sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Os Últimos do Estado Novo, por José Pedro Castanheira.

 



 


 

O jornalista José Pedro Castanheira, com uma notável carreira profissional, explica de forma meridiana na apresentação deste seu livro a essência de Os Últimos do Estado Novo, Tinha da China, 2023:

“Já reformado, a organizar o meu arquivo, verifiquei, com algum espanto, que tivera oportunidade de conhecer e fazer um trabalho jornalístico com e sobre alguns dos principais derrotados do 25 de Abril – o último diretor da Censura, o último presidente do Partido Único, o último responsável pelo campo de concentração do Tarrafal, os membros do último Governo da ditadura, o último secretário particular de Marcello Caetano, o seu último porta-voz. Paralelamente, tivera o ensejo de fazer reportagens em torno de episódios e acontecimentos marcantes, precisamente por terem sido os últimos do género a ocorrer durante a ditadura: o último deportado, os últimos presos políticos, a última entrevista concedida por Oliveira Salazar. E pensei que faria sentido reunir todos estes trabalhos e publicá-los em livro.” E faz comentários sobre a natureza de entrevistas e entrevistados, ficam algumas pontas de mistério, seguramente não haverá resposta para o conteúdo da documentação que Alexandre Carvalho Neto, secretário pessoal de Marcello Caetano, destruiu na residência de S. Bento, no cumprimento das instruções dadas pelo deposto presidente do Conselho de Ministros. E o leitor que se prepare para uma viagem que tem pouco de nostálgica, permite um sem número de clarificações e, impressão minha, da própria sensibilidade manifestada pelos entrevistados, há mais reconciliação que ressabiamento pelo fim do regime ditatorial.

Eduardo Vieira Fontes, diretor do “campo de trabalho” do Tarrafal, abre as hostilidades, um cabo-verdiano que nunca quis a nacionalidade cabo-verdiana, que guarda recordações amenas de Amílcar Cabral e do seu trabalho em Angola, que considera ter agido com elevado sentido do dever no Tarrafal, reaberto em 1961, a PIDE criticava muitos dos seus procedimentos para com os presos, durante a entrevista mostra testemunhos de detidos, francamente favoráveis para a maneira como conduzia a vida no campo. “Nunca mais voltou a Cabo Verde, mas vinha quase todos os anos a Portugal. Faleceu nos EUA, em East Providence, em 9 de novembro de 2021, escassos meses após a morte da mulher. Tinha 99 anos.”

Não menos interessante é a reportagem sobre os últimos presos políticos, tudo se passou em abril de 1974, ficamos a saber quem e porquê foi detido. O mesmo se dirá do último Governo da ditadura, há para ali aspetos curiosos de escolhas de ministros e secretários de Estado, e há o depois do 25 de Abril. Pedro Feytor Pinto, que teve uma intervenção direta nos acontecimentos do 25 de Abril dá-nos as suas impressões sobre aspetos da governação de Marcello Caetano, o seu relacionamento com os liberais, os bastidores da oposição ao Governo dentro do regime, o que se passou depois da queda da ditadura. Não deixa de causar estranheza certas afirmações de Alexandre Carvalho Neto, foi secretário particular de Marcello Caetano e antes ocupara um cargo semelhante junto de Spínola na Guiné, não só diz inverdades como destrata quem não se pode defender, isto quanto à Guiné. Que antes de Spínola havia a iminência de uma derrota militar, que Schulz foi destituído e que ainda regressou a Bissau para empacotar os serviços de prata do Palácio de Bolama. Acontece que a guerra não estava perdida nessa época (1968), que Schulz não foi demitido, cumprira quatro anos na governação e como comandante-chefe e interrogo-me como era possível um governador trazer pratas de um palácio que estava em ruínas, fora abandonado em 1941, impensável deixar ali pratas, enfim, tricas com uma pontinha de maledicência, resta saber para quê. E ficamos a saber que ajudou Marcello Caetano a instalar-se no Rio de Janeiro.

O leitor jamais ficará dececionado com este repositório de entrevistas onde iremos ver discorrer Elmano Alves, o presidente da última comissão executiva da Ação Nacional Popular, Mário Bento Soares, o último diretor da Censura, o autor entrevistará o jornalista francês Roland Faure que entrevistou Salazar quando este já não era o homem todo-poderoso e vivia debilitado em S. Bento, a Censura cortou a entrevista, para o regime marcelista era totalmente inaceitável que os nostálgicos ouvissem Salazar dizer coisas como: “Conheço bem Marcello Caetano. Foi várias vezes meu ministro e aprecio-o. Ele gosta do poder: não para retirar quaisquer benefícios pessoais ou para a família; é muito honesto. Mas gosta do poder pelo poder. Para ter a impressão exaltante de deixar a sua marca nos acontecimentos. É inteligente e tem autoridade, mas está errado em não querer trabalhar connosco no Governo. Porque, como sabe, ele não faz parte do Governo.”

O leitor será confrontado com o relacionamento de Salazar com o major Silva Pais, o último diretor da PIDE, as matérias que tratavam, as informações que a PIDE fazia chegar a Salazar não só sobre acontecimentos internos como internacionais, fica perfeitamente claro que o ditador soube do assassinato do general Humberto Delgado com todos os pormenores, dando depois em discurso uma versão totalmente descabelada, atribuindo a tensões entre oposicionistas, atribuindo à oposição o crime. Iremos ler os acontecimentos da deportação de Mário Soares em S. Tomé e Príncipe. E o livro termina com uma reportagem de acontecimentos muito pouco conhecidos e praticamente não tratados pela historiografia, os sindicatos corporativos, afetos por natureza ao regime, mas que estavam em ebulição e mesmo em rutura com o então subsecretário das Corporações não só dado o agravamento do custo de vida, como os penosos horários de trabalho e salários bloqueados. Iremos viajar ao último plenário destes sindicatos, haverá reuniões com Salazar e uma reunião desse plenário no Coliseu dos Recreios. É nesse plenário que os dirigentes sindicais divulgarão o teor de uma mensagem entregue a Salazar a que o ditador fez 23 cortes e alterações no texto que lhe entregaram. O ditador será sócio honorário de 300 sindicatos. E diz-se no último plenário dos sindicatos corporativos por que a máquina corporativa sofrerá alterações de fundo com o fim da Segundo Guerra Mundial e com a agitação política trazida pelo Movimento de Unidade Democrática. Gota a gota, elementos de oposição irão infiltrando-se nos sindicatos, a aliança com a governação irá desaparecer.

Esta coletânea de entrevistas é uma preciosidade, ajuda a compreender mentalidades dominantes do salazarismo e do marcelismo e como a ditadura não ofereceu resistência a quem vinha trazer as liberdades, o desejo de viver em democracia e pôr fim à inconsequente guerra colonial.


                                                                                    Mário Beja Santos





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