trata apenas de
uma coesão religiosa ou ideológica, com o poder definitivo de um ferrolho
corrido. Recordam os historiadores que os condenados à morte, na sequência das
purgas levadas a cabo na França revolucionário pelo Comité de Salvação
Nacional, se preocupavam com a sua aparência e porte, as palavras que
dirigiriam à multidão, a sua a conduta no momento de subir ao patíbulo. Para lá
de todas as divisões resta sempre a comunidade humana que exorbita Estados,
classes ou costumes.
Num pequeno relato, publicado presumivelmente em 1946 ao
regressar do cativeiro, o romancista belga Joseph Wilkens, refere a propósito
dos enforcamentos que os prisioneiros eram obrigados a presenciar: «Reunidos na
praça da chamada, assistíamos impotentes ao assassínio dos nossos camaradas. As
vítimas tinham de aguardar a sua vez. Minuto de sofrimento atroz, ver perecer
de uma morte horrível, um amigo, até um familiar, e saber que, chegada a nossa
vez, sofreríamos a mesma sorte. O supliciado procurava na multidão dos forçados
um rosto amado e punha num derradeiro olhar toda a eloquência de um adeus supremo.»
Não por acaso, o trecho provém de um capítulo intitulado O desprezo da morte.
`O sistema concentracionário roubava à morte o seu carácter humano,
precisamente por não reconhecer na morte um acto humano mas antes a eliminação
de algo que definia a priori como infra-humano – os Untermenschen.
O olhar em que Wilkens descobre o adeus supremo é um adeus de condenado a
condenado, que pretende ser um adeus de homem a homem, lembra sem esperança, na
palavra emudecida, já incapaz de um apelo, a humanidade comum.
João Tiago Proença
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