Não se fala sobre Henrique Galvão no
Portugal democrático. O militar que escreveu um longo relatório sobre as
condições laborais em Angola (pessoas transportadas como gado – palavras dele –
para trabalho duríssimo e quase gratuito, sujeitas a punições físicas pelos
mais pequenos erros), que apoiou dois candidatos presidenciais contra Salazar e
que foi preso por planear uma revolução contra o Estado Novo.
Mais do que isso, Galvão ficou famoso
por ter desviado o cruzeiro Santa Maria. O navio português, que se dirigia aos
EUA com tripulantes daquele país, estava atracado na costa venezuelana quando
Galvão e outros setenta embarcaram, disfarçados, e se apoderaram do leme (num
dia 22 de Janeiro, como hoje). Durante duas semanas, os piratas, como o governo
português lhes chamou, levaram o navio para Sul, comunicando aos media dos EUA
que apenas queriam alertar para a podridão da ditadura portuguesa.
O problema é que Henrique Galvão foi um opositor
manchado. Anos antes, tinha participado no sidonismo e no 28 de Maio, tinha
sido deputado à Assembleia Nacional e um dos principais organizadores das
exposições coloniais, de que ainda podemos ver, no espaço público de hoje, o
Monumento ao Esforço Colonizador Português (no Porto) e o Padrão dos
Descobrimentos (em Lisboa). Admirava regimes autoritários e conservadores, era
um anti-comunista ferrenho e um colonialista irredutível (concebeu o mapa do
“Portugal não é um país pequeno”).
Em suma, Galvão não almejava propriamente uma
democracia liberal. Queria substituir Salazar por outro “homem forte” (ele
próprio?) que, acima de tudo, trouxesse desenvolvimento económico às colónias.
Quanto à autodeterminação dos colonizados, podia esperar. Sentada.
É por isso que, apesar do muito que arriscou para
destronar Salazar, Galvão é uma figura pouco apreciada hoje. Vivemos num regime
democrático, anti-colonial e com dois partidos marxistas no Parlamento, tudo
coisas que ele repudiaria. E é também por isso que, se procurarmos Henrique
Galvão no espaço público, não encontraremos qualquer estátua em sua homenagem
ou qualquer topónimo mais relevante do que rua ou travessa. Com uma única e
honrosa excepção: a da Avenida Henrique Galvão, no Barreiro, onde
nasceu.
Rui
Passos Rocha
sim é uma figura que nem figura nos livros de história do ensino oficial creio
ResponderEliminarNo filme "Rosinha e Outros Bichos do Mato", de 2023, o mesmo merece uma não muito elogiosa referência como organizador da exposição colonial de 1934, no Porto.
ResponderEliminarEste colonialista, anticomunista e, durante alguns anos, inimigo público nº 1 do salazarismo foi um homem de muitas facetas e talentos. Foi amante de teatro (e de várias actrizes), caçador e autor de livros sobre África, primeiro presidente da Emissora Nacional, organizador de duas exposições coloniais, deputado tremendamente incómodo à Assembleia Nacional, chefe revolucionário, preso político, autor de um jornal clandestino a partir da prisão, planeador do primeiro desvio de um avião e executor do primeiro desvio de um navio de passageiros, etc. Julgo que o total de anos de prisão a que foi condenado, incluindo à revelia, será recorde nacional. Merecia ser reconstituída em filme a sua fuga em 1959 do Hospital de Santa Maria, onde estava guardado de dia e de noite por um agente da PIDE, conseguindo depois refugiar-se na embaixada da Argentina e partir dali para o exílio sul-americano. A tomada do navio Santa Maria falhou nos seus intentos, mas pôs Portugal e a ditadura de Salazar nas primeiras páginas da imprensa mundial. Apesar de ter defendido de armas na mão a Ditadura Militar em 1927 e de ter tido simpatias nazis durante a II Guerra, ninguém como ele lutou para derrubar o regime salazarista. A própria candidatura de Humberto Delgado à presidência em 1958 foi ideia de Galvão. Merece uma digna homenagem à sua memória, sim senhor.
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