terça-feira, 27 de março de 2012

Armoniz, aldeia de Trás-os-Montes.

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Fotografia: Aniceto Afonso



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Passei quatro dias amenos e inesquecíveis em Trás-os-Montes, numa aldeia no fim-do-mundo chamada Armoniz, a poucos quilómetros de Vinhais, com meia dúzia de minúsculas casas penduradas no alto duma colina, junto do riacho que serpenteia por entre as colinas daquelas bandas. Ficámos, a minha mulher e eu, em casa de um casal amigo – ambos foram meus alunos em história, sendo ele um  oficial do exército que fez a guerra colonial em Angola e, depois, em Moçambique, chegando mesmo a defender uma tese de Mestrado na Faculdade de Letras de Lisboa, dissertação dirigida por mim. Desde o imediato pós-25 de Abril que sou amigo deste militar que pertenceu ao MFA, havendo entre nós uma sólida estima mútua, reforçada por vários anos de colaboração com aquele fiel amigo nas minhas duas histórias de Portugal, a contemporânea e a global.
Foram, em suma,  quatro dias magníficos, passados numa castiça casinha transmontana, junto duma lareira sempre viva ou a passear ao longo do Tuela, sem vermos TV,  ouvindo apenas a rádio, comendo salpicão, alheiras, queijo de cabra e castanhas  – ainda se conseguiram umas quantas, oferecidas pelo Sr. Armindo, caseiro e factotum das terras do casal amigo, além de caçador de javalis e mestre de obras das aldeias em redor homem rijo, bem transmontão na sua linguagem saborosamente rural -, mais o delicioso saboroso pão de centeio destas abençoadas terras, tudo acompanhado de bons vinhos do Douro, durante longos bate-papos de velhos amigos, com muito frio lá fora, já que, à noite fazia 9 graus negativos, mas de dia estava um sol azul cerúleo, como numa pintura. A lua, essa brilhava ainda, desde o cair da noite, no firmamento, com umas quantas estrelas em volta, daquelas que nos céus do Estoris nunca consigo ver por causa da poluição e da luz eléctrica em torno. Ali, no meio dos montes, o mundo é puríssimo, tranquilo e calmo, os cavalos do tempo correm devagar e uma espécie de sensação de plenitude cósmica enche os nossos corações. Creio que mesmo o sábio e filósofo cristão Pascal, que inexplicavelmente se aterrorizava com o silêncio dos espaços infinitos, se sentiria apaziguado e feliz por poder saborear um céu tão quedo como este, reconfortado ainda por ouvir as águas frias do Tuela dedilharem as pedras do seu leito.
Assistimos à Festa do Fumeiro em Vinhais, vila encantadora destra região, uma orgia de gastronomia em torno dos enchidos do porco, carne nada kosher mas que sabe muito bem. Confesso que fiquei maravilhado com aquela região onde vivi quatro dias inesquecíveis e amenos, passeando entre Vinhais, Mirandela e Bragança, terra de Judeus que eu não conhecia. A dada altura, à procura da Maria Rita, restaurante mítico anichado num recanto obscuro deste dédalo de estradas e caminhos secundários, parámos para eu fotografar uma inverosímil placa toponímica duma terreola chamada Jerusalém do Romeu, com uma capela dedicada a N.ª S.ª de Jerusalém, toponímia que me deixa estupefacto e suspeitando haver ali um resquício das ocultas raízes hebreias desta terra onde Miguel Torga ainda encontrou “abafadores” que ajudavam os membros do povo da Aliança a morrerem, perdidos como estavam nestes ignotos rincões lusitanos onde viviam um Exílio sem fim, escapando por essa espécie de eutanásia ritual à incómoda presença dos sacerdotes católicos no momento de se despedirem da vida, ficando melhor guardado pela “abafação” o segredo da sua fé clandestina.
Seria lenda ou realidade esta prática de estrangular os moribundos para preservar o secretismo religioso dos seguidores de Moisés nestas paragens transmontanas? O eruditíssimo abade de Baçal não crê na sua fiabilidade ou consistência religiosa, assim como Samuel Schwartz, judeu polaco radicado em Portugal, lhe desmentia qualquer veracidade, atribuindo a acção destes “abafadores” a calúnias anti-semitas tão velhas como a do assassínio ritual das crianças, catalogando estes rumores como lenda “absurda e inaceitável”...
Passeando-me por estas terras que levei tantos anos a encontrar nas minhas andanças de viajor, conhecedor a vida e das gentes judaicas através de contactos directos desde a minha infância em Joanesburgo e, mais tarde, em Estrasburgo, quando ali preparava  a minha tese de doutoramento, e rematando essas relações com a frequência assídua das  festas duma família hebraica, expatriada da Rússia soviética, nos tempos de Brejnev,  para Providence, na Nova Inglaterra, decerto estou condenado, nestas rudes e atraentes serras transmontanas, a reencontrar o povo da Aliança apenas por lendas que vão deixando sulcos tipográficos em estudos de folclore ou na ficção dos escritores.
Quanto à paisagem desta abençoada terra que acabo de conhecer, sobretudo porque aqui, como no resto do país, se tem estado sem chuva há dois meses, as florestas e os campos que visito, em vez de verdes, estão acastanhados, o que dá uma tonalidade bizarra a esta província do fim-do-mundo, e me faz lembrar ainda aquelas regiões da França onde me habituei, nas derradeiras décadas, a passar as férias de verão, como a Ariège, o Gers, as Cévennes e, sobretudo, a mágica e muita querida Provença onde passei quatro anos da minha vida antes do 25 de Abril, como expatriado que a glacial Ditadura salazarista forçara a ir procurar noutro país a possibilidade de fazer uma carreira universitária que o meu país me impedia de seguir, esperando o regresso de D. Sebastião, que por fim se dignou desocultar e, fardado de militar, tornou ao Portugal cativo e miserável que há tanto tempo o aguardava.
A terminar esta evocação duma sentimental viagem de inverno em terras que tanto me encantaram, não queria deixar de referir um aspecto sintomático do momento angustiado que o país vive: as auto-estradas entre Lisboa e Trás-os-Montes estavam quase desertas e os restaurantes onde parámos também sem gente. Portugal foge das auto-estradas para não ter de as pagar, o que é um péssimo sintoma da falência que nos ameaça, como a Grécia. Será esta, hoje, a imagem do que seremos amanhã, nos começos deste ano e ao longo do próximo: colapso político, miséria, desmoronamento da vida económica, falência, caos e desespero de todos?


João Medina

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